Aznavour e a Boémia

Dois dias depois de Charles Azanavour se ter imaterializado e ascendido às estrelas, onde já estava  o seu reflexo há muitos anos, ofereça-se-lhe o belíssimo poema do La Bohème em português. Onde estão todos os abismos e ascensões da própria Paris. E não só Montmartre.

A Boémia

falo-vos de um tempo que os menores de vinte
não podem conhecer
naquele tempo, Montmartre pregava os lilases
mesmo por baixo das nossas janelas e,
se isso não pagava o humilde quarto
que nos servia de ninho
foi lá que nos conhecemos
eu chorava de fome
e tu posavas nua

A Boémia, a Boémia,
ou seja,
éramos felizes e só comíamos
um dia em cada dois

pelos cafés vizinhos alguns entre nós
esperavam a glória
e, mesmo miseráveis e com
a barriga vazia,
nunca parámos de acreditar e,
quando qualquer bistrô,
em troca de uma refeição
quente, nos pendurava
uma tela, recitávamos
versos em volta do
fogão e esquecíamos
o inverno

A Boémia, a Boémia,
ou seja, como tu
és bonita e nós
todos génios

muitas vezes me sucedia
passar noites em branco
perante o meu cavalete
retocando o desenho
na linha de um seio
na curva de um quadril
e já era de manhãquando finalmente nossentávamos peranteum café-creme,esgotados, masfelizes
faz falta que nos amemosfaz falta que amemosa vida

A Boémia, a boémia,quer dizer que temosvinte anos e vivemosda leveza do tempo
quando, na roleta dos dias,faço um tour à minha antigamorada, já não reconheçonem as paredes nem as ruasque vi na minha juventudee no topo da escadariaprocuro o ateliê do qualjá não resta nada
e, no seu novo décor,Montmartre parece triste
e os lilases estão mortos

A  Boémia, a boémia,éramos jovens
éramos loucose a Boémiajá não quer dizernada

tradução de PG-M 2018e a magnífica e conhecida performance de Chales Aznavourinterpretando este magnífico poema
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Published on October 02, 2018 15:55
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