Patrícia Reis's Blog

November 5, 2018

até às cinco e meia são mil anos

Tens de esperar, o pé para o alto, o corpo dorido, a traição absoluta agudizada pelo frio e pela chuva, como encontrar algum conforto num cenáro assim?, a pergunta fica a pairar e o relógio rasteja com a lentidão os caracóis mais preguiçosos. É preciso chegar às cinco e meia e não posso envelhecer mil anos até lá. Curioso como o tempo nos massacra. Na janela, a chuva rasga o céu como se fosse estática da televisão, fecho os olhos, mudo de canal.

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Published on November 05, 2018 09:13

November 4, 2018

esforço extra

Então, fazes o tal esforço, um esforço extra, o que seria se dissesses tudo o que pensas, quem sobreviveria a tal chorrilho de disparates, nem tu, por saberes que se disseres em voz alta o que sentes ou julgas pensar terás o momento de arrependimento máximo no exacto segundo em que as palavrinhas atingirem o ar dos outros. O drama são os outros, pois, cada pessoa é uma humanidade, é repetir a ideia e repetir até que fique, e viver a dor devagarinho e em silêncio. Estás muito crescida, logo podes calar. No exercício de não dizer o que sentes ou te apetece pensar, gritas dentro de ti, tens gestos precipitados que revelam essa impaciência ou zanga, mas não pode ser zanga, isso seria andar para trás, quando na verdade só queres mesmo é ficar num outro tempo, um tempo que não existe, talvez já tenha existido, talvez esteja por existir. As questões existencialistas. Concentras as tuas ideias nos seis homens justos que sustêm o mundo, não és judia, mas acreditas nisto, e por que não?, acreditas e até pensas ver, em homens ou mulheres, essas personagens que nos salvam de terror do fim. Seis pessoas que permitem que a terra gire, que o sol queime, que o vento assobie e outras banalidades deste teor, e ainda a ideia de que a amanhã é que é. Não é. Amanhã não é. Então, fazes o tal esforço, um esforço extra para deixar estar quem anda à tua roda, para te deixares estar. Poderia ser uma dança chinesa, mas é só um esforço extra.

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Published on November 04, 2018 12:31

October 31, 2018

cimento e lágrima

Roubas ao Chico Buarque o verso, é sempre bom ser do Chico, afinal quem é que escreve assim, palavras que são dele e são nossas mesmo antes de o sabermos? Por isso, em construção, no dia de samhain, apropriado para quem começa uma face negra da vida, cá estás a ver se a chuva te lava as ideias, certa de que nem a chuva te purifica, certa de que agora é tarde. Tentas retomar o assunto e entender como chegaste aqui, afinal como é que se chega aqui? Defines aqui. Já tinhas construído o vazio, depois ignorado janelas abertas e ainda forças estranhas dentro de pessoas igualmente estranhas, por isso terá de existir uma rota que foi a que tomaste, que te trouxe aqui. Repetes: o passado não é a tua identidade. Repetes: a culpa é católica, tu és cristã. Repetes: não entendes nada. E ficas assim, a não entender nada. São duas e meia da tarde, o telefone toca e não há resposta. Cimento para o que está para trás; lágrimas de agora. E depois a chuva, outra vez a chuva, a ver se resulta.

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Published on October 31, 2018 07:32

October 30, 2018

mais uma fotografia sem história

Tens toda a razão, as fotografias são enganadoras, não prestam serviço à memória, apenas a uma ideia, construção feliz do que quisemos ser naquele dia, no segundo específico em que sorrimos ou contivemos o sorriso. Neste caso, a fotografia mostra uma família ou, no teu caso, uma ideia que tinhas de família. Parece que foi há cem anos, talvez tenha sido há mais. Dentro de ti as ideias esgotaram-se.

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Published on October 30, 2018 11:15

October 29, 2018

três passos a favor da lucidez

Há o momento da dor, depois a tentativa estranha, brutal, de querer voltar à superfície, mesmo que a superfície seja um tumulto, não temes a tempestade, tens é de sobreviver, por isso precisas ainda de dar outro passo, algo idiota, mas que é teu, algo que pertence apenas à tua essência e pouco mais: fazes voto de silêncio. Não é por entenderes que tudo passa, que o tempo corre atrás do tempo e que o hoje foi o futuro de ontem e cenas dessas que se lêem em quadros animados nas redes sociais. Não. Fazes voto de silêncio por tudo te ser incompreensível, as pequenas e as grandes coisas da tua vida. E não, não é o Brasil ou a Hungria, embora também seja, porque és esse tipo de pessoa, atenta ao mundo e aos outros, tens preocupações, tens medo de militares e de fascistas e ainda de quem se abstém, mas não é nada disso, é mais grave por te pertencer em exclusivo, é uma dor tua, que está dentro, ferve no sangue, maltrata as vísceras e, de repente, tu és toda a humanidade na dor. Apenas na dor. Sabes, por seres razoável, que há mais do que a dor, mas isso agora importa pouco, estás focada no que sentes e o que sentes não tem qualquer razoabilidade. O silêncio é uma máquina de consumo acelerado para o pensamento circular, viciante, viciado, tu não pertences aqui, não és daqui. Queres ir embora, não saberias dizer para onde, mas é o que queres, ir, ir, ir embora. E o silêncio dá-te essa vertigem do querer ir embora para lugar nenhum em especial e depois dá-te a voz interior que troça de ti, que te chama estúpida e outras coisas. Até a dor te dá trabalho. Esticas o corpo, tentas controlar a dor de cabeça que se aproxima, pedes-te silêncio. Não há hipótese, o teu silêncio é holocaústico, é terrível. Depois repetes, não pode ser assim, nada é holocáustico, nada que se passe contigo, a tua dor não vale nada, a tua dor possui um valor negativo, quase que não se vê. Por tudo isto, voltas a sair à rua, deixas a dor na gaveta, cais na real, vais. Porque importa ir. Mesmo sem saber para onde, mas vais, vais por aí e isolas a tua dorzinha sem importância e o teu silêncio é cortado por bons dias e se faz favor, obrigada, sim, não. A eficácia da vida a fazer-se sentir e a tua cabeça como um tambor da máquina de lavar. Este é o teu retrato patético. Tu sabes, foste tu quem o escreveu.

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Published on October 29, 2018 09:15

July 27, 2017

a forma mais preguiçosa de ver o mundo

Esquerda, direita, volver. Ou porque é tão difícil abrir a discussão pública a novas pessoas, novas ideias, diferentes formas de pensar.



 

Dividir o mundo entre a esquerda e a direita é a forma mais cómoda de se viver, a mais preguiçosa e também a menos interessante. Mas é assim que vivemos. Na dicotomia que faz com que tudo tenha esta divisão categórica. Olhamos para os intervenientes em qualquer programa de televisão ou de rádio e lá estão os senhores mais assim, os senhores mais assado (escrevo senhores porque, objectivamente, as senhoras não aparecem com tanta frequência). O que muda em termos de pensamento? Nada. Existe uma agenda e um pensamento condicionado, logo é bastante previsível o que vai ser dito, ou dado a ouvir para que o público em geral possa processar e pensar.


Olhar para o mundo através deste binóculo bipolar parece-me redutor. Dirão que existem várias esquerdas e outras tantas direitas, clivagens, diferenças, actualizações, que existe um centro e os liberais e talvez, porque não?, neo liberais, e tal. Pois seja. Nasci antes da revolução, poucos anos antes, sou, por isso, também produto das conquistas de Abril. Cresci em democracia e, passados mais de 40 anos, pasmo com realidades que limitam a possibilidade de se pensar o mundo de uma forma que não seja partidarizada. E estou um pouco cansada de mais do mesmo, que é como quem diz dos comentários dos agentes informadores mais assim, ou mais assado.


Temos poucos académicos a escrever nos jornais, a falar na televisão. Temos uma mão cheia de politólogos, mas deixámos de ter historiadores, sociólogos, filósofos em contacto com o grande público. O que temos? Mais do mesmo. Os senhores do costume. Há décadas.


Marcelo Rebelo de Sousa, o presidente que fez campanha sem outdoors, manifestações e outras acções típicas de uma campanha presidencial, esteve anos e anos a entrar pela casa das pessoas através da televisão. O poder que tem a pequena caixa que mudou o mundo é real e contribui para muito. Não sei se, em Portugal, nesta altura do campeonato, contribui para se pensar o país, o mundo, as questões que afectam as pessoas. O que importa é equilibrar as intervenções entre os agentes de esquerda e os da direita.














Nos jornais, durante muito tempo, os escritores – que pensam o estado do mundo e são uma forma de consciência do seu tempo – escreviam crónicas, eram chamados a apresentar ideias. Hoje, são raros os escritores que se envolvem nas matérias sociais. Não por não quererem, simplesmente por não terem esse espaço. Tudo o que envolve a sociedade é político e, portanto, é evidente que tudo se passa à volta da esquerda e da direita? Sim, tudo o que envolve a polis é político, todos nós temos gestos e discursos que formam uma ideia política, mas não precisa de estar engajada numa agenda de partido que, para tornar as coisas ainda mais pobres, resulta em “picar” os potenciais adversário e outras variantes pouco dignificantes.


Disseram-me, há uns meses, que não se pode deixar de ir buscar para intervir nas televisões, rádios e jornais pessoas cujo reconhecimento é imediato. Todas elas eram desconhecidas numa determinada fase da vida, certo? Certo. Portanto, podemos apostar em pessoas cujo discurso é diferente e que ninguém conhece. Ah, as audiências sofrem com isso, com o facto de ninguém saber quem é o académico que vem explicar coisas importantes, digamos, sobre o Islão. A solução é colocar alguém cujo rosto se multiplica em vários cantos da comunicação social, tornando-o um agente de comunicação. E, mesmo que não saiba nada sobre o Islão – que perspectiva de direita, que perspectiva de esquerda, pode existir nesta matéria não sei dizer, mas que importa muito que se saiba mais sobre o Islão não tenho a menor dúvida -, pois alguma coisa se arranjará para pontificar e fazer o contraponto, ou seja, o descascar no vizinho do lado, à esquerda, ou à direita. Do outro lado do ecrã, alguém irá dizer: este tipo é de direita/esquerda.


Perde-se muito quando se divide a realidade apenas desta forma e, acima de tudo, perde-se a possibilidade de abrir horizontes, de aprender, de formular ou reformular pensamento. E, caramba, precisamos tanto de pessoas que pensem bem, diferente, que nos empurrem para lugares melhores. Não dará audiências, mas talvez contribuísse para dar a volta ao estado do país.

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Published on July 27, 2017 02:47

May 23, 2017

Temos medo

Temos medo. Podemos dizer que não temos, podemos tentar racionalizar, mas é um facto que o século XXI é o século do medo. Pelo menos até agora. Pode ser que mude, porém não vejo sinais de qualquer mudança, sinto apenas a escalada do medo. Aqueles pais, e Manchester, à espera de entender se o filho ou filha morreram é uma imagem que irá permanecer comigo durante muito tempo. Existem imagens hediondas que nos atingem todos os dias, mas o que se passou em Manchester não é um atentado como os outros. O público que assiste aos concertos da artista norte-americana Ariana Grande é jovem, muito jovem. A artista tem um concerto agendado para o Meo Arena e a pergunta que faço é: quantos pais vão repensar essa ida nocturna dos filhos a um concerto? E quantos perguntarão: um dia destes será em Lisboa, certo?


O medo é paralisante e será com isso que muitos movimentos terroristas contam. Não se sabe se o bombista suicida que se fez explodir em Manchester - matando (até ao momento) os 22 e ferindo 59 pessoas - era de algum grupo terrorista. O ataque não foi reivindicado. Uma coisa é certa, conseguiu entrar numa arena com capacidade para milhares de pessoas levando uma bomba que se supõe caseira. Não se sabe quem era, de onde vinha, o que fazia, em que acreditava.


Adonis, o poeta sírio tantas vezes indicado como candidato ao Prémio Nobel da Literatura, escreve no livro “Violência e Islão” que não é possível o Ocidente e o Islão chegarem a um entendimento enquanto os estados árabes não forem laicos. Afirma que a religião como forma organizadora da sociedade implica, no caso do Islão, violência por ser uma religião criada na violência. Nunca quis acreditar nesta versão, por ser demasiado redutora, por reflectir a vida do poeta, que admiro, mas que está condicionado pela sua experiência. Numa coisa, contudo, está absolutamente certo: o islamismo é a religião que mais cresce, é o que mostram os últimos estudos, e o Ocidente sente-se ameaçado pelo invisível. Os terroristas que se dizem islâmicos não têm uma agenda lógica, atingem onde menos se espera. Nada pior do que não conseguirmos prever. O mundo que temos para os nossos filhos, os nossos netos, não promete nada que seja fácil e não garante qualquer segurança. Sim, repito, temos medo. E temos razões para ter medo.


O medo rouba-nos a liberdade, promove a desconfiança, remete-nos para o que consideramos seguro. O conhecimento e a vida não se fazem sem riscos e essa é a maior vitória do terrorismo que, tantas vezes, diz ofender-se com o estilo de vida ocidental. Sem liberdade não conseguiremos evoluir como sociedade e os retrocessos ao nível dos valores serão inevitáveis, os direitos serão condicionados. Não é assim que queremos viver, bem sei. Seria bom promover o diálogo, mas quem é que quer falar com terroristas que matam crianças? Manchester é assustador por ser no nosso contexto, dentro do padrão normal do nosso comportamento. Outras crianças morrem. Todos os dias, na Síria por exemplo, a morte é o mais comum. Qual é a diferença? O que acontece num país tão distinto da nossa realidade é algo que nos comove pontualmente. Talvez por isso as nossas crianças sejam mais importantes que as crianças dos outros. Nada podia ser mais triste.

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Published on May 23, 2017 05:57

March 24, 2017

Excerto A Construção do Vazio

 


Desenhar é uma forma de escrever. Aprendi isto muito cedo. No estirador do meu tio-avô cresciam formas estranhas, riscos que afinal não eram rasuras, misturas de cores e criaturas disformes, embora encantadoras. Encontrei, mais tarde, vários artistas cuja voz fui reconhecendo. O desenho tem o poder de nos levar para onde quisermos e, se tivermos imaginação, a história que se conta pode não ser a mesma que estava, no início, na cabeça do artista.

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Published on March 24, 2017 07:18

January 2, 2017

Antes do outro lado do mundo do que em sítio nenhum



O mundo tornou-se uma caixa minúscula, apenas um quadrado do lado direito do ecrã do computador e a tua imagem, por vezes desfocada, por vezes distinta, um sorriso aberto. A tua mão a passar na cara, a disfarçar as lágrimas, como se eu não soubesse. Não há distância que me impeça de te conhecer, sabes?
Sei que mordes o lábio quando estás nervosa. Se tens algo para contar quando falas mais baixo e devagar. Gostas de fazer perguntas concretas. Odeias demasiados adjectivos. És apaixonada por tudo o que é tecnologia, mas tens a maior colecção de poesia que conheço. Se te perguntarem de onde és, encolhes os ombros. Para ti o mundo tornou-se pequeno muito cedo. Começou numa viagem de comboio depois do liceu, depois um curso no estrangeiro, um estágio num outro continente e, por fim, uma pós-graduação na terra natal. Se não fosse a pós-graduação talvez nunca nos tivéssemos cruzado e seríamos duas metades de laranja desencontradas. Seria um desperdício, não achas? Vais gozar e dizer que desperdício é um pano que se tem no carro para limpar a vareta do óleo.
O fuso horário ou o facto de os hábitos culturais aqui parecerem ser diferentes não te ofuscam, não te tiram importância. A minha vida ainda é feita em função de ti. As tuas memórias estão dentro do computador, nas fotografias, na pasta que tenho no telemóvel com mais de quinhentas mensagens escritas. Sabes que podemos escrever a nossa história de amor só com aquelas mensagens? É verdade, não estou a exagerar.
O amor por escrito não vale tanto, dizias tu no início, depois não resistias e os meus dias passaram a ser invadidos por curtas mensagens, umas mais subtis que outras, alguns enigmas, umas tantas surpresas. Eu comecei por me queixar da vertigem do mundo, desta coisa de estarmos sempre ligados – não no que nos diz respeito – mas aos outros, aos que invadem a nossa vida: sinais sonoros de avisos de mensagem. Chats e imagens em computadores muito pequenas que cujo objectivo é combater a solidão, videos idiotas do youtube, gosto e não gosto no facebook. Tu nunca quiseste saber. Estar ligada ao mundo é a tua maneira de estar. Percebi isso depressa.

Aqui, apesar de tudo, sinto-me sozinho só às vezes. Talvez não tenha sido a melhor opção. Sei que este emprego é importante, até em termos de um potencial futuro conjugado a dois. Não deixo de ter dúvidas. É sempre assim. Fico preso às imagens da televisão e penso nos gestos políticos da Terra e na forma como te posso perder. Um tsunami, um sismo, um furação. Quando era miúdo não ouvia estas palavras. Bom, quando era miúdo nunca pensei apaixonar-me por alguém que vive a pensar em tudo o que está debaixo de água. Tu dizes que nasceste para estar em estado líquido e estudas biologia marítima como se fosse uma paixão. Desculpa, é uma paixão. Trocas informações com colegas do mundo inteiro, até tens uma amiga que se chama Suzuki e que vive no Japão. O teu desespero com o desastre de há uns meses mobilizou uma série de gente e, no fim, Suzuki apareceu sorridente, triste, mas sorridente. Explicou todas as questões técnicas, as placas tectónicas e a força do mar, ondas de dez metros. Tu ouviste tudo e gravaste. Mandaste o ficheiro e vi a tua amiga, por vezes com a imagem a falhar, a explicar como se estivesse a dar uma aula ou a contar algo de trivial. Um rosto desconhecido num inglês sofrível. Mais uma pessoa com quem não me cruzaria se não fosses tu.
Sempre admirei essa tua faceta de entender o mar como algo comum, uma espécie de amarra que nos separa e junta ao mesmo tempo. Pode parecer paradoxal, mas não é tanto assim. Os oceanos são uma forma de vida única e trazem e levam o melhor e o pior. Tu não tens medo. Eu tenho. Confesso-te que sou apenas um professor, aliás um leitor se formos sinceros, contratado para divulgar a cultura portuguesa, a língua de Pessoa e de Camões. Como é que alguém como eu começa uma relação com uma pessoa que sabe tudo sobre as baleias azuis? Agora sei que as baleias azuis têm um coração do tamanho de um carro. Foste tu quem mo ensinaste. E eu ensinei-te o quê? Que temos as fronteiras mais antigas da Europa, que o mar como destino e trajecto para um mundo de Descobertas era uma inevitabilidade se queríamos sobreviver. Coisas, se quiseres, banais.
Na semana passada, além dos emails, dos chats com imagem e até das sms, tive a maior surpresa de todas: enviaste uma caixa, devidamente acondicionada com papel de bolhas de plástico e, lá dentro, um frasco com areia da praia. Uma praia onde foste para fazer pesquisa. Com o pequeno frasco estava um cartão que dizia: “Em terra ou no mar estou sempre aí ao teu lado”. E eu senti-te, aqui mesmo.  Toquei no teu rosto, a tua imagem parada no ecrã do meu telemóvel antes de marcar o número da nossa casa.

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Published on January 02, 2017 07:53

December 6, 2016

Se tudo fosse como tu

aleggro

Quando o teu corpo, como uma sonata, se mexeu, contei os quatro movimentos e pensei em Mahler. Não perguntes porquê. Talvez por causa de Alma e de Freud. Não sabes a história. Pouco importa. Ou, na verdade, importa. Mahler amava a mulher e era traído. Freud conversava com o compositor e fumava. À época, Mahler escrevia a sinfonia a que nunca quis chamar nona, baptizando assim a obra de poema sinfónico. Parece existir uma superstição qualquer, mas sobre isso nada sei. Não, espera, sei: há uma série de mortes de músicos depois da composição de nonas sinfonias. Parece estranho, porque Mahler deixou a décima por terminar, embora tenha a Canção da Terra que, para todos os efeitos, se apresenta com a estrutura de uma sinfonia. O compositor a brincar com o destino? Sim. Pode ser. A imaginação aliada ao receio constrói o que quer, até o inesperado. Tu gostas de Mahler? Sofria. Por ter qualquer coisa no coração, uma corda partida. A mulher. Uma mulher é uma coisa, a mulher é outra.


Foi em tudo isto que pensei quando te vi mexer no assento e na forma como te podia desenhar: virado para a frente, a mão no pacote de cigarros, o olhar para o lado como quem prepara a frase e, depois, o corpo que se encostou à cadeira. Eu estava com vinte e dois anos. Tinha estado entretida. Havia uma música de Natal que ocupava a minha cabeça, mas como tenho sempre uma música na cabeça, não era uma surpresa.


O que me surpreendeu foi o movimento do teu corpo, essa melodia escondida, depois a voz, o vocabulário e, mais tarde, os textos como escalas, andamentos dentro dos movimentos. Um rendilhar de palavras que compõem, ainda agora, toda a ideia que consegues dividir pela matemática. Espera. Oiçamos o rondó. Movimentos lentos ficam-te bem, já te disse? E eu preciso da lentidão para pensar, para desenhar melhor, apesar de viver numa vertigem que ninguém parece conter ou conseguir parar. Acredito que a culpa seja minha. Nunca pedi para ser parada.


Se tudo não fosse impresso ao som da música talvez o meu corpo quisesse esse sossego que vejo nos outros, uma certa calma, um estar sem fazer. Imaginas o que seria um mundo sem música? A tristeza seria maior, um lago escuro que nos engoliria sem piedade. A música confere-nos a humanidade de nos conseguirmos transcender. A possibilidade existe. Pensa em Bach. Todas as suas composições têm, como interlocutor, o invisível, a fé, aquela ideia de que Deus está e, por isso, o mundo será menos exigente. Sim, menos exigente foi o que disse. Mahler acreditava num outro Deus. Ser judeu não é o mesmo que ser católico.


À tua frente, ainda sem saber nada do cheiro, toque, ou palavras de ordem, respirei fundo. Talvez não te recordes, o prédio ao lado estava em obras e, no frio de Dezembro, o ruído das máquinas era insuportável. Observava o fumo do teu cigarro a correr na direcção da janela. Sentia o corpo a gelar. Foi então que perguntei


 


Sabe quem eu sou?


 


            Era uma questão retórica. Fiquei presa nela. E quem sou? A rapariga-rapaz que não quer ser vista e que, quando desenha, ouve música dentro da cabeça e quando sobe e desce escadas ouve música e não sabe nada de música e não tem sequer um piano, mas consegue distinguir as Suites de Bach? Estava nessa fase obsessiva relativamente à música. Tinha convicções muito veementes sobre a importância de Haydn e a sobrevalorização de Mozart. Uma heresia, dirás.


Eu era a rapariga à tua frente, a contabilizar os gestos do teu corpo, o fumo, a ouvir a tal música e o ruído das máquinas. E era ainda a tua amante. Sim, de forma espontânea. Tu não viste. Eu? Vi como o meu corpo se encaixaria no teu e podias fazer os quatro movimentos agarrado a mim. Senti a perplexidade do momento, uma certa vergonha. O corpo tem ordens suas, apenas suas, e a cabeça, bom, a cabeça não tem ordem e pode imaginar o que conseguir e eu estava ali, sem saber ao que ia, a fazer amor contigo. Conseguiste imaginar o meu corpo no teu?


       O tempo demora o que precisa, a não ser que seja Natal, um tempo que nos obrigamos a viver dentro de tradições inquestionáveis. Nesse ano, não o sabes, mas posso contar, liguei à minha mãe e, alegando qualquer coisa que ela soube de imediato ser mentira, escapei aos rituais, à família. Apesar da surpresa, como é habitual na minha mãe, perguntou


 


E precisas de alguma coisa?


 


E eu que não, nada. No dia seguinte começariam os saldos, disse. Tive esse ímpeto de humor idiota. Ela tentou rir. Alguém a chamou. Lembro-me de ter sentido um arrependimento inesperado só por ouvir o nome da minha mãe, mas não mudei de ideias. A casa estava gelada, andei o resto da noite abraçada a uma manta. Preparei um chá. Da janela vi os diferentes natais das pessoas do prédio da frente. Não me senti triste, apenas aliviada. O teu rosto tinha sido eliminado com a conversa da véspera. No presépio, instalado numa prateleira, um presépio de linhas modernas, ninguém me olhava. Era Natal e estava sozinha.


 


 



andante

Um ano depois, o Natal pareceu-me outra coisa. O aeroporto de Paris, Charles de Gaulle, às seis e meia da tarde, estava cheio. Sentia-me uma liliputiana a ser atropelada por malas e tróleis, crianças e mulheres de burka. Um Pai Natal gigante com uma sineta rompia o ruído do mundo para nos lembrar: é dezembro, temos de ser melhores em dezembro. É dezembro, temos de ser melhores em dezembro.


 


Paris?


Gosto tanto de Paris.


A melhor cidade quando se est á apaixonado, a pior quando n ã o se est á .


 


            E depois o bilhete em cima da minha mesa e uma folha quadrada a dizer


 


Chego amanh ã , à s 18h30, Charles de Gaulle.


 


            Fui. Obediente. Por total fascínio em antever o que sabia certo e, ao mesmo tempo, para entender o que te motivava a este encontro. Eu só vira tudo o que havia para ver de Godard e tinha uma colecção já vasta sobre escultura francesa, em especial Rodin e Camille Claudel. Coleccionava. Para saber, na presunção de que a cultura geral é o que nos dá riqueza, que o dinheiro não é nada. Não vale nada. Tu tens do dinheiro uma outra ideia. Nenhum número constitui um mistério para ti e, para alguém como eu, alguém que não sabe balançar na lógica dos números, só os entende na música, o dinheiro parecia-me excessivo e, por isso, disse


 


N ã o precisamos desse restaurante. Vamos a um bistro.


 


            Dessa vez, o obediente foste tu. Eu não podia entrar num restaurante como esses que conheces. Tinha umas calças de ganga, duas camisas, uma t-shirt, um casaco de lã. Tudo metido num saco. Uns sapatos rasos. Não podia, percebes? E, por isso, brinquei com o pão e ouvi-te falar sobre os jardins na Índia. Contei-te a história do almirante inglês. A Índia ainda estava ocupada pela Grã-Bretanha. O almirante tinha uma frota pronta para o que fosse - que não seria nada - os indianos acatariam sem discutir. Era a convicção. O almirante apreciava os jantares prolongados em casa, mas, acima de tudo, o final da tarde, aquela luz que só existe na Índia, copo de gin na mão; o almirante a admirar o seu jardim. O almirante recebeu a visita de um professor português e, ao pôr do sol, olhando para o jardim disse


 


É perfeito e, apesar disso, falta-lhe qualquer coisa.


 


O português respondeu que lhe faltava liberdade, que a natureza não se pode domar com tanta perfeição. O almirante não gostou.


            Sorriste.


A perfeição não te interessa. Quando nos deitámos, pela primeira vez nus, um perto do outro, a tua mão limitou-se a fazer a curva do meu corpo repetidamente, até que te engoli num beijo. Na manhã seguinte, ouvi-te ao telefone com a tua mulher. Escrevo a tua mulher, por teres sido casado com ela. É esse o rótulo justo que se pode dar à mulher que estava a ser enganada por uma miúda que te arrastava de museu em museu e não queria jóias ou malas de marca. Tu explicavas que ainda não tinhas tido tempo, que lhe comprarias qualquer coisa, que seria uma surpresa para a noite da consoada. E, a meio da tarde, eu - apenas para me ferir - decidi


 


Aqui tens a prenda perfeita para ela.


 


Sim, ela, a cobardia também se revê nas palavras. Podia ter dito o nome, sabia o nome, repetia o nome como uma lengalenga infantil, mas repara que pouco interessava para o caso, não havia música no nome da tua mulher e, para mais, tu concordaste e compraste o lenço com a assinatura de uma grande casa de alta costura, um lenço de seda devidamente embrulhado em papel seda cor de vinho tinto. O teu cartão era dourado. E o pagamento foi rápido. Ela estava, assim, despachada, e eu podia fingir que a esquecia enquanto andávamos pelas ruas. A tua mão na minha. Um frio bom, luzes que acendiam e apagavam.


Em frente a uma loja elogiaste o vestido na montra, era bonito e eu iria precisar de um vestido e de uns sapatos. Empurraste a porta e foste, prontamente, atendido por um rapaz com um sorriso quase felino. Sentei-me. Parecia uma menina amuada. Sabia que precisava de um vestido. Afinal, era Mahler e a sala de concertos não era uma qualquer. O vestido caiu-me como uma gota, o tecido colado ao corpo como uma pele só minha e saí do provador para to mostrar. O empregado trouxe uns sapatos altos, demasiado altos e tu disseste, de imediato, que não, teriam de ser outros. O senhor retirou-se com pressa. Tu pediste


 


Dá uma volta.        


                     


         O senhor chegou com outros sapatos e, com alguma delicadeza, apreciei a pele, a tira de sapato antigo, um salto meio alto, confortável. Tudo junto, se queres saber, não era eu, pouco importa. Eu descrevo-te: era de veludo o meu corpo no vestido de seda que escorria, os sapatos escondidos, apenas a ponta de pele trabalhada e ainda a tira a atravessar o peito do meu pé, uma sensação estrangeira. O vestido, se rodado, era mais curto atrás e as costas descobertas com um despudor que te fez sorrir. Aquela não era só uma mentira de mim e, perdoa-me, era ainda uma outra pronta para chorar ou rir a teu pedido. Já na rua, a tua mão regressou à minha, o saco a bater-me nas pernas. Antes da consoada, já tinha a minha prenda de Natal. Éramos nós ou não? Uma ideia de nós como uma sombra do possível.


         Alguém tocava acordeão na rua e quis parar. O teu telemóvel tocou. Fiquei ali, largada. Pouco sei do que Deus quer de mim e, por isso, deixei-me ficar a ver as mãos do homem no acordeão. Pensei na música e nela outra vez e, depois, para te desagradar mordi uma pele do polegar, arranquei-a e fiz sangue, uma ferida a gritar para que não te fosses. E tu regressaste. Quanto tempo terá passado? E quem conta o tempo e dentro do tempo o que será verdadeiramente importante? Eu não sabia e agora, se for preciso dizê-lo, tão-pouco sei. O tempo possui uma medida única e pode ser infinito ou rasgar o céu e deixar-nos cair, nanosegundos de suspensão, uma sensação de desconhecimento que não precisa de ser desagradável. Há muito de tentador na perdição. Assim, de regresso, tu querias voltar ao hotel, mas o meu castigo era uma exposição sobre os arquitectos da liberdade e debitei sobre Etienne Boulé como se tivesse escrito uma tese sobre os sonhos de um arquitecto do impossível.


A curiosidade moveu-se no teu corpo. São os tais andamentos. A atenção é a vontade de fixar o melhor do mundo e há poucas pessoas assim. São os eleitos da beleza, vêem o que os outros não tentam sequer compreender e não se questionam. Deixei-te admirar uma planta gigante, um desenho feito à mão de um planetário, uma cúpula de vidro, uma base bizarra com se fosse uma previsão de nave espacial. Fiquei junto aos desenhos enormes dos jardins, desenhos que sempre me fascinaram. Queria voltar à história da Índia por ter mais que contar e não saber como. Hoje não sou uma pessoa calada, então limitava-me a falar se fosse crucial. Aprendi cedo o conforto do silêncio e não sabia se me querias pela cabeça, pelo corpo, pelos meus dedos num pau de carvão, rápidos, a desenhar ou se pela música que sei de cor. Não sabia, já te disse, quem era. E tu vieste ver a planta do jardim e murmuraste qualquer coisa sobre o que faltava e compreendi que não era preciso dizer mais nada. As coisas podem parecer perfeitas e, depois, sim, depois, acontece que o sonho se quebra por não ser um sonho numa bolha ao abrigo do poder de Deus. Tu dirás natureza. Eu não te vou contradizer.


         Nessa noite, de vestido e sapatos, com frio e sem saber como os meus seios se viam à transparência, eu, a miúda sem peito que não usa soutiens, estava espantada com a sala de concerto, com a elegância do teu fato e a música... Bom, sobre a música não preciso de te recordar por nos termos comovido ao mesmo tempo. No final, tu disseste que, não sendo um ortodoxo do seu tempo, começavas a entender Mahler. Eu só queria entender-nos. O meu coração era uma partitura por encher e estava à espera. Dirás que a metáfora é fraca e tens razão. O amor é estranho e nem podemos esperar pela sua coerência. Quando voltámos, no avião, tu pediste


 


Canta-me uma can çã o.


 


Escolhi body and soul. Não te expliquei porquê.


       As explicações são actos de um egoísmo e presunção e maldade e... haverá mais para dizer, não me ocorre, perdoa-me, uma explicação é levantar a cortina e fica tudo exposto ou apenas uma parte e nós só éramos uma parte, mesmo no ar, já não estávamos um no outro. A tua mão soltou-se da minha. O porquê importa pouco; o avião aterrou. O meu adeus foi sussurrado e os teus dedos procuravam um cigarro e eu tentei sorrir e pedi que fosses, precisava de levantar dinheiro. E tu a querer saber quanto dinheiro queria e eu a virar as costas, as lágrimas de dor ou incompreensão. Nunca seria uma relação, uma potencial família. Consegui antever todas as prendas que trarias das viagens onde seríamos outros e onde, por razões insuspeitas, te deixarias arrastar para locais que não faziam parte do teu território, como o bar de jazz ranhoso, o bistro barato, a loja de crepes na rua. Para falares a minha linguagem seria preciso descer de uma qualquer nuvem já que, apesar dos sapatos que ainda tenho, do vestido preto de costas abertas, guardado num cabide especial, nunca seria a outra da tua vida. E o nunca ficou entendido com a recusa do teu dinheiro.


       Hoje posso dizer que apanhei o autocarro. Na minha mala de nómada levava o vestido, os sapatos e uma história. No saco levava o teu coração, porém não o entendi e tu não mo explicaste. As tuas frases enganam, sabes? Não dizes muito sobre ti e eu só andava a caçar borboletas em extinção, certa da sua morte. Hoje sei entender o que me podias ter dito numa frase apenas. Uma frase pequena


 


     Amanh ã ...


 


e eu diria que sim com um beijo que ninguém veria e o mundo manteria a sua rotação. A tua boca manteve-se cerrada e ela à tua espera. Voltei as costas e assim passaram-se anos. Nessa noite, ajudei a minha mãe a fazer a ceia de Natal e não pensei em ti.


 



minueto

A vida não é o ideal imaginado. É como aqueles bonecos animados que correm e deixam rasto, pode ser que escapem ao dinamite, à rocha que ameaça cair numa avalanche. Nunca se sabe exactamente nada e tudo pode mudar em segundos. Foi o que aconteceu. O trabalho começou ser demasiado exigente. Para quê um curso de escultura, perguntara a família. A minha irmã riu-se, estridente, e queixou-se da enorme falta de modéstia de algumas pessoas, mudando de assunto rapidamente. Se eu queria ser uma artista desgraçada, pois que o fosse mas sem maçar o resto da gente trabalhadora, verdadeiramente contribuinte.


Foi com surpresa que todos, incluindo eu, receberam a notícia da bolsa de estudos para ir um ano para fora. O meu sorriso, diria que vingativo - ou dirias tu se o tivesses visto - não serviu de muito, porém recebi os abraços e felicitações da ordem. O meu pai disse


 


Olha, vê lá agora não estragas tudo.


 


Não me admirei, nunca me admiro com o meu pai. Nunca viu uma exposição na vida, nunca compreendeu o que era essa coisa de ir para Belas Artes e chegar a casa fisicamente tão cansada que não sabia fazer mais que dormir ou ouvir música. As queixas sobre mim significavam apenas desilusão. Quando saí de casa, pouco antes de te conhecer, estava a acabar o curso e decidira dividir uma caixa de fósforos com uma amiga. Sentia um sufoco que em casa dos meus pais podia ser descrito como algo similar ao sufoco das pessoas que sofrem de asma. A bolsa de estudos chegou. Meti numa mochila e num saco os discos e os blocos de desenho, a roupa mais quente e apanhei um avião que, pela primeira vez na minha vida, atravessou o atlântico escuro sem eu entender que tal enormidade é possível. Tive medo quando o aparelho começou a deslizar, quando levantou, assustei-me com uma vaga turbulência e quase chorei quando aterrou. Para salvação tinha apenas uns headphones e ouvi Bach por Glenn Gould vezes sem fim, no modo repeat, para me sossegar. Uma vez no aeroporto, a confusão espantou-me. Eram quatro da tarde. Chegar a Newark não era em nada igual ao que é hoje. Ninguém me pediu para tirar os sapatos, não vi cães a cheirar malas, polícias com um ar mais severo. Dizem que depois do 11/9 tudo mudou. É verdade.


Não fomos os dois ver o ground zero mas levei a minha filha num carrinho de criança, ela a brincar com um elefante de peluche, enquanto eu chorava. Um buraco é um lugar de morte e emoção. Isso eu já sabia, qualquer escultor sabe. A matéria, a pedra, a lama, o ferro, a areia, tudo tem um significado e o mesmo muda conforme a disposição. Um escultor joga com a matéria para provocar emoções. O ground zero não é arte, mas, como diria Vergílio Ferreira, um contra-monumento. O escritor usou a expressão para definir o campo de concentração de Dachau. Contra-monumento. Nova Iorque é uma cidade que passou a ter essa cicatriz. A minha filha, chama-se Mia, não deu por nada e, nessa noite, via-a dormir ao som dos dedos mágicos de Keith Jarrett e atirei-me ao estirador com uma vontade e raiva quase desconhecidas. Isto foi três anos depois de ter chegado aos Estados Unidos.


A fundação que me atribuíra a bolsa não queria que me fosse embora. A directora disse


 


É muito ambicioso o que tenciona fazer. Acredito em si. No seu futuro.


 


Não me lembro de ter respondido. Estava convencida de que era um projecto demasiado grande para alguém como eu: uma mistura da minha visão do mundo e de todas as influências clássicas, nada muito moderno ou vanguardista. Quando todos os bolseiros mostravam peças e instalações abstractas, eu optara por fazer de uma escultura um jardim por onde as pessoas caminhassem, tocassem e ouvissem música. Era - ainda é - uma peça com trinta metros, se os contar de forma linear, com três de largura. Era o labirinto da Alice no País das Maravilhas e era a minha cabeça em simultâneo. Pretendia, estávamos no fim da década de 90 do século XX, criar algo que fosse mais próximo das pessoas e exigisse interacção. A directora tinha o meu portfólio e sabia que todo o meu trabalho escapava ao habitual. Disse


 


As ideias t ê m todas m ú sica.


N ã o sei fazer nada sem m ú sica.


 


Não me perguntes, num ímpeto dei-lhe o meu velho discman - ainda te lembras dessas coisas? - e pedi-lhe para ouvir. Não era clássico ou jazz, era fado. Amália. Vi-lhe lágrimas nos olhos e sorri. Apesar de não entender português, a directora comoveu-se. Contei-lhe que Amália tinha vindo para Nova Iorque com o intuito de se suicidar e que os filmes de Fred Astaire a salvaram. Pareceu compreender.


Comecei a trabalhar num armazém da fundação, a música nos ouvidos e – posso garantir - sem pensar em ti. Meditava apenas nos materiais: a substância, o volume, a espessura, o tempo de secagem. O meu jardim de metal e pedra, de gesso e areia. Misturava, experimentava, deitava fora, morria de frustração, estava exausta ao fim de pouco tempo e deixei de comer. O jardim era uma obsessão. A minha mãe escreveu a dizer que vinha fazer uma visita e eu vomitei. A maioria das pessoas não entenderá, mas fazer o quê? Não te vou mentir. A minha mãe ficou uma semana, viu o armazém, a que chamou atelier por uma qualquer razão que me escapou, perdeu-se em Chinatown e comprou tudo o que lhe pareceu barato. Acompanhei-a, tentando contar a história disto ou daquilo, levando-a aos museus mais importantes e, claro, sendo arrastada para um musical que ainda hoje está na moda. A Broadway muda, mas não muda tanto assim.



rondó

Sem ti, vendo a minha posição na fundação ganhar força, coleccionadores especiais a visitarem o espaço para verem o meu trabalho, tudo isso fez com que eu deixasse de ser a miúda de Paris. Posso dizer que usei o teu vestido e calcei os sapatos na apresentação conjunta e, sem temer comentários, outra vez na primeira exposição individual. Curiosamente, ou talvez não, a minha apresentação foi durante a festa de Natal da fundação. Um acontecimento anual de extrema importância, foi o que me garantiram durante semanas. Nesse dia, quando regressei a casa, bebi um copo de vinho e ouvi Mahler, a Canção da Terra, e despedi-me do compositor. A sua música perdeu-se em mim.


Quando vendi a primeira peça, o tal jardim que está na entrada impotente de um grande edifício, decidi que vodka preto seria a minha bebida. Nessa noite, sem grande memória, a Mia foi concebida. O pai é um músico que andava então pelos bares de Nova Iorque e que hoje estará algures, pouco importa. Dirás que tem direito a saber que é pai. Tem, não o nego. Não me apeteceu procurá-lo quando descobri que estava grávida porque naquela noite, a noite em que descobri a vodka, o sexo foi uma sucessão de gestos mecânicos e não me lembro de nada. Na manhã seguinte, já perto das duas da tarde, um daqueles sábados glaciares na cidade, ele já não estava. E que importância tinha? Nenhuma. Tomei um comprimido para a dor de cabeça e comi cereais. Dois meses mais tarde descobri que estava grávida e não sabia nada daquele homem que fora apenas um corpo. O único homem que ocupava, por vezes, a minha mente eras tu. Os movimentos do teu corpo. Fiz uma escultura assim: um homem sentado a fumar. Levei meses. Queria que fosses tu e não queria.


Não vieste atrás de mim, pois não? Depois de Paris, nesse dia do regresso, deixei uma mensagem a dizer que não voltaria à empresa. Que tinha um novo emprego. Não era verdade, nem era mentira. Todos os meus empregos foram fugas, formas de evitar o inevitável. Ser artista nunca foi um estatuto. Significava, e o meu pai não se cansava de mo lembrar, tal como a minha irmã, que não iria a lado algum. A bolsa de estudo salvou-me e, depois, a fundação e a directora. Havia algo nela que se aproximava de ti. Não gostava de perfeição. As pessoas – os bolseiros – tentavam todas as manobras para a seduzir, para ter uma relação com ela. Eu limitava-me ao aceno de cabeça, sempre com a música nos ouvidos. Quando queria falar tocava-me no ombro, eu carregava no stop e olhava-a fixamente. Ela fazia uma ou outra observação sobre o trabalho. Quando a bolsa estava próxima do fim, chamou-me ao gabinete


 


Gostava que ficasse. Como coordenadora dos bolseiros.


N ã o sou boa a lidar com outras pessoas.


Aprende e tem um emprego e um espa ç o para continuar o seu trabalho. A funda çã o quer que fique.


 


Não se discute com uma pessoa assim. Talvez por ter acenado positivamente não tenham existido, posteriormente, comentários sobre a minha gravidez. A Mia nasceu numa sexta feira 13, a última do milénio. Dois dias depois estava de volta à fundação, a Mia numa cadeira mínima. Deixei de usar headphones. Comprei um aparelho pequeno e mantive o volume baixo para não a incomodar. A minha filha cresceu assim, no meio do pó e dos artistas, de música, com uma mãe que, de repente, percebeu que se sentia tão sozinha que a maternidade era uma bênção. Falava com ela constantemente. Sempre na nossa língua. É um património.


Nesse ano, fui a Portugal passar o Natal, mostrar o rebento, enfrentar a tempestade que se resumia à pergunta sobre o putativo pai. A minha vontade, para ser completamente sincera, era dizer que o pai era uma garrafa de vodka. E mesmo quando insistiram comigo, pormenores de legalidade, o que colocara no registo do nascimento, que nome de que pai, eu encolhi os ombros. Quando a registei dei o teu nome e passaste a ser pai. Pareceu-me o mais natural e conseguia imaginar-te a chegar com um urso gigante para ver a menina. Tinha assim uns cenários que me moviam para dentro de um filme que nunca seria o nosso, mas pouco importava, estava consciente da ficção. Nunca me iludi.


A Mia nunca perguntou pelo pai. Na escola existem muitos meninos e meninas sem pai ou sem mãe, ou com dois pais e duas mães. A América também é isso.


Sem me dar conta ganhei o meu estatuto de artista com propostas de agentes e uma carreira internacional. Quando ia a Portugal já não era invisível. Disso não me podiam acusar. A minha mãe queixava-se da distância e de a única neta ser criada longe do seu colo. Nunca mais ouvi qualquer comentário da minha irmã e o meu pai remeteu-se a um silêncio que eu, interiormente, agradeci.


Estava neste estado semi-adormecido, focada na Mia e nas coisas do trabalho, nas novas ideias e solicitações, ouvindo ópera de uma forma obsessiva, outra vez, quando tu me telefonaste. Era dezembro outra vez e eu estava em Lisboa. Nunca perguntei como tinhas conseguido o meu número. Almoçámos num dos meus restaurantes preferidos no Bairro Alto. Cheguei mais cedo. Queria ver-te, medir a forma do teu rosto, os movimentos do teu corpo, perceber se ainda te via no meu. E tu, com a calma de quem vem animado, um sorriso nos lábios e depois, como se fosse natural, nada ensaiado, sem qualquer pudor, depositaste um leve beijo nos meus lábios. Estávamos de novo em Paris. Senti uma tontura e depois sorri. Tu disseste


 


Ser á s sempre uma das mulheres mais estranhas que conheci.


 


E desatámos a rir. Ser estranha, eis um rótulo antigo, desde sempre e, no teu caso, era evidente que o podias dizer. Já não era uma miúda, não perdi o chão. Encomendámos qualquer coisa e conversámos como se não se tivessem passado anos. Vi a tua aliança, diferença da anterior, e perguntei


 


E a Isabel? Como est á ?


Penso que bem. Divorci á mo-nos h á cinco anos.


E a alian ç a?


Ah, tu sabes que eu posso casar muitas vezes.


 


Pois podes. Suspirei. Para te chocar abri a pasta de fotografias no telemóvel e fiz-te um resumo da curta vida de Mia. Como é impossível ficar indiferente aos encantos da minha filha, foste tu quem suspirou.


 


E o pai?


N ã o fa ç o ideia.


Vens para ficar?


N ã o. Regresso a Nova Iorque daqui a dois dias.


Talvez te v á visitar.


 


Os papéis estavam invertidos. A música que tocávamos era desconhecida. Eu não percebi o tom. Tu terás compreendido tudo, como te é habitual. Quando nos despedimos foi com um abraço e eu podia ficar ali, escondida no perfume do teu casaco, no cheiro que é só teu. Mas há limites e, em plena Praça Camões, foste para um lado e eu para outro. A razão do teu telefonema? Quando perguntei, riste e disseste a palavra saudade, com ternura.


 


E é Natal, não sabes?


 


Ao almoço fizeste perguntas sucessivas sobre a fundação e o meu trabalho e, já depois do abraço final, já virado na direcção oposta à minha, tu gritaste


 


Olha que te vou fazer uma encomenda de trabalho enorme. Prepara-te. E eu s ó gosto de ferro.


 


Ferro. Tu que amas a minha instalação, o meu jardim imperfeito, achaste que me podias atemorizar com um material. O ferro é meu amigo, ainda estive para dizer em voz alta, mas não o fiz. O trânsito estava caótico e a Mia à minha espera.


De repente percebi que Lisboa já não era a minha cidade.


Podemos amar uma cidade ao ponto de a sentirmos como alguém da família. Lisboa sempre foi o meu espaço, apesar disso, naquele momento, senti-me estrangeira. O que pretendia era afastar-me de ti. Anos volvidos estava lá tudo, novamente: a mesma imagem dos dois, o teu sorriso ao canto da boca, a forma como fumas, o teu vocabulário peculiar e a minha vontade de te dar a mão. Repreendi-me por isso e, como forma de castigo, bani-me da cidade. Da minha cidade.


 



finalle

Passaram-se dois anos. A Europa já não era o meu chão. O meu pai morreu de forma súbita e a minha mãe, ao telefone, disse


 


N ã o venhas. Vem no Natal. Vou precisar de ti no Natal.


 


Obedeci. A Mia viu as fotografias do avô e perguntou numa miscelânea de americano com português se eu estava muito triste. Respondi que sim e que não. A morte faz parte da vida. Ela deu-me um abraço e ligou à melhor amiga.


 


M ã e, a Hailey pode dormir c á hoje?


 


A vida, como o planeta, gira. Nada interfere e tudo pode enlouquecer-nos. Comecei uma nova série de esculturas, uma encomenda e, quando reservava as passagens para Lisboa vi-te passar. Tu, em Spring Street. Um sobretudo cor de camelo, uma mulher pela mão, alguém que mirava as lojas com uma avidez ou com o que me pareceu avidez. Nova Iorque estava engalanada para as festas. Mia e eu tínhamos celebrado o Hanuka com uns amigos judeus. Disso saberás pouco. Despachei a mulher da agência de viagens, a mesma que continua a querer que eu faça tudo on-line por mais que lhe explique que sou uma info excluída. Segui os vossos passos, arrastando a minha filha que não entendia o meu objectivo e, já em Prince Street, chamei-te, alto, pelo nome. Vi o teu corpo, esses movimentos que me assaltam ainda, sempre que me deixo ir por aí, sorri e desatei a correr para o outro lado da rua, eu, alguém com pressa mais uma miúda com as unhas pintadas de azul. Tu, perplexo, parado e eu a gritar


 


Feliz N atal!


 


Não sei se respondeste. Pouco importa. Soube então que nunca mais te veria. Tal como deixei de ouvir Mahler, deixei-te morrer dentro de mim nesses dias antes do Natal.


A Mia perguntou


 


Quem é ?


E eu respondi, sorrindo


 


É algu é m que podia ser o teu pai.


 


Ela sorriu e apertou-me a mão. E eu lembrei-me do tal Pai Natal, há muito tempo


 


É dezembro, temos de ser melhores em dezembro. É dezembro, temos de ser melhores em dezembro...



 

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Published on December 06, 2016 03:41

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Patrícia Reis
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