Fernando Ribeiro's Blog
March 30, 2011
TRVE
"Margarita olhou e respirou fundo. Tudo isto tinha sido ideia de Cecília, Ceci, a implacável manager de Natalie, que várias vezes reduzia o seu gosto apenas aquilo que funcionava, não olhando a tradições ou a reivindicações de pureza. Uma acção de Natal, com Natalie, no Great Mall of América, em Minneapolis, nos Estados Unidos, tinha ficado famosa. Cecilia tinha enchido o centro comercial com os seus Pais Natal/Vampiros, que distribuíam gomas vermelhas pelas crianças e envelopes vermelhos com saudações de Natal vampíricas e marcadores do livro novo de Natalie. Mandou montar dentro do centro uma montanha russa, obrigando a administração a desmontar a montanha russa residente, para a substituir por uma, desenhada pelos criadores do cenário dos filmes adaptados dos livros de Natalie. Entrava-se por uma boca gigante, com os caninos afiados e subia-se vertiginosamente para depois cair a pique, passando os carros (todos vermelhos em forma de cálices curtos) por uma poça de sangue falso. Hologramas das personagens dos filmes interagiam com o comboio, seguindo as pessoas, sentando-se ao lado delas, quase palpáveis, culminando tudo numa recta velocíssima, e cheia de suspense, entrando num flash vermelho nos olhos de Stuart, o vampiro protagonista da história.
Do outro lado milhares de pessoas sujas e molhadas de sangue falso, compravam toalhas do merchandise oficial de Natalie. Tinha sido um sucesso! Passaram pelo centro nesse dia mais de cem mil pessoas e praticamente todas estavam agora em casa, a saborear o entretenimento de Natal, a aquecerem-se às lareiras, lendo as aventuras de Stuart, Celta, Robinson, Vix, Noctis, no liceu, na universidade, no campus, nas florestas irreais dos subúrbios, disputando, golpe a golpe, fala a fala, os destinos de todos os vampiros desta geração."
"Por isso, Maeva e a sua posse, mantiveram os cumprimentos curtos e eficazes. Afinal percebiam como ninguém que o corpo é apenas a concha mortal da interioridade que nos manipula e nos faz materializar através da técnica artística o mundo interno que se vive, a missão que ele cumpre e a inscrição sensorial dessa mensagem, estado, pensamento, emoção. Maeva sabia perfeitamente que aqueles quatro seres e os seus acólitos que inauguravam e fechavam a procissão edipiana da banda até às margens do povo and back, eram quatro invólucros de fibras, ossos, carnes e nervos, aos quais agradecia a espreitadela ao seu interior, o turbilhão de electrónica, de palavras acesas como lâmpadas que queimam os olhos, pelo ritmo e pela coragem e principalmente pela confirmação da sua mortal profundidade.
Maeva elaborava nesta teoria da mortal profundidade com os seus amigos na bistro da família de, nunca se percebia de onde, nesta teoria de que eles e quem se juntava a eles eram apenas a tal concha, o tal invólucro mortal, como a banda, uma espécie de organismo, de corpo que transportaria o sangue, a mensagem, a informação e executaria o plano conforme ela e Nobby, que reclamavam para si o estatuto metafísico de alma, uma coisa entre corpo, coração, cérebro. O núcleo duro ali sentado seriam as pernas, as tetas, a massa cinzenta, os braços, os dedos. Teriam de se desresponsabilizar do mundo, das terras, dos amores e concentrarem-se na vingança sobre quem tinha vestido à sua raça milenar pólos da Lacoste, sapatos da Diesel, calças da Levis. Até agora o plano tinha corrido às mil maravilhas. O concurso, o desenho da estrutura, a sua montagem, as identificações falsas. Maeva trabalhava, sobre o jocoso aliás de Madeleine Crouton, já há mais de dois meses no pavilhão 1 do Salão do Livro."
resto de boa semana!
March 21, 2011
No dia mundial da poesia
"Um poema nunca se acaba, abandona-se"
Paul Valéry
No Dia Mundial da Poesia, relembro a todos o poema de Padrón, já aqui publicado numa outra ocasião. As boas coisas tem uma autorização superior para serem repetidas. Os contos evoluem da melhor maneira, conto acabá-los muito em breve e enviá-los para revisão. A capa do livro que conterá os dois contos será executada por João Maia Pinto. Boa semana a todos.
(http://www.facebook.com/people/João-M...)
Mais que um filho
Mais que um filho, é um escravo, o poema.
É parte dos teus sonhos indomáveis,
Um farrapo da tua alma sucessiva,
Um monte de palavras que salva a tua memória
Dos momentos plenos do deserto.
Por vezes é o eco incompreendido
Da tua própria consciência ou de outro sangue
Que em ti palpita sem que tu o saibas.
(…)
O poema é um corpo abstracto, talvez um ser
Misterioso de que és o seu deus único.
Podes embelezá-lo ou deformá-lo
Com a perversidade de um tortuoso castigo
Até torná-lo céptico, canalha ou taciturno,
Perante a lucidez dura de teus olhos.
(…)
há poemas obscuros e assassinos
que nos espiam com a sua adaga levantada
há outros juvenis, tersos, apaixonados,
cuja directa luz desnuda o fogo.
Também os há ociosos, brigões, lascivos,
Curiosos ou ignorantes que perguntam
Sem que jamais possamos responder-lhes.
Um poema é, enfim, um látego desditoso
Uma alma solitária trespassada de repente
Pela densa dor que o convoca
JJ Padrón
March 10, 2011
Cabaret Seixal e excerto do conto Exercício de Cidadania
Este conto, juntamente com outro de nome TRVE, será parte da colecção de mitos urbanos, com a chancela Gailivro (grupo Leya), a editar em livro em meados de Maio.
O conto Exercício de Cidadania narra a história de ZP, um serial killer, que caça politicos. Não é intervenção, é ficção. Enjoy!
"ZP não chamava a atenção. Corria o pais na sua carrinha. Ficava em pensões e hotéis de três estrelas no máximo pagos pela Hidromundo (gota a gota matamos a sede do planeta). Comia na pensão e guardava sempre o cartão de visita que vinha agrafado às facturas. Cada vez que repetia uma cidade, repetia a hospedaria. Planeava o seu mapa-morte de acordo com as suas deslocações, intervalando sempre a caça com um esquema simples:
- Nunca matava na primeira visita embora observasse a vítima no seu habitat. Os trabalhos de fiscalização e de administração duravam três a quatro dias sempre. Cobria a cidade mas também os arredores.
- À segunda ou terceira visita efectivava o crime, despejando os corpos em ambientes sempre coincidentes com os desaparecimentos. Por exemplo, quem se afogasse, ficava nas margens, escondido de uma maneira que levasse cerca de dois ou três dias a encontrar. Neste âmbito inclua casas, planícies, sítios em obras, que tinham a vantagem de encerrar em si desde logo a própria história, sem grandes perguntas.
- Não deixava pistas ou então criava artificialmente vestígios que esbarrassem nas burocracias e nas perícias técnicas da Policia, que conhecia e tinha estudado e que sabia que estavam limitadas aos cortes de orçamentos tantas vezes assinados por vítimas ou candidatos a vítimas.
- Acompanhava os casos até uma certa altura, desfazendo-se depois de todos os registos que o pudessem ligar ao acontecimento. Usilva fazia exactamente o mesmo.
ZP era uma pessoa dupla. Essa qualidade permitia-lhe uma flutuação de sentimentos. O sexo e a morte era ideias rápidas e violentas. Não lhe ocupavam o tempo suficiente a ideia. Assim, mantinha-se longe da pulsão até bem perto do principio e do fim do acto. Tinha um gatilho que desligava e lhe permitia a banalidade de pensamento e de acção. Comia o bife da casa no restaurante de pensão em Alfandega e este merecia-lhe tanta consideração como o bandido que fazia as cooperativas da sua terra fecharem e os trabalhadores suicidaram-se ou se entregarem ao ócio e aos vícios, falecendo em vida. Nunca tinha comentado os seus métodos como ninguém e até Usilva sabia, apesar das insistências deste, apenas informações gerais, algumas até por via indirecta. Era como jogar as cartas. Usilva sabia que cartas tinham calhado a ZP mas durante o jogo, havia um puxão da toalha que cobria a mesa, os copos entornavam o vinho que bebiam, as garrafas de cerveja explodiam espumosas nas cartas, tudo se misturava, o jogo tinha ido até ao limite, nunca chegando ao fim. Depois de limpa a mesa, baralhavam, partiam e tornavam a dar.
Não era de poucas palavras. Nem de muitas. Não vivia na escuridão, nem na luz. Participava na área cinzenta como quem sai para dar uma volta ao parque e volta para casa sem ser visto por ninguém. Não era cruel mas sabia sê-lo perante as medidas. Não se sentia um justiceiro, nem um matador e sabia que nunca iria ser um herói. Tinha, contudo, uma ideia de justiça que lhe parecia colorir a sua vida banal e como aquele homem que vive e vai todos os dias ao café, à campa da sua mulher colocar flores, ao quiosque comprar o jornal, o bom dia à empregada da portagem, que vai dar uma volta com o cão, que compra todos os dias o pão, duas carcaças, dois integrais, até se tornar invisível nas suas acções, parte da rua como a árvore da esquina, o marco antigo do correio, as bilhas de gás atadas por correntes à porta da mercearia. O chão que se pisa sem olhar. Como o chinês, transformado no que o rodeia. Camuflagem simples, despretensiosa, aproveitando a indiferença dos rostos.
Tinham sido até agora, vinte três. No norte do pais, terreno fértil de corrupção, tinha despachado dez. Acidentes de carro, acidente de caça, queda em poço. No Sul, apenas dois até agora. Caramba, tinha crescido por lá. Enforcamentos. No centro do país, com uma área mais extensa, do litoral ao interior, os restantes. Queda de andaime em pleno dia, ataque cardíaco depois de almoço farto, afogamentos em barragens, morte súbita."
February 23, 2011
Já amanhã na FLUL
Fernando Ribeiro dos Moonspell dá Lição na Reitoria da Universidade de Lisboa
Amanhã, Fernando Ribeiro dá uma Lição, às 18 horas, na Sala de Conferências da Reitoria da Universidade de Lisboa, subordinada ao tema, Filosofia e Rock - como viver no mundo da poesia eléctrica.
O ciclo Cem Lições, inserido nas Comemorações dos 100 Anos da Universidade de Lisboa, está a decorrer desde 24 de Janeiro a 12 de Maio, de segunda a sexta, às 18h. na Sala de Conferências da Reitoria da Universidade de Lisboa. Isabel Alçada, António Costa, António Lobo Antunes, Francisco Pinto Balsemão, António-Pedro Vasconcelos, Elisabete Jacinto, José Mário Branco, Lídia Jorge, Manuel João Vieira, Maria João Seixas, Maria José Morgado, Teresa Patrício Gouveia são alguns dos antigos alunos que regressam às cadeiras da Universidade de Lisboa, para darem 100 Lições.
Conto convosco. Um abraço.
February 18, 2011
A vista do meu quarto
A Terra conseguiu a atenção das chuvas
O chão molhado, a silvar esta ausência de ti
Numa estação próxima, alguém corre para apanhar o tempo
Tonitruante, a utilização das linhas que te levarão
A saber colheres o insulto e fazer dele algo que possas
E devas usar
Bloqueado pela madeira da porta
Alguém abre lá fora a paisagem
De um cenário doméstico
Há um cheiro a calor
Há sangue no chão
Há um principal suspeito
De faca na mão
As chuvas acabaram por violar o teu voto de confiança
À estação ninguém chegou
Todos partiram em silêncio
A tua sombra tornou-se maior
É o Sol que nasce
Ignorante do crime
Ignorante do fim
Queimando a pele
Dizendo que sim
PS:
Dia 24 de Fevereiro estarei na Reitoria da Faculdade de Letras no âmbito da iniciativa 100 Lições a partir das 18.00. Darei informação mais detalhada do tema aqui e no facebook em breve. A entrada é livre.
Dia 25 de Fevereiro estarei no Cabaret Seixal (http://www.myspace.com/cabaretseixal/...) e irei ler poemas do meu próximo livro de poesia Purgatorial bem como excertos de um dos contos/mitos urbanos que estou a escrever para a Gailivro e que se chama Exercício de Cidadania (sobre um serial killer que mata politicos). Mais informação no meu facebook. O bilhete custa 4€.
Gostava muito que aparecessem. Bom fim de semana!
February 13, 2011
escolha uma opção
nas ruas corro atrás da vidao meu tempo medido pelas coisasque consigo fazerno regresso lamentoo que ficou por fazer
os lábios tocam o vidroparece a pele de alguémque acabou de acordarquente de um sonho
talvez alguém numa outra rua da Terrarepita os meus passos num caminhar lento que respira suavesobre um chão de folhas caídasno passeiode volta a casa, alegre talvezcontando as pequenas vitóriasdo dia
a cabeça toca a leveza das almofadassente-se a liberdade da tarde que partefecham-se as janelas da salasobre uma tranquilidade maiorque todo o tempo
compensando o que fica por fazerno
February 4, 2011
Em nome de uma fome maior
Hoje aqui volto, espero ainda encontrar-vos. A vida prossegue, sem nós sabermos, em nome de uma fome maior:
Em nome de uma fome maior
Há que começar finalmente a beber
a água das chuvas
para que possamos deixar de ser
aqueles que apenas
antecipam a sede
há que começar a viver
para deixarmos de ser
aqueles que apenas observam e apontam em cadernos tristes
tudo e todos quantos chegaram ao fim
há que fazer de cada palavra uma jóia
há que fazer de cada palavra uma fortaleza
de cada detalhe um mundo de minúcia brilhante
de cada som toda uma linguagem
de labirintos transparentes onde possamos encontrar
os nossos e confundir os outros
aproveitemos o facto de respirarmos ainda
para responder às ofensas
de quem nos quer mal
nunca perdoando
deixemos o perdão, este perdão para as ficções
dos inuteis
patrulhemos com a verdade dos nossos exércitos e armas brancas
as terras que nos dão chão e ar
que nos matam a fome, a sede e a expectativa
que nos fazem ser alguém mais do que aquele ninguém
tudo o que fazemos
o estranho, o discutível, o polemico, o invisivel
é feito em nome de uma fome maior
tudo o que somos
devorado por esse apetite da alma
quem entende será acolhido à nossa mesa
quem nos despreza receberá a chicotada
de ter de viver com o nosso sorriso
nunca sabendo quando é ele
verdadeiro
ou
falso.
May 17, 2010
a indiferença do movimento perante o que o repercute
a dor de cada um
e a cada um nos parece
que a nossa dor é universo perante migalha
edificio perante flor
trovão perante uma haste fina
que só o repercute
tudo
só porque nos dói
a nós
de dentro
tudo só
porque a dor dos outros
não a sentimos
apenas intuímos
e já assim é terrível
uma
dor de pesadelo
de lâmina sobre o olho que tudo vê
cego no sonho
aceso com a chama eterna
da angústia
é verdade,
a terra gira sempre
mas nem por isso sentimos menos
o seu tremor
onde estás amigo? anda para ao pé de nós.
April 16, 2010
Extinto (a um amigo influente)
Dentro do vidro
A neve cai
E cobre o teu corpo
Afável gigante
Jóia de prata verde
Detrito
Casualidade partida
Na testa mutilada do mundo
À beira de um novo ataque
Para não incomodar a coreografia
A esta hora já regressam os corvos
Ao teu jardim
Sei que paraste de respirar nas folhas
De manusear as lamas
E que te deitaste ao lado
Da vida que corre no espelho do lago
Olhos fechados com a terra das margens
Vejo-te correr para bem longe daqui
Até ao mais denso do verde
Vejo-te ajoelhar silenciosamente
Para te observares
Ainda vivendo
Falando com os teus
E com os outros
Mostrando-lhes as tuas mãos vazias
Ensinando-lhes a tua vertigem cor de plantas
Sentido proibido, imagem
Parábola, carambola
Treze no buraco
Denunciado pelas paredes do vidro
Sais finalmente em liberdade
Diriges-te ao bosque
Para confrontares o teu corpo morto
Exigir explicações
Desafiá-lo para um duelo
Ao pôr-do-sol
Quando morreste
Mataste algo de mim
Coisa pouca que seja
Mas que faça de mim
Um homem melhor
Um sítio melhor
Para a tua memória viver
Descansa em paz Peter.
April 9, 2010
Flor na cicatriz do granito
Como se das chamas saísses tu ilesa
De amores falhados
Como se da chuva eu bebesse
E saciasse a sede de ti
Como se de uma rocha onde se gravou
A violência do mundo
Saltasse uma pedra como mensagem
Que se arremessa à cabeça de um gigante
Como se todo o tempo fosse essa ou outra tarde
Como se numa concha coubesse mesmo um mundo
Como se nos valessem os anos sofridos
em alfabetos de silêncio
Como se o caos se detesse por um momento
Para te ver a sair do fogo
Para te beber na chuva
E colher-te
A ti
Flor na cicatriz do granito
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