What do you think?
Rate this book


264 pages, Paperback
Published May 25, 2011
Enquanto trabalhava, mordiscando uma canta hidrográfica, lutava contra a tentação de fazer pelo menos um teste com alguém que o conhecesse bem, fazer a pergunta pela última vez, antes de sepultá-la, ou então partir para o psiquiatra. Pois a questão persistiria independentemente da resposta. Ou a cobaia respondia que não, que ele nunca usara bigode, e isso confirmava não apenas que ele padecia de um surto de loucura, como ainda levava tal loucura ao conhecimento de uma pessoa suplementar. [...] Ou então o interlocutor respondia que naturalmente, sempre o conhecera de bigode, que pergunta incomum, e então fatalmente Agnès seria culpada. Ou estaria louca. Não, culpada, uma vez que tivera de aliciar os demais. O que por sinal dava na mesma, pois essa culpa, em mentira tão exacerbada, tão metódica, às raias da conspiração, presumia uma forma de loucura. (p. 49)Já em A colônia de férias, o gênero muda mas a paranoia continua: o jovem Nicolas vai contra sua vontade para uma colônia de férias de esqui. Ele é aquele menino ostracizado por ter pais superprotetores: é um pouquinho patético, desejando sempre a proteção alheia, e não quer encarar as dificuldades da vida. Prefere se manter em um casulo fechado. Enquanto o resto da turma foi de ônibus, seu pai lhe entrega pessoalmente de carro na colônia. E o pior, vai embora e leva a mochila do menino junto, sem querer. Nicolas, desamparado, sem suas roupas e pertences pessoais, deve passar aqueles dias com artefatos improvisados comprados no mercado próximo com o monitor.
Deitado bem próximo à janela, sob a calefação opressiva, Nicolas ouvia o motor roncar cada vez mais alto, cada vez mais perto. Via o carro aproximar-se por baixo, como no mecânico quando o subiam no guindaste. Todo aquele metal incandescido, estufado pelo superaquecimento, passaria por cima dele, as esteiras e óleo e sangue correriam sobre ele como os caldos com que uma aranha lambuza sua presa viva. Os pneus rangiam na neve, por trás da janela. O motor parou, ouviu-se uma porta bater depois outra. [...] Pronto, pensou Nicolas: estão vindo por minha causa. (p; 234)Carrère conseguiu nestas duas histórias, dois lados de uma paranoia pesada, construir pedaço a pedaço as psiques de duas personagens que, a despeito de suas perturbação, passam uma impressão de vívida realidade. Mesmo quando o mundo ao seu redor não os trate como reais, como no caso do protagonista de O bigode. Seus tiques e anseios são palpáveis e é muito difícil não sentir uma empatia; esta que torna esta experiência de leitura algo tão angustiante.