“(…) Estamos perante uma visão do mundo de feição romântica, que concentra no amor a justificação da existência. É certo que o romantismo nunca deixou de influenciar a poesia portuguesa, e que os neo-confessionalismos recuperaram o tema do sofrimento passional, mas as poetas têm-se mostrado reticentes a esse discurso que o feminismo estigmatizou, acusando-o de idealizar a mulher ou mitificar o homem, tornando-os criaturas falsas, alienadas. Em autoras mais novas, o lirismo amoroso, mesmo quando é sugerido, vê-se logo ironizado ou sabotado. Nesse sentido, a poética de Maria do Rosário Pedreira parece deslocada no tempo, e assume todos os riscos «intempestivos» de um aparente confessionalismo sentimental.” (do Prefácio, de Pedro Mexia)
MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA nasceu em Lisboa, em 1959. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas, na variante de Estudos Franceses e Ingleses, pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa (1981). Possui ainda o curso de Língua e Cultura do Instituto Italiano de Cultura em Portugal. Como escritora, tem já publicados vários trabalhos de ficção, poesia, ensaio, crónicas e literatura juvenil, procurando neste último género a transmissão de valores humanos e culturais. É co-autora da colecção O Clube das Chaves e autora da colecção Detective Maravilhas.
Amei-te como na vida se ama uma só vez; e todos os afectos que dividi depois eram apenas cinzas que evocavam o brilho dessa imensa chama. Troquei suspiros e beijos
com muitas outras bocas quando, na minha, o travo da solidão era uma amarga desculpa para repartir o pouco que não tinha; mas
em nenhuma quis morder fruto mais suculento que o silêncio nem permiti que pousasse sequer o nome verdadeiro - que só nos teus lábios era graça e canção
e eco de loucura. Foi o meu corpo tão vão naqueles que o cingiram que me faria velha a tentar recordar-lhes os gestos hesitantes, as convulsões da pressa e os veios de sal que descreviam no litoral da pele o aviso de uma paisagem interior abandonada. Mas de nada
me serviu amar-te assim - pois, ao dizer-te o que não pude ser longe de ti, digo-te o que sou e isso há-de guardar-te para sempre de voltares.
O prefácio de Pedro Mexia diz-nos bem sobre o que versam os poemas desta poesia reunida.
Mas neste livro o sofrimento não nasce de um distanciamento provisório e mutuamente doloroso, mas da ruptura sentida como trágica apenas por uma das pessoas. Daí que estes poemas coleccionem sinais do fim e marcas da lembrança: roupas, fotografias, camas desfeitas. O cheiro dos livros é o cheiro do amado nos livros, e em todos as coisas materiais que ficaram para trás como testemunhas. E o que mais magoa na infelicidade é a lembrança dos tempos felizes. A infelicidade, justamente, impregna estas páginas. Estamos perante uma visão do mundo de feição romântica, que concentra no amor a justificação da existência.
Maria do Rosário Pedreira convenceu-me. Conseguiu até fazer despertar uma minúscula parte romântica que há em mim, que está bem escondida nem sei bem onde. Esta poesia bebe daqueles dramas em que o ser amado desaparece e o que ama pena para todo o sempre, na mais hedionda solidão. Mas aqui é tudo tão elegante que o sofrimento parece um modo de amar como outro qualquer, talvez até mais sublime, mais leal, mais verdadeiro, mais invejável. As últimas páginas são as minhas preferidas. "... Trago portas abertas no coração: se ainda não sabias, és muito bem-vindo"
As palavras começam a ficar velhas: têm dores nas articulações e rangem, de vez em quando, sem razão; reclamam óleos e resinas, tempo e açúcares mais lentos.
Mas também eu estou velha demais para oficinas, tão cansada de livros e papéis, morta por viver outras coisas – por amor,
talvez espreitasse de novo nas mangas do mundo e escrevesse uma fiada de búzios no pulso da areia. Mas quantos dos teus beijos perderia? Perdoem-me os que
ainda esperam por mim. Não sei se volto.
(Pág. 249)
"Poesia Reunida" (2012)
"Nenhum Nome Depois" (2004)
IV Nenhum Nome Depois
Lê, são estes os nomes das coisas que deixaste – eu, livros, o teu perfume espalhado pelo quarto; sonhos pela metade e dor em dobro, beijos por todo o corpo como cortes profundos que nunca vão sarar; e livros, saudade, a chave de uma casa que nunca foi a nossa, um roupão de flanela azul que tenho vestido enquanto faço esta lista:
livros, risos que não consigo arrumar, e raiva – um vaso de orquídeas que amavas tanto sem eu saber porquê e que talvez por isso não voltei a regar; e livros, a cama desfeita por tantos dias,
uma carta sobre a tua almofada e tanto desgosto, tanta solidão; e numa gaveta dois bilhetes para um filme de amor que não viste comigo, e mais livros, e também uma camisa desbotada com que durmo de noite para estar mais perto de ti; e, por
todo o lado, livros, tantos livros, tantas palavras que nunca me disseste antes da carta que escreveste nessa manhã, e eu,
eu que ainda acredito que vais voltar, que voltas, mesmo que seja só pelos teus livros.
(Pág. 205)
"Poesia Reunida" (2012)
"O Canto do Vento nos Ciprestes" (2001)
Se partires, não me abraces – a falésia que se encosta uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre e sonha com viagens na pele salgada das ondas.
Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão das marés e uma canção desprende-se da espiral dos búzios; mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder, porque o ar que respiras junto de mim é como um vento a corrigir a rota do navio. Se partires, não me abraces –
o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno nos dias sem ninguém –longe de ti, o corpo não faz senão enumerar as próprias feridas (como a falésia conta as embarcações perdidas nos gritos do mar); e o rosto espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.
Se me abraçares, não partas.
"Poesia Reunida" (2012)
"O Canto do Vento nos Ciprestes" (2001)
O meu amor não cabe num poema - há coisas assim, que não se rendem à geometria deste mundo; são como corpos desencontrados da sua arquitectura ou quartos que os gestos não preenchem.
O meu amor é maior que as palavras; e daí inútil a agitação dos dedos na intimidade do texto - a página não ilustra o zelo do farol que agasalha as baías nem a candura da mão que protege a chama que estremece.
O meu amor não se deixa dizer - é um formigueiro que acode aos lábios como a urgência de um beijo ou a matéria efervescente dos segredos; a combustão laboriosa que evoca, à flor da pele, vestígios de uma explosão exemplar: a cratera que um corpo, ao levantar-se, deixa para sempre na vizinhança de outro corpo.
O meu amor anda por dentro do silêncio a formular loucuras com a nudez do teu nome - é um fantasma que estrebucha no dédalo das veias e sangra quando o encerram em metáforas. Um verso que o vestisse definharia sob a roupa como o esqueleto de uma palavra morta. Nenhum poema podia ser o chão da sua casa.
(Pág. 94)
"Poesia Reunida" (2012)
"A Casa e o Cheiro dos Livros" (1996)
O verão deixa-me os olhos mais lentos sobre os livros. As tardes vão-se repetindo no terraço, onde as palavras são pequenos lugares de memória. Estou divorciada dos outros pelo tempo destas entrelinhas – longe de casa, tenho sonhos que não conto a ninguém, viro devagar
a primeira página: em fevereiro, eles ainda faziam amor à sexta-feira. De manhã, ela torrava pão e espremia laranjas numa cozinha fria. Havia mais toalhas para lavar ao domingo, cabelos curtos colados teimosamente ao espelho. Às vezes, chovia e ambos liam o jornal, dentro do carro, antes de se despedirem. As vezes, repartiam sofregamente a infância, postais antigos, o silêncio – nada
aconteceu entretanto. Regresso, pois, à primeira linha, à verdade que remexe entre as minhas mãos. Talvez os olhos estivessem apenas desatentos sobre o livro; talvez as histórias se repitam mesmo, como as tardes passadas no terraço, longe de casa. Aqui tenho sonhos que não conto a ninguém.
(Pág. 60)
"Poesia Reunida" (2012)
"A Casa e o Cheiro dos Livros" (1996)
à laia de dedicatória
Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi talvez para sempre ― a casa e o cheiro dos livros, a suave respiração do tempo, palavras, a verdade, camas desfeitas algures pela manhã, o abrigo de um corpo agitado no seu sono. Guarda-o
serenamente e sem pressa, como eu nunca soube. E protege-o de todos os invernos ― dos caminhos de lama e das vozes mais frias. Afaga-lhe as feridas devagar, com as mãos e os lábios, para que jamais sangrem. E ouve, de noite, a sua respiração cálida e ofegante no compasso dos sonhos, que é onde esconde os mais escondidos medos e anseios.
Não deixes nunca que se ouça sozinho no que diz antes de adormecer. E depois aguarda que, na escuridão do quarto, seja ele a abraçar-te, ainda que não te tenha revelado uma só vez o que queria.
Acorda mais cedo e demora-te a olhá-lo à luz azul que os dias trazem à casa quando são tranquilos. E nada lhe peças de manhã ― as manhãs pertencem-lhe; deixa-o a regar os vasos na varanda e sai, atravessa a rua enquanto ainda houver sol. E assim haverá sempre sol e para sempre o terás, como para sempre o terei perdido eu, subitamente, por assim não ter feito.
Pela sabedoria popular, escuta-se a plenos pulmões "quem casa, quer casa". Quiçá pela sua simbologia de reduto protector, pela metáfora com o próprio ser protegido, também ele em processo de edificação - mesmo que na ausência de um correcto alvará -, pelo poder que se projecta com a sua sombra. O que está mais do que vincado na nossa sociedade é essa necessidade de partir pedra e dela erigir um lar, assente numa partilha imensa, entre animais de afectos, sedentos de empatia face a um outro. Que será de uma casa sem janelas para vislumbrar o decorrer das estações? Ou, sem telhado, para evitar a combustão solar ou o arrefecimento glaciar? Ou sem escadas, para alcançar os pisos mais altivos?
Amparada pelas paredes caiadas, Maria Rosário Pedreira assume o papel de costureira das palavras, cerzindo uma manta de retalhos, a partir de recordações (vividas pelo eu poético!?). De verso em verso, resultam bordados díspares - não fossem alinhavados ao compasso de uma sístole. O resultado!? Uma montanha russa de emoções, que deambula entre o encanto místico e o aborrecimento bucólico, talhado pelo destino do ser português. Como a luz entrecortada, numa janela em movimento, há momentos de relampejo, sobretudo os últimos versos, que teimam em permanecer na mente, qual eco. Para além disso, evocando a lógica de "uma coisa só existir, quando essa coisa tem nome", o holofote permance sob o livro "Nenhum Nome Depois", devido, em grande parte, à forma crua como trata a morte - a Eurídice que encara Orfeu.
Num fado permamente, são escalpelizadas um rol de cenas domésticas, almofadadas a dor e recheadas de metáforas e dicotomias, em que o homem parte e a mulher queda-se. Porventura, esse rememorar de um pensamento tão mesquinhamente incutido no nosso âmago, ter-me-á apartado da lírica de uma autora, que permanece na minha memória de infância, como das principais responsáveis pelo gosto da leitura. Nas voltas de um pêndulo, consigo entrever um livro em branco, sob uma cómoda bamba, a aguardar um leitor em êxtase.
"Agora há um dor que pousa nas palavras. Não as digas - um nome basta para dividir o coração. Se me esqueceste entre
um livro e outro, finge que não sei; despede-te de mim como uma lâmpada antiga, deixa que a tua sombra seja a minha única paisagem."
Estes poemas, a avaliar pela média do livro no Goodreads, devem ser muito bons. Mas eu não gosto. Não os consigo sentir como poesia. A maioria parecem-me cartas de amor, muito lamurientas, do tipo "tu deixaste-me e eu agora vou morrer".
"O gato lembra-se de ti nos intervalos. Espera de olhos acesos as histórias que nos contas. Passeia-se inquieto sobre o meu parapeito e eriça o pêlo, cúmplice, quando pressente que regressas.
Chegas sempre de noite. Sei quem és e ao que vens e ofereço-te o silêncio de um pequeno quarto recuado, as sombras das traseiras na minha pele, o tempo de repetir um gesto inevitável. Ouço-te contar a mesma lenda com lábios sempre novos. Aprendo-a e esqueço-a. Nunca a saberemos de cor, o gato ou eu.
Depois partes. Levas contigo a tua voz, mas a música fica. Eu fecho as portadas devagar. O gato mia baixo à janela. Ninguém acena: guardamos com os outros o segredo das tuas visitas. Ambos. O gato e eu."
Deste até gosto. Porque tem gato? Mas... como é que ela sabe que o gato se lembra dele? Está bem! É poesia... Do seguinte também gosto. Porque tem serpentes?
"Lembrava-se dele e, por amor, ainda que pensasse em serpente, diria apenas arabesco; e esconderia na saia a mordedura quente, a ferida, a marca de todos os enganos, faria quase tudo
por amor: daria o sono e o sangue, a casa e a alegria, e guardaria calados os fantasmas do medo, que são os donos das maiores verdades. Já de outra vez mentira
e por amor haveria de sentar-se à mesa dele e negar que o amava, porque amá-lo era um engano ainda maior do que mentir-lhe. E, por amor, punha-se
a desenhar o tempo como uma linha tonta, sempre a cair da folha, a prolongar o desencontro. E fazia estrelas, ainda que pensasse em cruzes; arabescos, ainda que só se lembrasse de serpentes."
"Não tenho planos, nem promessas, nem filhos que nos convidam para almoços de domingo — a minha ideia de família resume-se a um retrato velho preso numa gaveta; e do amor possível sei tão-só
o que li nos romances que me salvaram da desordem quando o meu tempo andava de ferida em cicatriz. Mas guardo ainda muitos por estrear para essa estante
que ergueste no corredor como uma casa nova. E trago portas abertas no coração:
se ainda não sabias, és muito bem-vindo."
***
"Não há mais nenhum nome. Depois de ti destinaram-me apenas corpos que não amei, rostos onde não quis pousar os olhos por temor de os fixar, mãos que eram sempre as sombras das tuas mãos sob os lençóis. Nunca sequer as vi,
nem toquei esses dedos que, no escuro, celebravam na minha a tua carne — se outro motivo os trazia, por mais vago, também não quis ouvi-lo, nunca o soube. Depois de ti, depois dos outros homens, é ainda o teu nome que digo, e nenhum outro."
***
Mais de 10, menos de 15: este é o intervalo onde se concentram os poemas que ficaram comigo. Parece-me que a poesia da Maria do Rosário Pedreira não se infiltrou na minha pele, mas isso intriga-me: ela canta sobretudo a despedida, o sofrimento da despedida amorosa, e este é um universo que sempre me atraiu especialmente (aliás, o amor em si, globalmente considerado — do encontro ao adeus —, é um tema que capta a minha atenção e isso é transversal a todas as artes e formas de expressão artística/humana)... aqui, no entanto, sinto uma certa saturação temática. Ou seja, vejo beleza — retenho imagens de decotes perfumados, de lençóis brancos, de espaços exteriores e interiores vazios, de palavras que para sempre ficarão retidas — ao reler os poemas que mais me marcaram*, mas se calhar tenho de aceitar que esta morada não é para mim.
* e digo, sem margem para dúvidas, que adoro os dois poemas que aqui citei.
Há algo na efusividade romântica de Maria do Rosário Pedreira que às vezes me cansava os olhos a ler, tornando tudo (atrevo-me a dizê-lo) demasiado corno para realmente sobrevoar o meramente lamechas, isto sobretudo no primeiro livro dos quatro da coleção. Mas as formas como pinta a natureza e a morte e o eterno retorno do luto deixaram-me rendido a vários dos seus poemas, alguns deles com uma imagética tão vívida que transtorna os nervos da pele.
"Ainda bem que não morri de todas as vezes que quis morrer - que não saltei da ponte, nem enchi os pulsos de sangue, nem me deitei à linha, lá longe. Ainda bem
que não atei a corda à viga do tecto, nem comprei na farmácia, com receita fingida, uma dose de sono eterno. Ainda bem
que tive medo: das facas, das alturas, mas sobretudo de não morrer completamente e ficar para aí - ainda mais perdida do que antes - a olhar sem ver. Ainda bem
que o tecto foi sempre demasiado alto e eu ridiculamente pequena para a morte.
Se tivesse morrido de uma dessas vezes, não ouviria agora a tua voz a chamar-me, enquanto escrevo este poema, que pode não parecer - mas é - um poema de amor."
Quatro livros de poesia reunidos num só livro. Uma obra lindíssima de uma editora tão talentosa, com olhos de lince para descobrir grandes talentos na literatura portuguesa: José Luís Peixoto, Valter Hugo Mãe, Ana Margarida de Carvalho, entre tantos outros.
Foi uma óptima companhia na minha semana de férias. Em breve, coloco aqui alguns dos poemas que mais me apaixonaram. Recomendado para amantes de poesia, com certeza.
“Ficou vazio o teu lugar à mesa. Alguém veio dizer-nos que não regressarias, que ninguém regressa de tão longe. E, desde então, as nossas feridas têm a espessura do teu silêncio, as visitas são desejadas apenas a outras mesas. Sob a tua cadeira, o tapete continua engelhado, como à tua ida. Provavelmente ficará assim para sempre.
No outro Natal, quando a casa se encheu por causa das crianças e um de nós ocupou a cabeceira, não cheguei a saber se era para tornar a festa menos dolorosa, se para voltar a sentir o quente do teu colo.”
Pai, dizem-me que ainda te chamo, às vezes, durante o sono - a ausência não te apaga como a bruma sossega, ao entardecer, o gume das esquinas. Há nos meus sonhos um território suspenso de toda a dor, um país de verão aonde não chegam as guinadas da morte e todas as conchas da praia trazem pérola. Aí
nos encontramos, para dizermos um ao outro aquilo que pensámos ter, afinal, a vida toda para dizer; aí te chamo, quando a luz me cega na lâmina do mar, com lábios que se movem como serpentes,mas sem nenhum ruído que envenene as palavras: pai, pai. Contam-me
depois que é deste lado da noite que me ouvem gritar e que por isso me libertam bruscamente do cativeiro escuro desse sonho. Não sabem
que o pesadelo é a vida onde já não posso dizer o teu nome - porque a memória é uma fogueira dentro das mãos e tu onde estás também não me respondes.
Maria do Rosário Pedreira é inigualável. Tornou-se já na minha poeta favorita. Apesar de esta edição não conter o novo livro, "O meu corpo humano", é, para mim, uma relíquia. Peguei nele para o meu projeto de divulgação de poesia, Urgente o amor, e o que se tornou urgente foi ler o livro de uma ponta à outra. O livro contém "A Casa e o Cheiro dos Livros", "O Canto do Vento nos Ciprestes", "Nenhum Nome Depois" e "A Ideia do Fim".
Eis um exemplo para irem correr comprar o livro:
"O meu amor não cabe num poema - há coisas assim, que não se rendem à geometria deste mundo; são como corpos desencontrados da sua arquitectura ou quartos que os gestos não preenchem.
O meu amor é maior que as palavras (...)"
Fascina-me mesmo como alguém consegue ser tanto e tão bem: editora, poeta, cronista e letrista.
Talvez a minha review diga mais de mim do que do livro. Antes de mais, sofro de um caso agudo de Fernando Pessoa-ismo, que torna difícil ler poesia. Fui criado por um trio de mestres, e agora tudo parece uma sombra em comparação. Um grande poema almeja roçar os joelhos da Tabacaria, mas para ser brutalmente sincero, o melhor deste livro não chegaria ao seu dedo mindinho. Estou habituado a esta forma de comparação porque a uso constantemente nos poemas que escrevo. A diferença é que nunca publicaria poemas que não considero dignos de se baterem contra os melhores, nem que seja durante uns breves segundos de dúvida. Ou seja, existem aqui bons poemas, especialmente na parte final do livro, mas reduziria as 264 páginas a 30, para o bem da imagem da escritora e para o bem-estar dos leitores.
De qualquer forma, este livro consiste num poema escrito de 50 maneiras ligeiramente diferentes. E são todos poemas de amor. Assim sendo, sou certamente a pessoa errada para os ler, porque já estou farto de arte (música, livros, quadros) focada no amor - há uma banalização desta emoção criada por um excesso de foco. Eu gosto de gelado, mas não o torno a única componente da minha dieta. Escrevam sober astronomia, beleza, concertos, diversão, entusiasmo, física, guitarras, humanidade, inspiração, jantares, Kafka, liberdade, mar, nostalgia, opressão, Portugal, quartas-feiras, rebuçados, saudade, tristeza, Universo, viagens, xadrez, yoga, zoologia. Existem tantas coisas que dão temas de poemas, porquê insistir sempre na mesma tecla, mundo? Ponho-me sempre a pensar se estarei correto ou se, com uma infância diferente, estaria a caminhar em sincronia com este fanaticismo pelo amor.
Agora que penso no assunto, e para tentar dar uma melhor justificação a mim próprio sobre o porquê de estar tão reticente: adoro poemas em que as emoções são analisadas e processadas pelo pensamento. Os poemas deste livro parecem ser compostos por emoção crua, transferida para a página diretamente do coração.
Ainda bem que não morri de todas as vezes que quis morrer - que não saltei da ponte, nem enchi os pulsos de sangue, nem me deitei à linha, lá longe. Ainda bem
que não atei a corda à viga do tecto, nem comprei na farmácia, com receita fingida, uma dose de sono eterno. Ainda bem
que tive medo: das facas, das alturas, mas sobretudo de não morrer completamente e ficar por aí - ainda mais perdida do que antes - a olhar sem ver. Ainda bem
que o tecto foi sempre demasiado alto e eu ridiculamente pequena para a morte.
Se tivesse morrido de uma dessas vezes, não ouviria agora a tua voz a chamar-me, enquanto escrevo este poema, que pode não parecer - mas é - um poema de amor.
O meu preferido: Este foi o nosso último abraço. E quando, Daqui a nada, deixares o chão desta casa Encostarei a amorosamente os lábios ao teu copo Para sentir o sabor desse beijo que hoje não Daremos. E então, sim, poderei também eu Partir, sabendo que, afinal, o que tive na vida foi mais, muito mais, do que mereci.
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"Há nos meus sonhos um território suspenso de toda a dor, um país de verão aonde não chegam as guinadas da morte e todas as conchas da praia trazem pérola (...) Não sabem que o pesadelo é a vida onde já não posso dizer o teu nome - porque a memória é uma fogueira dentro das mãos e tu onde estás também não me respondes."
Pai, dizem-me que ainda te chamo, às vezes, durante p.183
Não entrego à poesia muito tempo de leitura. Também confesso que não sei muito bem o que faz desta boa ou má poesia, mas acredito que deve tocar o leitor. Foi precisamente isso que aconteceu com este livro de Maria do Rosário Pedreira: tocou-me. Mais do que uma vez.
A poesia de Maria do Rosário Pedreira - reunida aqui em quatro volumes: "A casa e o Cheiro dos Livros"; "O Canto do Vento nos Ciprestes"; "Nenhum Nome Depois" e um inédito chamado "A Ideia do Fim" - transporta-nos para um mundo bem real e plausível onde se vive o cheiro do chocolate-quente a acompanhar um bom livro, enquanto a chuva desaba em bátegas lá fora, tocada a vento. Não nos enganemos: cada poema, cada estrofe, cada verso, capa palavra é sobre amor. O amor cliché, sim. O amor feminino dirigido a um amado (?) masculino. Mas um amor cliché reinventado, se isso for possível.
Com prefácio do crítico literário Pedro Mexia e com críticas de Eduardo Prado Coelho, Valter Hugo Mãe, Urbano Tavares Rodrigues ou José Luís Peixoto, o livro é uma edição muitíssima cuidada, ainda que minimalista, da Quetzal, uma editora que já nos habituou à melhor qualidade sempre!
Termino como comecei: a poesia de Maria do Rosário Pedreira é uma poesia de interior, é uma poesia de trevas, é uma poesia de mantas em oposição ao frio que faz lá fora. Como diria José Luís Peixoto: "a poesia de Mª do Rosário Pedreira (...) é um pequeno mundo, uma pequena vida. A boa poesia é assim: preciosa."
"Afasto as cortinas devagar;e, atrás do vidros, acordo o silêncio de um muro de granito onde já não se demora a luz. Lembro-me sem querer de ti e convoco as memórias de um quarto antigo para não repetir o que os livros diriam sempre de outro modo."
Não tenho planos, nem promessas, nem filhos que nos convidem para almoços de domingo - a minha ideia de família resume-se a um retrato velho preso numa gaveta; e do amor possível sei tão-só
o que li nos romances que me salvaram da desordem quando o meu tempo andava de ferida em cicatriz. Mas guardo ainda muitos por estrear para essa estante que ergueste no corredor como uma casa nova. E trago portas abertas no coração: se ainda não sabias, és muito bem-vindo.