Mauricio Lyrio's Blog
May 9, 2021
Voss
Dizer que um romance é sobre a busca do inapreensível soa clichê, já que a carapuça é larga e ajusta-se a muitos, mas no caso de “Voss”, escrito em 1957 pelo australiano vencedor do Nobel (1973) Patrick White, a afirmação parece exata: White escreveu um formidável romance expressamente sobre a busca do que não se pode alcançar.
Johann Ulrich Voss é um alemão na Austrália semivirgem do século XIX, protagonista de uma obsessão dupla: de um lado, o desejo de travessia ponta-a-ponta do continente australiano, nunca antes realizada; de outro, quase como um desdobramento acidental da personalidade obsessiva, a paixão tortuosa, platônica por uma jovem, Laura Trevelyan, tão interessante em suas convicções quanto convicta em seu sedentarismo. É o velho (e improvável) amor dos opostos, entre o explorador que desbrava o interior inóspito de um continente-ilha e a independente, mas no fundo comportada, sobrinha de um casal abastado, colonizador, na Sydney dos anos 1840. O território e o amor são espaços inconquistáveis, e um campo funciona como metáfora do outro.
Embora australianos, White e seu livro são profundamente ingleses no tema e no estilo. A obsessão britânica pelo choque entre convenções sociais e o abismo da exploração colonial, onde padrões e personalidades são tensionados até o limite da ruptura, está no centro do romance. Patrick White junta-se ao americano Henry James e ao polonês Joseph Conrad na nobre galeria de estrangeiros mais ingleses que os próprios ingleses, encantados com o confronto entre “civilização” e “barbárie”. As cenas de convivência de Voss com os aborígenes no centro da Austrália, especialmente quando eles o mantêm preso, são dignas do Conrad de “Heart of Darkness”. White realiza muito bem o romance de contrastes (colonizador e colonizado, cidade e interior) que o londrino Evelyn Waugh tentou fazer, sem o mesmo vigor, duas décadas antes, em “A Handful of Dust” (1934), em que o protagonista Tony Last, mais entediado que indignado com a traição da mulher em sua mansão inglesa, resolve buscar na Amazônia uma cidade indígena perdida.
Patrick White é um brilhante construtor de personagens. Voss e Laura sobressaem tanto por dilemas amorosos e existenciais, como por ações e gestos. Difícil o leitor não ser marcado por um e por outro, já que White lhes dá, com um zelo de escritor obsessivo, enorme complexidade e estatura.
Sua opção de narrativa não é sem risco, no entanto: com imaginação quase ébria, White revela os personagens por meio de metáforas ousadas, exorbitantes em alguns casos, e tem-se a sensação de que o autor nunca se distancia ou se esconde da obra, e parece querer dizer ao leitor que não abre mão do controle, sempre presente com um comentário ou imagem inusitada a fim de esgotar e dissecar psicologicamente cada um deles. Às vezes, o efeito é magnífico: “Mr. P. was bald, with a moustache that somewhat resembled a pair of dead birds.”
White não recorre ao discurso livre indireto adaptado às características e ao pensamento dos personagens; ao contrário, todos são vistos pela ótica onisciente do autor. E todos os principais personagens, como Robarts, le Mesurier, Palfreyman e Judd, aparecem tão vivos e complexos como Voss e Laura. Harry Robarts, por exemplo, que integra a expedição de Voss, aparece à nossa frente genuinamente como um garoto grandalhão e ingênuo: “Poor Harry Robarts was an easy shadow to wear. His wide eyes reflected the primary thoughts. Voss could sit with him as he would sit with still water, allowing his own thoughts to widen on it.” Já Frank Le Mesurier, outro expedicionário, destila o cinismo de um improvável poeta clandestino: “It was known, however, that he liked to discuss God, after he was drunk, on rum for choice, ploughing through the dark treacle of seductive words and getting nowhere at two o´clock in the morning. Getting nowhere. If he had become coolly cynical rather than embittered, it was because he still entertained a hope that it might be revealed which part he was to play in the general scheme.”
Apesar da complexidade dos personagens, “Voss” não é exatamente um romance de análise psicológica. Tampouco um romance histórico sobre a colonização. É em grande medida um épico da conquista (ou da impossibilidade da conquista), tanto territorial como amorosa, que revela uma Austrália que ainda não se percebe como país e dois protagonistas que projetam nesse espaço virgem de referências o caráter muito peculiar de suas obsessões e dilemas.@font-face {font-family:"Cambria Math"; panose-1:2 4 5 3 5 4 6 3 2 4; mso-font-charset:0; mso-generic-font-family:auto; mso-font-pitch:variable; mso-font-signature:-536870145 1107305727 0 0 415 0;}@font-face {font-family:SimSun; mso-font-alt:宋体; mso-font-charset:134; mso-generic-font-family:auto; mso-font-pitch:variable; mso-font-signature:3 680460288 22 0 262145 0;}@font-face {font-family:Georgia; panose-1:2 4 5 2 5 4 5 2 3 3; mso-font-charset:0; mso-generic-font-family:auto; mso-font-pitch:variable; mso-font-signature:647 0 0 0 159 0;}p.MsoNormal, li.MsoNormal, div.MsoNormal {mso-style-unhide:no; mso-style-qformat:yes; mso-style-parent:""; margin:0cm; margin-bottom:.0001pt; mso-pagination:widow-orphan; font-size:12.0pt; font-family:"Times New Roman"; mso-fareast-font-family:SimSun; mso-fareast-language:ZH-CN;}.MsoChpDefault {mso-style-type:export-only; mso-default-props:yes; font-size:10.0pt; mso-ansi-font-size:10.0pt; mso-bidi-font-size:10.0pt; mso-ansi-language:PT-BR; mso-fareast-language:PT-BR;}div.WordSection1 {page:WordSection1;}@font-face {font-family:SimSun; mso-font-alt:宋体; mso-font-charset:134; mso-generic-font-family:auto; mso-font-pitch:variable; mso-font-signature:3 680460288 22 0 262145 0;}@font-face {font-family:Georgia; panose-1:2 4 5 2 5 4 5 2 3 3; mso-font-charset:0; mso-generic-font-family:auto; mso-font-pitch:variable; mso-font-signature:647 0 0 0 159 0;}p.MsoNormal, li.MsoNormal, div.MsoNormal {mso-style-unhide:no; mso-style-qformat:yes; mso-style-parent:""; margin:0cm; margin-bottom:.0001pt; mso-pagination:widow-orphan; font-size:12.0pt; font-family:"Times New Roman"; mso-fareast-font-family:SimSun; mso-fareast-language:ZH-CN;}.MsoChpDefault {mso-style-type:export-only; mso-default-props:yes; font-size:10.0pt; mso-ansi-font-size:10.0pt; mso-bidi-font-size:10.0pt; mso-ansi-language:PT-BR; mso-fareast-language:PT-BR;}div.WordSection1 {page:WordSection1;}
April 12, 2015
os detetives selvagens
Um dos temas centrais de “Los detectives salvajes”, de Roberto Bolaño, é a impossibilidade de apreender uma individualidade, de saber do outro. Mais do que uma obra sobre a literatura, com suas referências diretas ou indiretas ao baixo e ao alto clero da literatura mexicana e hispano-americana em geral, o livro é uma reflexão sobre a opacidade do indíviduo e sobre as possibilidades precárias, narrativas, apenas aproximativas, de se construir/compreender a identidade do outro.
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A ideia da busca do outro estrutura-se no livro como uma busca dupla, em dois níveis: os “protagonistas” Arturo Belano (alter ego de Bolaño) e Ulises Lima procuram desvendar a vida e a obra de uma poeta dos anos 1920, Cesárea Tinajero, que consideram uma precursora do movimento real-visceralista que os dois lideram; os leitores, por sua vez, como detetives em busca dos detetives, serão “apresentados” aos protagonistas sempre de maneira indireta, por aproximações, pela sobreposição de narrativas daqueles que entraram em contato com os dois, ouviram falar de suas vidas, viveram experiências já distantes no passado. Da mesma maneira que Cesárea é uma inspiração fugidia, mais mito que existência no imaginário dos dois (que sequer conheciam um poema dela), Arturo e Ulises nunca nos falam em primeira pessoa, nem nos aparecem por meio de uma terceira pessoa onisciente, confiável. Arturo e Belano ouvem o relato precário, alcoolizado, do velho Amadeo Salvatierra sobre Cesárea; nós lemos os relatos desencontrados, cacofônicos (ainda assim, quase sempre sedutores, brilhantes) das histórias que ajudam a formar, embora precariamente, suas identidades.
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No livro, a explicitação da busca de si mesmo, implícita ou não nas buscas do outro, é um breve interregno. Circunscreve-se à primeira e menor das três partes do livro. O jovem aspirante a poeta, García Madero, de 17 anos, que conheceu os protagonistas e ao fim os acompanhará numa fuga que é ao mesmo tempo a busca do passado de Cesárea, tenta dar conta, em seu diário, de uma identidade “em formação”, o jovem que começa a se definir afetivamente, sexualmente, artisticamente. Nesse esboço de Bildungsroman, mais sobre a iniciação sexual do que literária do narrador, envolvido com a garota María Font e a garçonete Rosaria, vemos um México provinciano, violento, mas um tanto romântico e alternativo, com seus personagens desviantes, adoravelmente loucos ou idealistas, como o pai de María, Quin Font.
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Os relatos da segunda parte do livro, a principal, compõem um mosaico vertiginoso, um labirinto de referências à vida de Arturo e Belano a partir das histórias daqueles que conviveram com os dois. Como em Balzac e sua criação de todo um arco de relações que insere e define o personagem, Bolaño traça uma complexa rede de relações em torno de Arturo e Belano, como se fosse a trama em torno do indivíduo que ajudasse a identificá-lo, a estabelecer uma identidade. Os ângulos são os mais diversos, da intimidade sexual ao ouvir dizer do meio social ou literário. Ainda assim, os relatos revelam muito mais sobre os depoentes do que sobre os retratados. O retrato do outro será sempre parcial, incompleto; nem a intimidade a dois permite o conhecimento. O indivíduo não é mais do que o conjunto de discursos daqueles que o cercam. Sua identidade, oblíqua, turva, narrativa, aproximativa, é literatura.
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Arturo e Ulises são espelhos, um do outro, ambos embaçados, envoltos numa névoa que se dissipa e retorna. Não conhecemos seus pensamentos. Conhecemos apenas seus atos, filtrados pela memória alheia. O ato faz o homem, embora nunca se saiba exatamente o que é o homem. Bolaño presta assim uma homenagem indireta aos autores que diziam rejeitar a psicologia, a narrativa psicológica, a começar por Borges. A ironia é que para sabermos algo sobre Arturo e Ulises, entramos na cabeça de todos os que, por suas vozes, relatam seus contatos com eles. Uma das façanhas do livro é justamente a montagem desse universo múltiplo, complexo de figuras que cercam os protagonistas e que nos são revelados também por sua riqueza psicológica.
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A busca de Cesárea por Arturo e Ulises, assim com a busca dos dois pelo leitor, é também a expressão de uma dor, a melancolia da impermanência do ser. Aquele que viveu, ao começar a desaparecer da memória alheia, passa a inexistir da forma mais completa, morto primeiro como ser, depois como imagem recordada. Daí a busca desesperada, irracional, em plena aridez e vazio dos desertos de Sonora, pela obra e vida de Cesárea, à beira do desaparecimento último. Daí a celebração do encontro de um de seus poemas, tão insubstancial quanto enigmático. No limite, não saberemos quem existiu, e por quê, como nos relata Luis Sebastián Rosado (p.353):
“Antes yo había hablado con algunos amigos, gente que se dedicaba a la historia de la literatura mexicana y nadie supo darme ningún dato sobre la existencia de aquella poeta de los años veinte. Una noche Piel Divina admitió que tal vez era posible que Belano y Lima se la inventaran. Ahora los dos están desaparecidos, dijo, y ya nadie puede preguntarles nada.”
Parte da revolta dos protagonistas ante figuras como Octavio Paz vem sim da disjunção entre o canônico e o marginal, mas também da indignação ante o fato de que o cânone representaria a superação do olvido, a suposta eternização de alguns poucos (justa ou injustamente), em contraste com o desaparecimento completo dos demais.
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Um dos propósitos da segunda parte, que contém os relatos dos conhecidos de Arturo e Ulises, é criar uma atmosfera de mistério, quase sempre esfumaçada, quase sempre duvidosa, em torno dos dois protagonistas. Em alguns casos, Arturo e Ulises revelam-se mais estranhos que interessantes, e o envolvimento do leitor com os testemunhos é afetado em alguma medida pela falta de carisma e charme dos dois. No mais das vezes, no entanto, os próprios depoentes, ou a maneira como enredam suas histórias, despertam o fascínio do leitor.
É extraordinário, por exemplo, o relato de Auxilio Lacouture, a uruguaia que se refugiou no banheiro da UNAM (Universidade Nacional do México) durante a invasão e a tomada da universidade pelos militares em 1968. Comove seu amor da poesia, dos poetas mexicanos, de Arturo Belano, do idealismo, da literatura e sua voz de resistência, uma voz tão romântica quanto latino-americana: assim lemos seus 10 ou 15 dias sem comer nem sair do banheiro da faculdade (pg. 190-199). Mais desconcertante é o depoimento de Xosé Lendoiro, advogado galego que conta a queda do garoto no fosso escuro e o resgate pelo vigia do camping, que vem a ser Arturo Belano. A relação com Arturo, que passa a namorar sua filha, a revista de poesia que Lendoiro edita, a autoimagem de gigante, a obsessão com o fosso e os urros diabólicos que vêm do buraco ajudam a compor uma história que impressiona pelo sombrio (p. 427-448).
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Os relatos mais marcantes são, no entanto, os que nos permitem compreender um pouco melhor as figuras de Ulises e Arturo. No caso do primeiro, a viagem a Israel e sua tortuosa paixão por Claudia. No caso do segundo, a fantástica viagem à África, em meio à guerra, à recorrência da doença, à aproximação da morte. Como para Marlow, em Coração das Trevas, de Conrad (um antecessor, e provável inspirador, de Bolaño na ideia do romance como busca de um personagem), o continente africano é para Arturo o lugar para perder-se, abandonar as angústias por meio do abandono da própria vida. A melancolia de sua trajetória africana, a consciência resignada de que há algo maior, diabolicamente e tragicamente maior, já é um reflexo do desejo de Arturo de desprender-se de uma existência anterior. Curiosamente, o leitor conhece um pouco melhor sua identidade justamente no momento em que Arturo quer desfazer-se dela.
O romance se encerra com a retomada do diário de García Madero, agora descrevendo a viagem de carro pelo deserto, em parte fuga, pela proteção à prostituta María, perseguida por seu cafetão, em parte busca, pela visita aos vilarejos onde Cesárea viveu. Aqui vemos Arturo, Ulises e García Madero conjugarem seus desesperos.
Entre tantas virtudes, Bolaño é um extraordinário contador de histórias, e este seu “Los detectives salvajes”, publicado em 1998, ao apagar das luzes de um século marcado pela permanente desconstrução do romance, provavelmente sobreviverá ao esquecimento com um dos grandes romances latino-americanos do período.
December 28, 2014
o concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro
A relação, substantiva e formal, entre a literatura e as demais formas de manifestação artística pode ser tanto um bom tema como um instrumento de renovação da prosa de ficção. Algumas linhas da literatura brasileira das últimas décadas, especialmente a ficção urbana representada pela figura maior de Rubem Fonseca e seus herdeiros, parecem influenciadas pelo ritmo, caráter fragmentário, elíptico e essencialmente visual da narrativa do cinema, o que gerou e continua a gerar algumas boas obras e outras menos inspiradas. Mais recentemente começou a ganhar relevância, embora em escala menor, outra vertente da literatura brasileira, que explora a interação entre a prosa e as artes visuais, desenvolvida – com maior ou menor sucesso, com ou sem uso de fotografias ao estilo Breton/Sebald – por escritores-artistas (ou artistas-escritores), como Nuno Ramos, Verônica Stigger e Laura Erber.Curiosamente, uma das tentativas mais bem sucedidas na literatura brasileira contemporânea de estabelecer um diálogo entre artes (e, portanto, de enriquecer formalmente a própria ficção) foi realizada por Sérgio Sant’Anna num belo conto que aproxima a literatura não do cinema ou das artes visuais, mas do teatro e da música.“O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”, publicado pela editora Ática, em 1982, e reeditado agora pela Companhia das Letras, é o conto principal do livro de Sérgio Sant’Anna que leva o mesmo nome, e possivelmente um dos contos mais significativos do autor.Centrado num show que João Gilberto se recusou (no dia mesmo) a fazer no Canecão por inadequação de acústica, o conto é uma interessante reflexão sobre o lugar do silêncio tanto na música quanto na literatura. É no fundo uma defesa do não-dito (não-emitido/não-pronunciado) como fundamento, por contraste, da própria arte, seja ela musical ou literária. Somente a redescoberta do silêncio em meio à hipertrofia de estímulos, à balbúrdia e à cacofonia restabeleceria o valor artístico do som ou da palavra. O tema do silêncio é recorrente ao longo do conto. Já na cena inicial, no aeroporto em Nova York, John Cage (compositor de pausas e silêncios) presenteia João Gilberto com uma gaiola (“cage”) vazia, onde está o suposto pássaro da perfeição. João o leva para o Rio e, tanto quanto o pássaro invisível e mudo, não cantará no dia do concerto, para não quebrar o silêncio com o som inadequado, aquém da perfeição. A economia do som (e da palavra) é a condição de sua qualidade, de seu impacto e valor como arte. Formalmente, Sant’Anna traduz esse elogio à abstenção por meio de um texto recortado, uma colagem de vinhetas, diálogos, citações e situações que realçam o silêncio e o vazio entre as cenas e, por extensão, tornam cada cena mais expressiva: a chegada de João Gilberto e Luís Carlos Prestes ao Rio; o comentário do diretor do Pinel, ao lado do Canecão; a notinha da revista Amiga; os instantâneos de conversas de bar do autor e seus amigos. Também ele, autor, precisa deixar de dizer para reforçar o sentido de cada fragmento que ajuda a construir a sua história. Como se buscasse o contraponto literário da parcimônia de João Gilberto e John Cage.O diálogo interartístico no conto não se limita à interação entre autor e compositor, entre ficção e música. Além de João Gilberto, outro interlocutor do narrador/autor é o diretor Antunes Filho. Sant’Anna não esconde seu interesse pelo teatro, o que se revela não apenas nas incursões noturnas e reflexões do seu alter-ego narrador, mas na própria montagem dos fragmentos do conto como sketches, pequenos números teatrais, em que os personagens muitas vezes parecem mais representar do que ser ou estar: Bob Wilson e Antunes como personagens de si; Caetano Velloso como repositório de uma sabedoria inapreensível; o urubu mensageiro carioca como interlocutor do urubu da Condor Filmes (ou mesmo do pato da Bossa Nova); o “autor” Sérgio Sant’Anna como personagem do escritor Sérgio Sant’Anna. Num dos muitos exercícios de metaliteratura no conto, Sant’Anna chega a citar o comentário de Silviano Santiago de que seus personagens são acima de tudo atores, aos quais ele mal dá a liberdade de se desenvolverem plenamente. Como no teatro, os personagens no conto revelam-se muito mais por enunciação própria, nos diálogos, do que por uma descrição ou caracterização psicológica intermediada pelo narrador. Há no conto, na justaposição e criatividade dos fragmentos, uma leveza de invenção e irreverência que, ironicamente, também faz lembrar o cinema, o frescor jovem e criativo de um Goddard dos anos 1960, no jocoso fingimento de não se levar muito a sério. De um lado, vemos cenas que remetem a um Rio mitológico, insouciante, do Botafogo de Garrincha à Ipanema de Jobim, do Canecão de João Gilberto ao Maracanã de Sinatra; de outro, descobrimos uma riqueza de jogos e pequenos achados literários que dão graça e colorido à narrativa. Se há algo a questionar é o desejo de Sérgio Sant’Anna de explicar alguns achados e truques que insere ao longo do texto, como se precisasse certificar-se de que o leitor irá percebê-los. O efeito é reduzir o charme e a sutileza de algumas das tiradas metaliterárias, dos pequenos achados musicais, visuais ou verbais, tão frequentes no conto. Os elementos de metaliteratura – a auto-referência a Sérgio Sant’Anna, o diálogo com Silviano Santiago ou Rubem Fonseca, os dilemas explicitados do autor/narrador na construção do conto sobre João Gilberto – são quase sempre oportunos e mesmo necessários, mas em alguns poucos casos Sant’Anna retira do leitor a graça de desvendar os seus enigmas por si só. Isso acontece, por exemplo, na brincadeira do autor/narrador sobre o Hino Nacional (pg. 170), na bela imagem do corpo branco sob a capa preta ao som da canção bicolor de Tom e Chico (pg. 186) e, sobretudo, em alguns dos momentos em que Sant’Anna procura analisar a estrutura e estilo do conto que está escrevendo (o texto como ensaio, os fragmentos como integrantes de uma orquestra, o fragmentário como o novo realismo, o comentário sobre Syberberg...). Uma coisa é a literatura que se comenta pelo apelo do jogo de espelhos, e por toda a ressonância de significados que gera; outra, a literatura que se explica como forma de legitimação. Nesse último caso, o silêncio, como endossaria o próprio Sant’Anna, talvez fosse a solução estilisticamente mais elegante.São escolhas do autor no sempre difícil equilíbrio entre o dito e o não-dito, e que mesmo ao juízo de um leitor que pode se sentir subestimado, não tiram o brilho do conto. Para além dos achados e jogos, Sant’Anna produz pequenas preciosidades de texto, inseridas aqui e ali como frases despretensiosas (“Quando eu bebo, só tenho medo no dia seguinte”) ou como metáforas simples (“O Planeta rolando vertiginosamente no Cosmos e você ali boiando nas ondas do mar, como um passageiro de primeira classe”), sempre com um ótimo efeito no desenrolar do conto.“O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro” é, ao mesmo tempo, uma homenagem às figuras centrais da cultura brasileira das décadas de 1960 e 1970 (como JG, Tom, Gláuber, Chico, Caetano, Antunes, Rubem Fonseca...) e uma inventiva e divertida experiência de fecundar o conto por meio do diálogo com a música e o teatro. Um belo show de Sérgio Sant’Anna sobre o expressivo no-show de João Gilberto.
October 5, 2014
a vida nova
Não sei o que impressiona mais em César Aira, a prodigalidade de histórias ou a originalidade de estilo(s). São quase 70 livros de ficção, e aqueles que li (naturalmente, um percentual muito limitado do universo Aira) me pareceram não só imaginosos no limite do nonsense, mas também com estilos marcadamente diferentes. Já é difícil classificar o que Aira faz como gênero: ele mesmo diz que não escreve romances/novelas, mas “artefatos literários”, “poesia escrita como exercícios de prosa”. E dentro dessa enorme coleção de artefatos ou exercícios, o que menos há é repetição, homogeneidade. Apesar da indefinição do objeto literário, em Aira convivem a imaginação vertiginosa e a precisão. O fabulista e o dicionarista. O devaneio e o método. Ele é capaz de inventar um personagem César Aira que quer controlar o mundo roubando o DNA de Carlos Fuentes, mas como a mosca que programou acaba picando a gravata e não a pele de Fuentes, clonam-se por engano gigantescos bichos da seda, que destroem a cidade de Caracas (“El congreso de literatura”). Esse mesmo Aira, o autor, não o personagem, é capaz de redigir mais de 600 verbetes sobre os mais diferentes escritores latino-americanos, com o rigor e a minúcia de um ourives-escrivão (“Diccionario de autores latinoamericanos”). “La vida nueva” é a quinquagésima-sexta “novela” de Aira. Na verdade, não mais do que um parágrafo de 76 páginas narrado em primeira pessoa por um escritor que (como Aira) vive em Flores, arredores de Buenos Aires. Pode ser lido como uma brincadeira séria em torno de algumas idéias caras a Borges. As possibilidades do e no tempo. As bifurcações possíveis. Os futuros possiveis de um homem. A gratuidade dos eventos que nos levam a uma vida ou a outra. Não surpreende que o protagonista do livro, que nunca consegue lançar seu primeiro romance, desfie aqui e acolá anedotas sobre Borges, como a visita que teria feito à redação de uma revista para enfiar exemplares de seu primeiro livro nos bolsos dos casacos pendurados nos cabideiros.As agruras do escritor inédito em “La vida nueva” são retratadas com tons surreais, buñuelescos, que parecem derivar mais de uma essência absurda da vida do que de contingências objetivas e materiais que atingem o personagem, até porque seu manuscrito goza de bom conceito entre seus leitores e de um editor disposto a publicá-lo (embora nunca capaz de fazê-lo, pelas razões mais diversas). A novela é sobretudo uma reflexão sobre a circularidade da vida, o eterno e gratuito retorno, o homem como Sísifo, sempre mais patético a cada volta. Aira esgarça e subverte o tempo da narrativa, transformando semanas em anos ou décadas, para realçar o absurdo e a gratuidade de cada gesto, de cada tentativa. O homem em geral sim, mas é sobretudo o escritor na sua particularidade quem carrega a pedra que nunca se fixa no alto.
“Nos despedimos con un “hasta pasado mañana”, que sonaba a una variación casi humorística del clásico “hasta mañana”. Lo llamé, efectivamente, pero no a los dos días sino mucho más tarde. Cuánto? Perdi la cuenta. Seis, siete años después. Quizás más. Pasaron tantas cosas, y a la vez parecía como si no pasara ninguna.”
As noções tradicionais de tempo não fariam sentido porque não há causalidade linear, relação clara entre o que supostamente seria causa e o que supostamente seria efeito. A graça da novela de Aira está nesta dupla transgressão do tempo e da racionalidade, em mais uma de suas críticas à verossimilhança como base do romance pós-século XIX, período que, segundo o autor, teria esgotado todas as possibilidades do romance realista. Aira chega a ser quase didático na voz de seu alter ego:
“Cada pequeño incidente de la sucesión (y ésta era una sucesión de incidentes y de nada más) venía provisto de causa y efecto, pero las causas y efectos, que por lo demás se estaban transformando unas en otros todo el tiempo, eran a su vez pequeños incidentes atorbellinados que partían en todas direcciones.”
Não é, no entanto, apenas o esgotamento de um modelo artístico que desautoriza a linearidade e a verossimilhança. A narrativa em “La vida nueva” desenrola-se em saltos e descontinuidades porque a memória e a identidade constroem-se dessa maneira. O protagonista de existência flácida é inseguro de seu passado e parcialmente inconsciente do seu presente porque é assim que a identidade individual se forma. Nunca de maneira exaustiva, contínua, homogênea no tempo, apesar da existência ininiterrupta no tempo. Isso é agravado quando se escreve, já que é preciso refabular a fábula que é a memória:
“Quizás era improcedente hablar de recuerdo y olvido cuando el objeto de la memoria era uno mismo: el recuerdo exigía una discontinuidad, y uno no había dejado de ser uno mismo desde su más remoto pasado, no había habido interrupción. (...) Con la vida de los escritores siempre se había fantasiado mucho, lo que a la larga debía de haber afantasmado un poco las vidas reales de los escritores reales, a tal punto que correspondía preguntarse si no sería todo una gran fantasía: vidas que no vivía nadie, ni siquiera los que vivían (lo que terminaba siendo otra contradicción.)”
Para além de uma alegoria sobre as dificuldades de publicação do escritor inédito, sobre a improvisação romântica de escritores e editores, “La vida nueva” é uma reflexão um tanto irônica, um tanto séria, sobre o desenrolar do tempo: o tempo na vida, com as escolhas e ciclos que marcam o indivíduo; o tempo na memória, com sua seletividade, seu ritmo, seu método; o tempo na literatura, com suas possibilidades menos ou mais inovadoras.
August 25, 2013
a odisséia
De forma mais velada e sutil do que Shakespeare faria com “Macbeth”, “A Odisséia”, de Homero, é uma história sobre a “hubris”, a arrogância do poder, o orgulho da vitória. A viagem tortuosa, quase interminável, que Odisseu/Ulisses faz de Tróia a Ítaca é a punição de uma egotrip anterior, da autoimagem de infalibilidade e onipotência de quem arquitetou e executou a tomada de Tróia. Poseidon lança a maldição sobre Odisseu porque o herói, não satisfeito em cegar o ciclope que o aprisionava na volta, quis dar-lhe uma lição de moral. Ao escapar, Odisseu, indignado com a morte de seus companheiros, impreca contra o monstro e não resiste à tentação de proclamar seu nome, apesar dos apelos dos demais sobreviventes para que se cale. O bravo herói, que se livra da prisão com a astúcia de sempre, é também orgulho e ressentimento. A nova vitória não pode ficar anônima. Precisa da palavra para afirmar o vencedor, mais uma vez. E a palavra será a queda. O ciclope descobre a identidade do inimigo e conta ao pai, Poseidon, que irá se vingar, com correntes, tempestades e tragédias, daquele que imolou seu filho.
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As agruras de Odisseu combinam vícios dos deuses e vícios dos homens. Há vileza e incompetência (e portanto falibilidade humana) no Olimpo e na Terra. A tripulação de Odisseu é particularmente anti-heróica. Demonstra suas fraquezas não apenas na fuga do ciclope ou na história do saco dos ventos, mas também na Ilha do Sal, em que os marujos não resistem à tentação de comer os animais. Na Grécia de Homero, há os vícios dos grandes – deuses e heróis – como a “hubris”, a prepotência, a vaidade, e os vícios dos pequenos – os homens em geral – como a cobiça, a gula, a curiosidade. Mas até Odisseu, apesar de todas as suas virtudes de herói, peca por vícios menores, como a leniência na hora de evitar a insubordinação de seus homens. Em contraste com o mundo confuciano, oriental, da preservação das hierarquias (Imperador-súdito; pai-filho; marido-mulher), o mundo grego é o da subversão das hierarquias pelo triunfo da individualidade (herói contra deus; homem contra herói).
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Mais do que a Ilíada, que é narrada de forma mais direta e “neutra”, “A Odisséia” é uma história sobre histórias. É uma narrativa sobre narrativas. O envolvimento do leitor se dá pela intermediação de um narrador que assumidamente diz contar uma história. Ou de um herói que resolve contar sua história dentro de outra história. Enquanto “vemos” o filho Telêmaco agir, mantemo-nos distantes, à espera do herói. Quando o próprio herói intervém para contar de si (ao falar de seus infortúnios a Alcínoo, rei dos Feácios) é que nos sentimos atraídos para o centro de suas fabulações. Não parece mera coincidência que Odisseu acabe por inventar um passado e um nome para si ao reencontrar Penélope, já de volta a Ítaca. Ele só conseguiu voltar à sua terra porque soube, por meio de histórias inventadas, testar os outros, estimular-lhes a curiosidade, guiá-los para onde queria. Fez isso com Penélope, Eumaeus e Laerte, pai do herói. Na Odisséia, a palavra é, ao mesmo tempo, queda e salvação.
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O capítulo final da Odisséia costura, de forma circular, irônica, moralizante, o ciclo iniciado pelo capítulo inicial da Ilíada. Se no começo desta, vemos Agamenon e Aquiles brigando (em torno da apropriação pelo monarca da “mais-valia” do trabalho dos guerreiros/saqueadores), no final da Odisséia vemos o espírito de Agamenon e de Aquiles reecontrarem-se no Hades, desta vez mortos, estéreis, pacificados. Apesar dos horrores do Hades, para Odisseu a vida não vale ser vivida a qualquer preço. Por isso havia desprezado a oferta de imortalidade que Calipso lhe fez. Para o herói, voltar para morrer vale mais do que viver sem voltar.
June 8, 2013
autoria ou afasia?
"Autores não dominam seus livros. Ainda que o fizessem, jamais conseguiriam controlar a leitura que deles fazemos. Leitores também não têm a plena posse de suas leituras. A literatura é um fantasma que se agita entre os escritores, seus originais e seus leitores. Experimentei esses sentimentos de desgoverno ao ler “Memória da pedra”, de Maurício Lyrio (Companhia das Letras). Alguns leitores ainda esperam que eu faça a “crítica” das ficções que leio. Mas o que se passa aqui é outra coisa. Elas, sim, me interrogam e me criticam. Vão mais longe: interrogam e criticam a cena literária que as produz e dentro da qual eu tento pensar.
Tento mais uma vez. A literatura brasileira contemporânea cultiva uma forte atração pela marginalidade. Obsessão pela violência, pelo submundo e pelas gangues, que se transformaram nos clichês de certa “cena local” brasileira. O marco original desse sentimento é, provavelmente, “Feliz ano novo”, o extraordinário livro de contos que José Rubem Fonseca publicou em 1975. Lá se vão quase 40 anos, mas o encantamento — como uma memória que se petrifica e embrutece — perdura.
Agora surge Mauricio Lyrio, um diplomata de 45 anos que, ainda que retido na mesma trama, dá um passo à frente. Sem abandonar a obsessão pela miséria, personificada pelo menino Romário, ele escreve para pensar. Seu protagonista, o professor de filosofia Eduardo, entrega-se cegamente (contra seus princípios) ao fascínio da pobreza. Nem a couraça filosófica o salva. Apesar de si mesmo, contudo, ele pensa.
Não será por acaso que a história narrada por Lyrio se passa nos anos 1990, a década em que Patricia Melo lançou “O matador”, Paulo Lins nos deu “Cidade de Deus”, Marçal Aquino se preparava para escrever “Cabeça a prêmio” e Dalton Trevisan, um renitente admirador da miséria e do desastre, acabava de publicar “Pão e sangue”. São livros emblemáticos, embora divergentes, que ditaram o fio sutil que, desde os anos 1990, desenha a face de certa “literatura brasileira internacional”.
O menino Romário sintetiza essa ambivalência: raivoso e sedutor, inteligente e debochado, ele atrai e repugna. Reflete, assim, a personalidade do próprio professor. Inteligente, mas disperso, o cerebral Eduardo é prisioneiro de seus impulsos interiores. Vive uma relação inconstante com a mulher, Laura, que compensa com suas lições de Filosofia Moral. Ele conhece o menino em um sinaleiro. Depois descobre que o garoto se esconde em uma toca nas paredes do Túnel Velho. Aquele refúgio de pedra é o inaceitável. Logo, uma questão filosófica se formula: acaso ou determinação?
Eduardo perdeu os pais ainda criança, em um acidente de automóvel. Para a polícia, o pai dormiu ao volante. Já o professor é perseguido pela ideia de suicídio, provocado pela descoberta de um câncer. A busca o aproxima do oncologista Gilberto e o leva a conviver com a cáustica Marina, sua mulher. Persegue a si mesmo.
Sem pensar, Eduardo decide levar o garoto para casa. Como abandonar o menino em uma cova de pedra? Romário se parece com um bicho: sequer sabe o próprio nome. Romário é só um apelido. Diante dele, também Eduardo é tomado por uma espécie sutil de afasia: não encontra palavras que digam o que faz. O irracional os conecta.
Na sala de aula, as meditações filosóficas do professor espelham suas dúvidas íntimas. Diz: “O ponto mais importante é saber se o que fazemos é determinado por elementos externos, fora do nosso controle, ou se é algo livremente escolhido”. Fala de si. Enquanto isso, através do professor, Maurício Lyrio fala dos impasses em que certa ficção brasileira contemporânea, desde os anos 1990, se embrenhou.
Eduardo procura sentidos literários para sua crise. Qual seria a diferença entre Smerdiakov e Ivan, os irmãos Karamazov? O professor vê nos personagens de Dostoievski “dois extremos da ideia de responsabilidade moral”. Smerdiakov, o assassino de Fiodor, atribui seu ato a fatores externos, que é incapaz de controlar. Não se reconhece como culpado. Enquanto isso, Ivan, “que não cometeu crime algum, apenas manifestou o desejo momentâneo de ver o pai morto”, arde de culpa pelo que não fez. Será Romário responsável por seus atos? Quando pensamos em um menino de rua, cabe pensar em responsabilidade moral? Quem toma para si a salvação do outro sabe, realmente, o que está fazendo?
Até que ponto um desejo obscuro (de salvação? de purgação?) move a literatura brasileira contemporânea? Mas até que ponto fatores extra-literários — os apelos do mercado, os valores da “literatura internacional” — movem, na verdade, nossos escritores? Do mesmo modo: que nome dar à obsessão de Eduardo por Romário? O que há de deliberado, o que há de impulsivo? O que o professor realmente deseja? O que move o próprio Lyrio?
Romário sente medo e sabe que deve “ficar frio e duro que nem o chão”. Transformar-se em pedra, ou não viverá. Mas transformar-se em pedra é uma maneira de viver? Eduardo segue o menino em uma viagem pela periferia. No Complexo do Alemão, avista um balão que “subia com uma lentidão sobrenatural, como se naufragasse no ar”. Defronta-se com a morosidade enervante do real, que não se modifica segundo nossos desejos. O real é como o corpo de sua mulher, Laura. Ela o vê como “uma continuação de si”, algo que “habitava e conduzia como uma entidade externa”. Se vemos a nós mesmos como estranhos, como suportar a presença do outro?
Eduardo admira em Laura seus preconceitos contra os arroubos e as paixões, mas ele mesmo é prisioneiro de uma ideia fixa. Afirma preferir a distância, como os quadros que Laura pinta, “entre o abstrato e o figurativo”. O fascínio do Eduardo pelo menino inverte, ainda, a frieza da vida acadêmica, com seus professores elegantes e impessoais. Salva o menino, ou salva a si mesmo? “Era difícil saber do outro, do que está encerrado no fundo da memória ou do sentimento como um quarto escuro”. Não só a memória, mas o desejo também é de pedra. Afásico, Eduardo martela o mundo, mas, apesar da bengala filosófica, não sabe o que busca. Ao criá-lo, Maurício Lyrio se afirma como autor e dá um passo à frente de seus contemporâneos."
January 27, 2013
Malagueta, Perus e Bacanaço
A vida não parece ter sido fácil para o paulistano João Antônio (1937-1996), o contista e cronista da malandragem e dos subúrbios de São Paulo e Rio, talvez o herdeiro mais competente do olhar marginal e inconformado de Lima Barreto. “Malagueta, Perus e Bacanaço”, a coleção de contos que o notabilizaria, teve de ser reescrita de memória, depois que os originais foram queimados num incêndio que deixou o escritor só com a roupa do corpo. Alguns anos depois, no final dos anos 60, João Antônio iria casar-se e logo largar mulher, filho, automóvel e trajes formais para se dedicar à literatura e se reaproximar da marginalidade que o fascinara como tema. A morte não lhe foi mais suave: morreu solitário em seu apartamento em Copacabana, e seu corpo só foi encontrado quinze dias depois.
Vida e obra talvez se completem na aspereza e na desilusão. Quando se lê um conto de João Antônio a impressão que fica é a de uma perdição estrutural, de personagens enredados nas armadilhas de seu meio e nos limites de suas capacidades e vícios. “Malagueta, Perus e Bacanaço”, conto que dá nome ao primeiro livro de João Antônio, é, juntamente com “Meninão do caixote”, um de seus textos mais interessantes e retrata, numa atmosfera de melancolia, de fim dos tempos, a malandragem das rodas de sinuca em bairros pobres de São Paulo.
O cafetão Bacanaço, o velho Malagueta e o menino Perus perambulam pela madrugada de São Paulo, de bar em bar, de bairro em bairro, em busca do jogo que lhes dê algum dinheiro. O bilhar é o meio precário de vida de que dispõem, e os três procuram aliar suas habilidades e misérias para arrancar um trocado de jogadores desavisados. João Antônio narra a trajetória do trio como a queda de um império já falido, em que a fome e a desesperança só fazem crescer quanto mais os protagonistas tentam superá-las. Conhecemos as visões diferenciadas dos três personagens em seqüência, um ponto de vista por vez, à medida que as tentativas de triunfo vão caindo por terra a cada bar (Paratodos, Salão Ideal, Celestino, Joana D’Arc, Jeca, Americano) e a cada bairro (Lapa, Água Branca, Barra Funda). Conforme a frase célebre de abertura de “Anna Karenina”, de Tostói, segundo a qual todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira, cada malandro de João Antônio reflete um modo particular de sofrimento, por mais homogêneos que sejam os constrangimentos que o meio social e econômico lhes impõe.
Talvez o melhor em João Antônio sejam justamente os perfis de personagens. Bacanaço, por exemplo, “era taco melhor, jogador maduro, ladino perigoso da caixeta, do baralho e da sinuca, moreno vistoso e mandão, malandro de mulheres. Camisa de Bacanaço era uma para cada dia.” Já o Sorocabana era “trouxa, coió-sem-sorte, andava esbagaçando um salário-prêmio recebido pelos vinte anos de trabalho efetivo na lida brava da estrada de ferro. Sim. Casado, três filhos, um homem de vida brava. Um inveterado, um pixote se metendo a gente, um cavalo-de-teta. E Bacalau (outro malandro) perguntava-se: “Para que trouxa quer dinheiro?”” Muitas vezes, os perfis traçados pelo autor incorporam a visão de mundo de personagens que, apesar de virem da periferia, reproduzem uma mentalidade conservadora”: Teleco, por exemplo, “vestida como homem, era mulher que gosta de mulher. (...) Àqueles ombros tarimba sobrava, que foram cinco os anos curtidos no pavilhão feminino do presídio da Alegria. À boca pequena, boquejava-se que lá Teleco se fartava, e quando em liberdade até estranhou e precisou arranjar uma amiga.” Ou no caso do malandro Caloi:
“Jogava que jogava Caloi. Osso duro de roer. Deu trabalho a muitos tacos, era um artista, era um cérebro, um atirador. Mas deu também para mulheres, e sua mão começava a tremer no instante das tacadas. Foi indo, indo, tropicando. Quando deu fé, parecia um galo cego que perdeu o tino. Deu, então, para a maconha e uma feita ficou célebre – vez em que um pixote lhe tomou quinze contos num dia de carnaval lá na rua Barão de Paranapiacaba. Aquilo o encabulou, arruinou o seu juízo de jogador. A maconha desfez o homem, lhe apodreceu o cérebro e Caloi acabou falando sozinho, feito um tantã de muita zonzeira lá num pavilhão do Juqueri.”
João Antônio combina gírias locais do submundo com linguagem formal na tentativa de retratar o universo particular da baixa marginalidade, dos malandros otários, que mais se enganam do que aos outros. Na maioria das vezes a mistura dos registros funciona bem e parece refletir o próprio desejo do malandro de florear seu discurso: “Qualquer palavra ganha dignidade na boca da polícia e ninguém ri. Ademais, Lima era um tira aposentado e ainda sustentava influências. Palavra dele tomava tamanho nas possíveis e inesperadas batidas da policia.” Ou: “E quando é madrugada até um cachorro na praça da República fica mais belo. Luz elétrica joga calma em tudo.”
Em outras situações, no entanto, o esforço de criar uma linguagem ao mesmo tempo fiel ao meio e rica do ponto de vista literário torna-se ostensivo, e o texto perde em naturalidade: “Chegara-lhes depois um vizinho safado empurrando-lhes a gana para bem longe.” Nesses casos, o uso excessivo de pronomes oblíquos em ênclise ou do pretérito mais que perfeito acaba por entrar em choque com a leveza e a coloquialidade do vocabulário. Em alguns momentos, João Antônio parece querer mostrar, a qualquer custo, seu rico arsenal de gírias, como se precisasse exibir os resultados de um trabalho antropológico. As longas enumerações soam um tanto artificiais: “o joguinho se aprende jogando, tudo o mais é ilusão, engano, embandeiramento, onde de otário”; ou “àquela tarde, tinham manha, tinham charla, boquejavam a prosa mole”. Quase sempre a enumeração é tripla: “E vão como viradores, sofredores, pés-de-chinelo.”
Mais do que registrar a linguagem de um meio, João Antônio parece querer reproduzir aquele mundo esquecido e marginal. Vale-se não só do vocabulário específico, mas também da descrição de jogos, truques e ambientes, especialmente dos botecos. O desejo de refletir uma realidade chega ao ponto de João Antônio introduzir no conto personagens “reais”, como o célebre “Carne Frita”, campeão brasileiro de sinuca, que interage com os personagens ficcionais.
Para Antonio Candido, “João Antônio faz para as esferas malditas da sociedade urbana o que Guimarães Rosa fez para o mundo do sertão, isto é, elabora uma linguagem que parece brotar espontaneamente do meio em que é usada, mas na verdade se torna língua geral dos homens, por ser fruto de uma estilização eficiente”. É sempre difícil cotejar autores. Se João Antônio conseguiu um feito semelhante ao de Rosa, é matéria controversa. Mas não há dúvida de que retratou, com fina observação e talento literário, um mundo até então pouco lembrado pela literatura brasileira.
January 6, 2013
o púcaro búlgaro
Se estilo próprio e originalidade são critérios centrais de avaliação do mérito literário, Campos de Carvalho deveria representar um marco importante na literatura brasileira. É um escritor singular, que funde humor e nonsense para criar obras que desconcertam.
O humor ocupa, no entanto, um lugar ambíguo, nem sempre confortável, como fator de excelência na literatura. Basta recordar a avaliação de José Veríssimo de que o humor foi “excluído” como critério de valorização do poético durante o romantismo. Se é comum aos escritores recorrer ao cômico, especialmente por meio da ironia (Machado, Mário e Oswald, Drummond, Bandeira, Guimarães, Nelson Rodrigues e outros), é raro o autor que faz do humor o elemento central de sua obra.
Na literatura brasileira, o cômico como centro foi menos comum em narrativas longas, como o romance e a novela, do que em outras formas literárias mais condensadas. Há todo um arco de militância do cômico que vai da poesia satírica de Gregório de Matos até o teatro de Martins Pena, Qorpo Santo e Artur Azevedo. Hoje se manifesta, entre outros autores, na crônica de observação social e política de Luís Fernando Veríssimo, no lirismo de Vanessa Barbara (e suas crônicas de bibliofilia) e nos contos tragicômicos de Verônica Stigger, que, em narrativas curtas como as de “Os anões”, pratica uma curiosa combinação (à maneira do Cortázar de “Las ménades”, “Ômnibus” e “Carta a una señorita en París”) entre o animalesco, o patético e o fantástico.
O humor foi, de fato, um primo pobre da melancolia, da denúncia ou do intimismo nas narrativas longas na literatura brasileira. Não consagramos nenhum Swift, Twain ou Voltaire. Nosso grande autor satírico no século XIX, Manuel Antônio de Almeida, escreveu apenas um romance (“Memórias de um sargento de milícias”) e morreu aos 31 anos, em um naufrágio.
José Cândido de Carvalho e Ariano Suassuna produziram, já no século XX, obras que deram ao regional e ao interiorano um cunho humorístico, mas o romance moderno brasileiro é fundamentalmente sisudo, de Graciliano a Guimarães, de Clarice a Raduan Nassar. É aqui que o lugar de Campos de Carvalho parece singularizar-se. Nenhum outro autor conseguiu fundir humor e absurdo de maneira tão original.
“O púcaro búlgaro” é um romance surrealista publicado em 1964. Conta, em primeira pessoa, a história de um habitante da Gávea (a gávea de um expedicionário marítimo), zona sul do Rio, que, após visitar um museu na Filadélfia e deparar-se com um púcaro (pequeno vaso) búlgaro, questiona a existência da Bulgária. De volta a seu apartamento na Gávea, decide preparar uma expedição para sanar sua dúvida angustiante. Ao referir-se às palavras “púcaro” e “búlgaro”, o autor/narrador tergiversa:
“Nos dicionários eles lá estão, um e outro, com os seus verbetes – mas isso é fácil, Deus também lá está; queria é vê-los o autor aqui fora, resplandecentes de luz solar e não de luz elétrica ou gás néon, e sem os canhões de Tio Sam para lhes garantir a pucaricidade ou a bulgaricidade.”
A expedição de verificação é razão para o narrador arregimentar uma galeria de personagens exóticos, seu exército de Brancaleone: um professor de bulgarologia, o cearense Radamés Stepanovicinsky; Pernachio; Expedito; um marinheiro fenício; Fulano Meireles... É um grupo ainda mais heterodoxo e tresloucado do que o genial conjunto de “Los siete locos”, de Roberto Arlt. O romance gira em torno da convivência absurda entre os expedicionários imóveis (e Rosa, criada e amante do narrador), com suas manias e improbabilidades. Campos de Carvalho usa das mais variadas formas de paradoxos, enigmas, trocadilhos e estripulias narrativas para criar uma atmosfera de completo nonsense.
Há um evidente prazer de Carvalho no brincar com a língua portuguesa. Um dos elementos mais atraentes do livro é justamente a desconstrução de lugares comuns e o gosto do jogo de palavras. Valem mais do que a própria incursão auto-irônica de Carvalho por questões filosóficas e metafísicas, como a idéia de ser ou o conceito de existência.
Se há algo que soa excessivo em “O púcaro búlgaro” é, em certos trechos, a mão um pouco pesada do autor, que faz da piada (algumas vezes, escracho puro) um objetivo permanente, mesmo quando não cabe ou cansa. Quando Campos de Carvalho pratica um humor mais lírico (como na página antiga, “insertada”, sobre Rosa), o romance ganha em apelo, mas o lirismo não é mais do que um elemento marginal em seu humor. Campos de Carvalho defronta-se aqui com o velho problema enfrentado pelos militantes do humor na literatura: o de manter o fôlego de uma narrativa mais longa que, ao fundar-se no cômico, acaba por romper o pacto ficcional, de “suspensão da descrença”, e estabelece um distanciamento crítico entre leitor e obra.
November 11, 2012
Jerusalém
Abri “Jerusalém”, romance do português Gonçalo M. Tavares, com a melhor das expectativas. Um livro premiado de um autor freqüentemente enaltecido por sua obra de ficção e pela sensatez e conhecimento com que faz seus comentários sobre literatura. Fechei-o, no entanto, com a sensação de ter lido um bom escritor, mas de não ter me envolvido com seus personagens alegóricos nem me impressionado com os elementos inventivos de sua narrativa. “Jerusalém” é a história de uma série de relações de opressão e violência. Personagens construídos quase como alegorias, como tipos ideais de sentimentos ou condições (Mylia, a oprimida; Theodor, o cerebral; Ernst, o amante louco; Hanna, a prostituta; Hinnerk, o violento; Kaas, o frágil) encontram-se e ferem-se em um meio marcado pela experiência do passado como catástrofe coletiva (a guerra; o Holocausto; a história do horror) e pela iminência da tragédia pessoal. Gonçalo Tavares enreda os personagens numa narrativa que vai e volta em suas vidas e revela aos poucos, como num quebra-cabeça, os elementos quase sempre traumáticos que os unem. Há engenho na maneira como o autor nos surpreende e revela a trajetória de cada um, como quando descobrimos, já no capítulo 9, o que uniu Mylia e Ernst, tenuamente interligados no começo do livro e, antes, companheiros de hospício, perdidos no emaranhado de personagens e manias ao redor. Os títulos dos capítulos com combinações de nomes de personagens já antecipam essas relações e têm um apelo de concisão e elegância, embora a rearrumação dos nomes comece a parecer menos intrigante conforme se avança no livro.Embora articulados de maneira engenhosa, os personagens de “Jerusalém” parecem descarnados, rasos. São antes veículos de dores e mensagens do que figuras de carne e osso literário. Ao analisar a obra de Thomas Pynchon, James Wood chama a atenção para as dificuldades e riscos na criação de personagens alegóricos. A ousada aposta de Kafka nem sempre dá certo quando não se é Kafka. Foi a sensação que tive ao ler a história de Mylia, Ernst, Theodor e demais personagens de “Jerusalém”. Sua natureza esquemática, opaca, nos impede o envolvimento. Acompanhamos suas histórias, mas por falta de empatia não as sentimos e vivenciamos. O próprio uso do tempo presente da narrativa, embora agilize a trama e dê um sentido de urgência e iminência ao registro de cada personagem, acaba por agravar a sensação de que os vemos de forma plana, estereotipada, vazios de conteúdo. Também há certa artificialidade e caricatura na maneira como Gonçalo Tavares nos revala horrores já conhecidos. O problema de repetir em ficção a denúncia de horrores óbvios, como o Holocausto, a guerra ou a violência dos hospitais psiquiátricos, é que, por seu caráter extremo, tais flagelos não comportam ambigüidade e dúvida e não há como pintá-los em cores e tons variados. O uso do preto e do branco em literatura quase sempre assoma como esquemático. Veja-se, por exemplo, a seqüência de capítulos intitulados “Europa 02”: são descrições curtas de aspectos de uma espécie de prisão ou mundo kafkiano, que lembra um campo de concentração. O autor procura introduzir elementos inovadores na forma (a linguagem de manual, os subtítulos escritos na vertical da página), pela simples dificuldade de ser original ou ambíguo na própria matéria tratada.Há passagens fortes no livro, que revelam uma aguda sensibilidade de Gonçalo Tavares para o tema da vulnerabilidade humana ou da violência. Especialmente marcante é a imagem de Kaas, o filho frágil e risível de Theodor, no momento em que ouve, na iminência da briga com um colega de escola, a frase mais ofensiva e humilhante que um garoto pode ouvir:
“(...) estavam assim os dois naquele instante único onde o contato físico violento é inevitável e quase imprescindível, quando subitamente o seu opositor, como que lembrando-se naquele momento de algo que se esquecera com os insultos trocados, parou, e afastando-se num movimento que em outras condições seria indiscutivelmente considerado como cobarde, afastando-se, então, disse, para Kaas: eu não posso lutar contigo.”
O mesmo Kaas, humilhado pela recusa do mais forte em espancá-lo, irá surpreender-nos com o gesto aparentemente gratuito contra a avó.Algumas passagens iluminadoras no livro convivem com trechos e imagens desnecessários. Gonçalo Tavares é um escritor prolífico e, no romance, dá-nos a sensação de que quer aproveitar todo e qualquer pensamento seu. Há comentários um tanto ociosos (“uma mancha de tinta espessa, como se a tinta atribuísse a si própria a responsabilidade de tornar mais alto o tampo da mesa”); metáforas de gosto duvidoso (“havia, pois, em Theodor, a sensação de limpeza na própria vida, como uma empregada que tivesse acabado de tirar do lugar um móvel antigo que impedia, há décadas, o movimento rápido dentro de casa”); e até pleonasmos duplos (“uma espécie de azedume fixo permanecia constante”). Embora curto, “Jerusalém”, ao menos na edição portuguesa que li, da editora Caminho, ganharia com uma revisão mais rigorosa.
October 21, 2012
Binet, HHhH e o Salon de Fleurus
Laurent Binet ganhou o Prêmio Goncourt para romances de estréia, em 2010, com seu romance histórico “HHhH”, sobre, entre outras coisas, o assassinato de Reinhard Heydrich, chefe da Gestapo, em maio de 1942. “Romance histórico” (ou qualquer outra categoria) se aplica de maneira imperfeita ao livro de Binet, que mistura reflexões sobre o processo de redação do próprio livro, referências literárias e pessoais em tom autoficcional e história propriamente dita. Como “A sangue frio”, de Capote, ou mesmo “Os sertões”, de Euclides da Cunha, “HHhH” parece ocupar um lugar a meio caminho entre o histórico e o ficcional em sentido amplo.
Binet, que é professor de literatura numa escola de ensino médio em Paris, participou na semana passada de um evento organizado pelo MoMA, em Nova York. Ele e mais quatro convidados lá estiveram para falar ao pequeno público presente sobre suas experiências ao visitar um curioso lugar chamado “Salon de Fleurus”.
O “Salon de Fleurus” é, supostamente, um apartamento subterrâneo no Soho que simula e “comenta” o antigo salão da Gertrude Stein na rue de Fleurus em Paris. O detalhe é que os criadores do apartamento não se identificam, não divulgam que o lugar existe (a coisa circula à boca pequena, entre iniciados), e os curiosos que por lá aparecem são recebidos por um porteiro de sotaque iugoslavo que age como se não tivesse nenhuma relação com o apartamento. O porteiro quer ouvir histórias do visitante e, em troca, conta histórias do lugar, antes de franqueá-lo aos curiosos. Lá dentro o visitante vê reproduções dos amigos e afilhados da Stein (Picasso, Matisse...), fotografias, mobiliário de época (que ninguém diz se foram do salão original em Paris), tudo ao som de Edith Piaf, que é pós-Stein naturalmente. Trata-se, portanto, de um apartamento-museu sem autoria aparente nem qualquer pretensão de fidelidade histórica. Mais parece um comentário visual e anônimo sobre Gertrude Stein e a arte moderna.
Como não fala bem o inglês, Binet leu um texto curto que escreveu sobre a visita ao Salon: o nonsense da conversa com o porteiro, a sensação de deslocamento no tempo, de vertigem das referências a referências em “mise-en-abîme”, a imagem de Shakespeare (“The time is out of joint”), a lembrança da “Invenção de Morel”, de Bioy Casares, com seu invento que reproduz e revive eternamente o passado. Binet mencionou dois autores norte-americanos que admira (Bret Easton Elis e Chuck Palahniuk) e sua preferência pela narrativa de eventos “reais”, em que há indícios de que aconteceram de fato, por oposição à ficção propriamente.
Essa é a questão que parece interessar a Binet: a diferença de registros entre o “real” e o ficcional. Já no início de “HHhH”, ele cita Kundera para falar da arbitrariedade de dar nomes a personagens ficcionais. E para Binet, Kundera poderia ter ido além: há algo mais vulgar do que um personagem inventado? Ironicamente, Binet reconhece que, para contar a história de Gabcik, o soldado eslovaco que participou do assassinato de Heydrich, terá de transformá-lo em personagem, em literatura:
“J’espère simplement que derrière l’épaisse couche réfléchissante d’idéalisation que je vais appliquer à cette histoire fabuleuse, le miroir sans tain de la réalité historique se laissera encore traverser.”
Conversei com Binet ao final do evento. É figura simpática e tranqüila. Perguntei o que ele planejava depois de “HHhH”. Ele disse que tinha acabado de fazer um livro sobre a campanha presidencial francesa, e começava agora um novo romance, que também será histórico e deverá se passar nos anos 80. Perguntei se seria na mesma linha de “HHhH”, de desconstrução do romance histórico. Ele sorriu e disse que sim.Realidade e ficção. Fato e referência. Relato e narrativa. Saí do MoMA sem a certeza de que o “Salon de Fleurus” existe. Talvez seja um lugar imaginário. A idéia de que um apartamento sem dono aparente no Soho reflete e comenta um célebre e histórico salão da Paris dos anos 20 também parece ocupar um lugar entre realidade e ficção.


