A semente
Eis o texto escrito em junho de 2021 que, inesperadamente, se transformou num romance. Se, na altura, a minha ideia era escrever mais um livro, estava longe de pensar que usaria este desabafo para contar uma história.
«Tinha doze anos quando conheci a minha mãe - esta frase dá para tudo, até para abrir um romance.
E, no meu caso, é verdade.
Podia ser descritivo, dar-vos todos os detalhes do dia em que a conheci, mas prefiro fazer de pássaro e ver tudo lá de cima, de olho naquele miúdo com as pernas pouco firmes no átrio do aeroporto, no voo de Nova Iorque acabado de chegar ou nos primeiros passageiros a surgirem com as bagagens. Ao miúdo, na verdade, só as mulheres interessavam, as que chegavam sozinhas, e ele a ver-lhes no rosto se havia vestígios de mãe ou os traços do retrato que um dia alguém lhe mostrara. Todas traziam consigo essa possibilidade e todas passaram por ele.
Até que ela parou: um nada menos miúda do que o miúdo que a esperava, vestido amarelo sem ombros, o cabelo curto e preto que mal tocava o pescoço, entre mais frivolidades de que ele não se esqueceu.
Não quero ser mais descritivo, fazer aquilo que procuro sempre que escrevo um livro, revelar se o seu abraço teve o aperto perfeito ou mesmo se aquelas lágrimas foram um caudal de culpa ou outra coisa qualquer.
TRÊS MESES DEPOIS
Três meses depois, fui eu a ir ter com ela.
Sei que se valeu de tudo para me extasiar - sei, porque o conseguiu. A América dos anos 70 distava um bom par de décadas desse Portugal arcaico ainda a apanhar as canas do 25 de abril. E depois era Natal, o Natal de Nova Iorque, o hotel em Times Square, a vertigem à janela sobre a 7.ª Avenida uns trinta andares lá em baixo, desfocada pela neve que começara a cair – a neve que eu nunca vira. Ainda os dias seguintes: A Chorus Line na Broadway, ou uma loja assombrosa com cinco andares de brinquedos, camadas de fantasia com darth vaders em pessoa a andarem nos corredores; a casa de chocolate onde cabia à vontade o trono de um Pai Natal - daqueles em quem se acredita, de olho azul e barriga, nada dos malnutridos com babete descaído a tentar fazer de barba - e, por fim, o vento doido no topo do arranha-céus, de onde teria caído não fosse a mão do gorila que me mantinha agarrado e enxotava aviões como se faz às moscas.
A DUAS HORAS DE CARRO, Shelton,
e uma casa na floresta, a casa dela;
à sua volta, nada, apenas o arvoredo. Nos dias que se seguiram, a lareira sempre acesa, as bengalinhas de açúcar, as meias penduradas e enchumaçadas de doces, espetadas de marshmallows a torrarem no brasido, um pinheiro genuíno encostado ao vidro enorme e à paisagem do bosque acobertado de neve. Junto ao tronco, as prendas já arrumadas trazidas de Nova Iorque, caixas grandes, gigantescas, o peso tomado às escondidas não fosse aquilo ser um logro e ouvir-se chocalhar. Na noite da consoada, alguém bateu à porta. Era Bob, o homem alto, agarrado a uma forquilha e na ponta um lampião. Atrás dele, miúdos agasalhados a encherem o ar de fumo com o bafo dos seus cânticos e a chamarem-me com os olhos para sairmos noite dentro pela estrada da floresta à procura de outras casas.
Um dia acordei cedíssimo, ainda de madrugada, e desci à cozinha. Em cima da mesa, havia um cesto de fruta. Lembro-me da maçã, e só porque parecia o adereço de um filme - roxa, maior do que uma meloa. Peguei-lhe, saí de casa e fui a estalar dentadas dali até à floresta.
Quase lá, uma cerca de madeira, tosca como devia; depois, sim, as árvores despidas de frio, troncos brancos, árticos, e arbustos a remexerem-se que só um adulto idiota faria dever ao vento e não aos índios Mohegan que lá estavam emboscados. Bastaria ouvir os passos a mastigarem a neve para saber que esta caíra ao longo da noite inteira. Um pouco à frente, vi a raposa branca a assanhar um guaxinim, o que, mesmo sendo mentira, parecia tão verosímil como tudo aquilo que ocorre a um puto perdido num bosque.
Eu e a América, sozinhos finalmente.
Podia ser mais descritivo? Podia. Prefiro ser aritmético: por quanto se multiplicam, no lento correr da idade, três meses assim vividos? O que se lhe diminui para não ter de enfrentar tudo? Há sombras aflitivas ocultas naquele quadro, há muito que não o confundo com a paisagem pastoril de uma caixa de bombons.
HOJE, não sei. Entre o deve e o haver dessas contas impossíveis, talvez só reste o lugar.
O LUGAR
tantos anos depois, voltou a ser suportável regressar àquele cenário. Ainda há quem me pergunte porque falei sobre a América ao escrever a Sarah Gross. Já respondi tantas vezes, nem sempre da mesma maneira, mas nunca o fiz como agora, ao decidir contar tudo. Os meus lugares do romance são os regressos possíveis, Shelton e Nova Iorque como sempre os recordei, ou o bosque do colégio que é exatamente o mesmo que percorri em criança a ratar uma maçã. E tudo para confessar que só sei escrever assim, sempre nalgum lugar que ainda me deva respostas.
Há uma passagem de Anna Karénina que deixei de reler desde que a soube de cor:
«Anna (…) pediu a Annuckka que trouxesse uma pequena lanterna, prendeu-a no braço da poltrona e retirou do seu saco uma faca de cortar papel e um romance inglês. A princípio não conseguiu ler. Primeiro incomodavam-na o burburinho e o movimento, depois, quando o comboio partiu, era impossível não escutar os ruídos; depois a neve que batia na janela da esquerda e se colava ao vidro,(…) e as conversas acerca da terrível nevasca que ia lá fora distraíram a sua atenção. E continuou assim: os mesmos solavancos e batidas, a mesma neve na janela, as mesmas mudanças rápidas do calor abafado para o frio e novamente para o calor, os mesmos rostos entrevistos na meia escuridão e as mesmas vozes, e Anna conseguiu ler e compreender o que lia.»
Eis o poder do lugar:
uma mulher lê um livro, mas lê-o na carruagem;
sentada numa poltrona, mas na meia escuridão;
a neve a bater na janela, mas por fim ignorada.
O meu próximo romance será escrito num comboio. Não todo; se calhar, nem uma linha. Só preciso do lugar; do lugar onde me sento e do que deixo arrastar nas janelas do vagão como se fosse um filme. Já desenhei o percurso no meu mapa da Europa: daquela aldeia na Áustria cujo nome pouco importa aos Alpes da Lombardia; apear-me ao fins da tarde para travar uma imagem que mereça ser cheirada, sair de mochila aos ombros, pedir um copo de vinho e bebê-lo na varanda de algum albergue suíço para ver um casario no topo de uma montanha, mais o que possa caber no rascunho de um romance.»
Mãe, Doce Mar
«Tinha doze anos quando conheci a minha mãe - esta frase dá para tudo, até para abrir um romance.
E, no meu caso, é verdade.
Podia ser descritivo, dar-vos todos os detalhes do dia em que a conheci, mas prefiro fazer de pássaro e ver tudo lá de cima, de olho naquele miúdo com as pernas pouco firmes no átrio do aeroporto, no voo de Nova Iorque acabado de chegar ou nos primeiros passageiros a surgirem com as bagagens. Ao miúdo, na verdade, só as mulheres interessavam, as que chegavam sozinhas, e ele a ver-lhes no rosto se havia vestígios de mãe ou os traços do retrato que um dia alguém lhe mostrara. Todas traziam consigo essa possibilidade e todas passaram por ele.
Até que ela parou: um nada menos miúda do que o miúdo que a esperava, vestido amarelo sem ombros, o cabelo curto e preto que mal tocava o pescoço, entre mais frivolidades de que ele não se esqueceu.
Não quero ser mais descritivo, fazer aquilo que procuro sempre que escrevo um livro, revelar se o seu abraço teve o aperto perfeito ou mesmo se aquelas lágrimas foram um caudal de culpa ou outra coisa qualquer.
TRÊS MESES DEPOIS
Três meses depois, fui eu a ir ter com ela.
Sei que se valeu de tudo para me extasiar - sei, porque o conseguiu. A América dos anos 70 distava um bom par de décadas desse Portugal arcaico ainda a apanhar as canas do 25 de abril. E depois era Natal, o Natal de Nova Iorque, o hotel em Times Square, a vertigem à janela sobre a 7.ª Avenida uns trinta andares lá em baixo, desfocada pela neve que começara a cair – a neve que eu nunca vira. Ainda os dias seguintes: A Chorus Line na Broadway, ou uma loja assombrosa com cinco andares de brinquedos, camadas de fantasia com darth vaders em pessoa a andarem nos corredores; a casa de chocolate onde cabia à vontade o trono de um Pai Natal - daqueles em quem se acredita, de olho azul e barriga, nada dos malnutridos com babete descaído a tentar fazer de barba - e, por fim, o vento doido no topo do arranha-céus, de onde teria caído não fosse a mão do gorila que me mantinha agarrado e enxotava aviões como se faz às moscas.
A DUAS HORAS DE CARRO, Shelton,
e uma casa na floresta, a casa dela;
à sua volta, nada, apenas o arvoredo. Nos dias que se seguiram, a lareira sempre acesa, as bengalinhas de açúcar, as meias penduradas e enchumaçadas de doces, espetadas de marshmallows a torrarem no brasido, um pinheiro genuíno encostado ao vidro enorme e à paisagem do bosque acobertado de neve. Junto ao tronco, as prendas já arrumadas trazidas de Nova Iorque, caixas grandes, gigantescas, o peso tomado às escondidas não fosse aquilo ser um logro e ouvir-se chocalhar. Na noite da consoada, alguém bateu à porta. Era Bob, o homem alto, agarrado a uma forquilha e na ponta um lampião. Atrás dele, miúdos agasalhados a encherem o ar de fumo com o bafo dos seus cânticos e a chamarem-me com os olhos para sairmos noite dentro pela estrada da floresta à procura de outras casas.
Um dia acordei cedíssimo, ainda de madrugada, e desci à cozinha. Em cima da mesa, havia um cesto de fruta. Lembro-me da maçã, e só porque parecia o adereço de um filme - roxa, maior do que uma meloa. Peguei-lhe, saí de casa e fui a estalar dentadas dali até à floresta.
Quase lá, uma cerca de madeira, tosca como devia; depois, sim, as árvores despidas de frio, troncos brancos, árticos, e arbustos a remexerem-se que só um adulto idiota faria dever ao vento e não aos índios Mohegan que lá estavam emboscados. Bastaria ouvir os passos a mastigarem a neve para saber que esta caíra ao longo da noite inteira. Um pouco à frente, vi a raposa branca a assanhar um guaxinim, o que, mesmo sendo mentira, parecia tão verosímil como tudo aquilo que ocorre a um puto perdido num bosque.
Eu e a América, sozinhos finalmente.
Podia ser mais descritivo? Podia. Prefiro ser aritmético: por quanto se multiplicam, no lento correr da idade, três meses assim vividos? O que se lhe diminui para não ter de enfrentar tudo? Há sombras aflitivas ocultas naquele quadro, há muito que não o confundo com a paisagem pastoril de uma caixa de bombons.
HOJE, não sei. Entre o deve e o haver dessas contas impossíveis, talvez só reste o lugar.
O LUGAR
tantos anos depois, voltou a ser suportável regressar àquele cenário. Ainda há quem me pergunte porque falei sobre a América ao escrever a Sarah Gross. Já respondi tantas vezes, nem sempre da mesma maneira, mas nunca o fiz como agora, ao decidir contar tudo. Os meus lugares do romance são os regressos possíveis, Shelton e Nova Iorque como sempre os recordei, ou o bosque do colégio que é exatamente o mesmo que percorri em criança a ratar uma maçã. E tudo para confessar que só sei escrever assim, sempre nalgum lugar que ainda me deva respostas.
Há uma passagem de Anna Karénina que deixei de reler desde que a soube de cor:
«Anna (…) pediu a Annuckka que trouxesse uma pequena lanterna, prendeu-a no braço da poltrona e retirou do seu saco uma faca de cortar papel e um romance inglês. A princípio não conseguiu ler. Primeiro incomodavam-na o burburinho e o movimento, depois, quando o comboio partiu, era impossível não escutar os ruídos; depois a neve que batia na janela da esquerda e se colava ao vidro,(…) e as conversas acerca da terrível nevasca que ia lá fora distraíram a sua atenção. E continuou assim: os mesmos solavancos e batidas, a mesma neve na janela, as mesmas mudanças rápidas do calor abafado para o frio e novamente para o calor, os mesmos rostos entrevistos na meia escuridão e as mesmas vozes, e Anna conseguiu ler e compreender o que lia.»
Eis o poder do lugar:
uma mulher lê um livro, mas lê-o na carruagem;
sentada numa poltrona, mas na meia escuridão;
a neve a bater na janela, mas por fim ignorada.
O meu próximo romance será escrito num comboio. Não todo; se calhar, nem uma linha. Só preciso do lugar; do lugar onde me sento e do que deixo arrastar nas janelas do vagão como se fosse um filme. Já desenhei o percurso no meu mapa da Europa: daquela aldeia na Áustria cujo nome pouco importa aos Alpes da Lombardia; apear-me ao fins da tarde para travar uma imagem que mereça ser cheirada, sair de mochila aos ombros, pedir um copo de vinho e bebê-lo na varanda de algum albergue suíço para ver um casario no topo de uma montanha, mais o que possa caber no rascunho de um romance.»
Mãe, Doce Mar
Published on October 27, 2022 11:57
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