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A Criação Do Mundo

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«Querido leitor: vais ler de uma assentada, se a maciez do texto te não desanimar, os seis dias desta «Criação do Mundo», que foram aparecendo nas montras separadamente, à medida que iam decorrendo. Livro temerariamente concebido na mocidade, imprevisível na trama e no rumo, só o tempo lhe podia dar corpo e remate, traçando-lhe o enredo e marcando-lhe a duração.»
Neste livro, Torga, primeiro escritor a receber o prémio Camões, narra as principais lembranças de sua vida, como a infância em Trás-os-Montes, as paisagens do campo, sua primeira viagem pela Europa dominada pelo fascismo, o encontro em Paris com exilados políticos portugueses, as rebeliões contra o Estado Novo, a guerra civil espanhola, e até a sua experiência nas cadeias de Salazar.

560 pages, Paperback

First published January 1, 1937

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About the author

Miguel Torga

120 books212 followers
Miguel Torga, pseudonym of Adolfo Correia da Rocha was one of the greatest Portuguese writers of the 20th century. He wrote poetry, short stories, theater and a 16 volume diary.

He was born in a village in Trás-os-Montes, northern Portugal, to small-time farmer parents. After a short spell as student in a catholic seminary in Lamego, also in Trás-os-Montes, in 1920 his father sent him to Brazil where he worked on the coffee plantation of an uncle who, finding him to be a clever student, paid his high school there and afterwards his medicine graduation (1933) at the University of Coimbra, in Portugal (to where he returns in 1925).

After graduation he worked in his village and in other places in the country, publishing his books from his own pocket for a number of years. In 1941, he established himself as an otolaryngologist physician in Coimbra.
His agnostic beliefs seems to reflect in his work, that deals mainly with the nobility of the human condition in a beautiful but ruthless world where God is absent or is nothing but a passive and silent, indiferent creator.

After the value of his work was being recognized, he went on to receive several awards, as the Prémio Camões in 1989 and the Montaigne award in 1981. He was several times nominated for the Nobel Prize of Literature, being the last one in 1994, but he never won.

Source: http://en.wikipedia.org/wiki/Miguel_T...

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Displaying 1 - 26 of 26 reviews
Profile Image for Luís.
2,371 reviews1,367 followers
October 29, 2025
As in all written works and other artistic manifestations of a different nature, where the author's creativity is autobiographically adapted, we will face assumptions, cognitions, and realities, more or less (un)suspicious but always incomplete and unfinished. Nothing obeys preconceived calculations. And this, not to mention the impossible-to-count effects that determine who reads, observes, appreciates, and, therefore, enjoys them.
I'd sum up all this: a Proustian work of undeniable quality!
In my favourites, as everything (or almost everything) by Miguel Torga.
Profile Image for Nelson Zagalo.
Author 15 books466 followers
February 7, 2019
Confesso que por vezes me custava largar as páginas de "A Criação do Mundo" (1937-1981), abandonar as descrições dos espaços e histórias, porque dava por mim transportado para uma realidade alternativa, feita de paisagens de Torga mescladas com as nostalgias de um mundo vivido e já esquecido por mim. Elevava-se uma melancolia interior, um sentir de realidade passada, plasmada, estanque e inalterável e por isso mais saborosa do que a que se vai vivendo dia após dia, na incerteza do amanhã. Queria dizer apenas estas palavras e calar-me, mas não posso, Torga merece que nos detenhamos, que sobre ele falemos, que não deixemos calar o seu legado, porque é uma das melhores ilustrações escritas do Portugal do século XX.

[imagem]
https://virtual-illusion.blogspot.com...

Torga era médico e poeta, mas o sentido da sua vida foram as letras, sempre o seu primeiro amor, desde que na escola entrou até que no túmulo nos disse adeus. Dedicou-se de corpo e alma à poesia, mas o seu maior legado é diarista, tendo publicado entre 1941 e 1993 nada menos que 16 volumes, à média de um por cada três anos. São milhares de páginas com registos sobre tudo o que lhe ia na alma, o seu modo de ver que sofregamente passava para o papel. A este juntam-se algumas novelas em prosa, muitos contos e centenas de poemas publicados em revistas e livros que foi editando.

Torga foi sempre o seu próprio editor, criou várias revistas de poesia e editou praticamente todos os seus livros como "Edições de Autor", o que nos diz muito sobre a pessoa e o seu círculo próximo. A honra e a dignidade acima de tudo, valores provindos da força telúrica de se seu pai, mas que elevou a pontos de total obstinação que o foram afastando de tudo e todos enquanto viveu. Passou 4 meses na prisão, metade dos quais em isolamento por não ceder nunca à ideologia política, incapaz do agachamento intelectual a que praticamente todo o país se votou, incluindo a Universidade portuguesa. Lendo Torga, senti por várias vezes que se em Portugal alguém lançasse mãos à obra para construir uma Auschwitz, teria acontecido cá como lá (a verdade é que tínhamos já expulso praticamente toda a comunidade judia em 1496 sob as ordens de Dom Manuel I e Isabel de Espanha).

Ler XVI volumes de um diário não é tarefa que me atraia. Gosto de conhecer autores e criadores por dentro, mas não considero necessário perscrutar todo o seu mundo para deles me aproximar, respeitar e até amar. Por isso considero este livro, "A Criação do Mundo", tão importante, porque em certa medida funciona como síntese de todos esses diários. O registo aqui não é diarista nem sequer confessional, ainda que o texto transpire autenticidade, mas mais pela personalidade e ser do autor. O que temos nestas páginas é romance puro, com laivos de realidade, mas contado a partir de um olhar com sentido idealizante do mundo. Nomes e lugares são por vezes alterados, mas o sentido está lá, como histórias que se contam, e produzem em nós o efeito esperado. É o próprio Torga que define o sentido da obra, no modo como vivemos, dia após dia, o modo como criamos o nosso real, e criamos o nosso mundo, um mundo que é diferente de indivíduo para indivíduo, e daí a enorme riqueza da espécie humana.

“Todos nós criamos o mundo à nossa medida. O mundo longo dos Longevos e curto dos que partem prematuramente. O mundo simples dos simples e o complexo dos complicados. Criamo-lo na consciência, dando a cada acidente, facto ou comportamento a significação intelectual ou afectiva que a nossa mente ou a nossa sensibilidade consentem. E o certo é que há tantos mundos como criaturas. Luminosos uns, brumosos outros, e todos singulares. O meu tinha de ser como é, uma torrente de emoções, volições, paixões e intelecções a correr desde a infância à velhice no chão duro de uma realidade proteica, convulsionada por guerras, catástrofes, tiranias e abominações, e também rica de mil potencialidades, que ficará na História como paradigma do mais infausto e nefasto que a humanidade conheceu, a par do mais promissor.” In Prefácio "A Criação do Mundo"

“Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era”. in "Diário I", Data de entrada: 3.12.1935

Ler esta obra é entrar por Portugal adentro, um Portugal rural, telúrico, pleno de sentimento, ligação à terra e à natureza, um Portugal pequeno mas ligado ao mundo, pela lusofonia, pela arte e filosofia, posicionado ideologicamente nos acontecimentos ocorridos ao longo da maior parte do século XX, sempre em total ligação com a História de uma nação mas com o povo e as gentes como principais atores. Claro que tudo isto se torna apenas tão interessante, e verdadeiramente absorvente, por graça da majestosa fluidez lírica de Torga, que por vezes parece querer puxar os nossos olhos a ler mais rápido do que a mente consegue absorver. Não que não tenha momentos menos conseguidos, sentindo-se pequenas faltas — excesso de embelezamento ou abstração excessiva — que uma edição feita a partir de um olhar de fora teria, com certeza, ajudado. Ajuda à leitura conhecer a história de Portugal, conhecer o país do século XX, nomeadamente Trás-os-Montes e a região centro — Coimbra —, assim como conhecer um pouco sobre as principais datas da vida de Torga, e claro sobre os acontecimentos políticos a acontecer em Portugal, no Brasil, mas também em Espanha e Itália, e claro Alemanha, assim como Angola, Cabo Verde, e Moçambique. Mas talvez ajude mais o gosto pela poética, o gosto pela literatura, mas acima de tudo o amor ao conhecimento de si e da espécie humana.

“— Não os prendam. Só quando de todo não puder deixar de ser... Façam-lhes a vida difícil... Façam-lhes a vida difícil... E faziam. Quem não acertava o passo pelo chouto do rebanho, ou apodrecia num calabouço ou morria de fome. A nação inteira era agora uma tumba de silêncio e abulia. Nos campos, nas fábricas, nas escolas e nas repartições, o perfil duro do ditador [Salazar] parecia escutar a voz das próprias consciências. E as consciências calavam-se no mais fundo das funduras, temerosas de qualquer expressão reveladora. Nenhum lugar, do mais alto ao mais rasteiro, era preenchido sem o aval da polícia política. Cada ministro, cada funcionário, cada varredor, tinha de ter a sua ficha em dia, limpa de qualquer mácula discordante. Se um caso ou outro passava pelas malhas apertadas dessa vigilância aturada, que não deixava recanto de cada vida por vasculhar, no dia seguinte, como acontecera agora comigo, o lapso era corrigido.", in “A Criação do Mundo (O Sexto Dia)", 1981

A obra está dividida em seis grandes capítulos que representam os volumes que foram sendo publicados no tempo. O livro a que hoje temos acesso é uma coletânea de todos esses volumes. Ou seja, esta não é uma obra escrita com sentido retrospectivo, mas antes escrita em quase-tempo-real. Os sentires são-no dos momentos em que foram acontecendo, e por isso talvez, se sintam com tanta mais força, realidade e autenticidade.

Capítulo 1º Dia - Publicado em 1937
Escola primária até aos 13 anos. Natureza e inocência.

Capítulo 2º Dia - Publicado em 1937
Dos 13 aos 17 anos. Ida para o Brasil e o choque com a realidade.

Capítulo 3º Dia - Publicado em 1938
Dos 17 aos 30 anos. Vinda para Coimbra, onde completa os três ciclos do liceu em três anos, estuda medicina para ser formar em 1933.

Capítulo 4º Dia - Publicado em 1939.
Dezembro de 1937 a Janeiro de 1938. Viagem pela Europa, sendo preso pela PIDE no regresso por causa do livro que sobre essa viagem escreve, e o livro apreendido.

Capítulo 5º Dia - Publicado em 1974
Só se publica em 1974, porque tal como o 4º, foi censurado. Fala-nos da prisão, em 1939, e do Portugal sob regime ditatorial.

Capítulo 6º Dia - Publicado em 1981
É o derradeiro capítulo, com vários momentos de reflexão sobre si, os seus e o mundo, e o que resta ou restará de si: “Nada há de permanente debaixo do sol..."

Miguel Torga morreu a 17 Janeiro 1995, com 87 anos, um ano antes tinha escrito:

REQUIEM POR MIM

Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido de corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz a ir de encontro ao mar
Desaguar,
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.

Coimbra, 10 de Dezembro de 1993


Sinto-me agradecido por ter lido esta Criação do Mundo.

Publicado em: https://virtual-illusion.blogspot.com...
Profile Image for Maria Ferreira.
227 reviews50 followers
October 26, 2019
De Miguel Torga li os Bichos e os Novos Contos da Montanha em miúda, recordo-me da sua escrita enfatizando o meio rural, descrevendo um portugal pobre de gente tacanha e sem ambição. Jamais tive interesse em voltar a Torga, mas ao ler a excelente review do Nelson Zagalo coloquei a Criação do Mundo na lista a ler ainda em 2019.

Posso dizer que foi um experiência prazerosa e nostálgica, ao ler fui revisitando o passado, recordando a minha infância, das visitas à aldeia dos meus pais nos arredores de Pombal, onde o meio de subsistência provinha do trabalho rural e da criação de gado.

Tal como refere o Nelson, na sua análise e que transcrevo aqui:



A obra está dividida em seis grandes capítulos que representam os volumes que foram sendo publicados no tempo. O livro a que hoje temos acesso é uma coletânea de todos esses volumes. Ou seja, esta não é uma obra escrita com sentido retrospectivo, mas antes escrita em quase-tempo-real. Os sentires são-no dos momentos em que foram acontecendo, e por isso talvez, se sintam com tanta mais força, realidade e autenticidade.

Capítulo 1º Dia - Publicado em 1937
Escola primária até aos 13 anos. Natureza e inocência.

Capítulo 2º Dia - Publicado em 1937
Dos 13 aos 17 anos. Ida para o Brasil e o choque com a realidade.

Capítulo 3º Dia - Publicado em 1938
Dos 17 aos 30 anos. Vinda para Coimbra, onde completa os três ciclos do liceu em três anos, estuda medicina para ser formar em 1933.

Capítulo 4º Dia - Publicado em 1939.
Dezembro de 1937 a Janeiro de 1938. Viagem pela Europa, sendo preso pela PIDE no regresso por causa do livro que sobre essa viagem escreve, e o livro apreendido.

Capítulo 5º Dia - Publicado em 1974
Só se publica em 1974, porque tal como o 4º, foi censurado. Fala-nos da prisão, em 1939, e do Portugal sob regime ditatorial.

Capítulo 6º Dia - Publicado em 1981
É o derradeiro capítulo, com vários momentos de reflexão sobre si, os seus e o mundo, e o que resta ou restará de si: “Nada há de permanente debaixo do sol…"


In https://virtual-illusion.blogspot.com...

A Criação do mundo retrata parte da vida de Adolfo Correia da Rocha, ou seja, a sua autobiografia, onde o autor escreve sobre si mesmo, o seu passado, a sucessão de acontecimentos ao longo da sua vida, as dores da separação da família, o trabalho infantil, a viagem para o Brasil, a sua insubmissão perante a exploração do homem pelo homem e a consequente falta de liberdade de expressão, de associação e de pensamento.

Miguel Torga, ou seja, Adolfo Correia (1907 - 1995), foi um homem com carácter, humanista e fiel aos seus princípios, não escrevia para agradar aos outros, escrevia em confissão, do coração para o papel, para dar voz aos seus pensamentos, escrevia sobre o que via, o que sentia, as dores da sua gente eram também as suas dores.
Como médico otorrinolaringologista a exercer numa pequena aldeia, curava as dores físicas das pessoas que lhe batiam à porta e não só, também procurava ajudar na cura de outras dores, as do garrote que o governo de Zalazar apertava até sangrar.
Profile Image for André Benjamim.
Author 2 books31 followers
September 17, 2013
Comprei A Criação do Mundo, de Miguel Torga, numa Feira do Livro Usado, em Coimbra. Não sei se haveria algum livro na Feira que tivesse sido usado noutra função que não a de enchimento de estantes de livrarias ou caixotes de livros não vendidos. Quando penso n' A Criação do Mundo penso sempre na primeira vez que procurei esta obra numa livraria. Entrei à procura de Orfeu Rebelde. Perscrutei as estantes, mas não encontrei nada. Dirigi-me então à rapariga que detrás do computador pachorrento registava as compras dos clientes, lhes apresentava a conta, e perguntava maquinalmente se queriam embrulho. Não sabia em que embrulhada me ia meter.

- Queria saber se têm o livro Orfeu Rebelde... ou A Criação do Mundo - lembrei-me de acrescentar um título, não fosse demais importunar a rapariga apenas por um livro - de Miguel Torga, esclareci.
- Miguel Torga?! - Perguntou estupefacta. - É algum livro novo, saiu há pouco tempo?
- Não, já saiu há uns anitos.
- É português ou estrangeiro?
- É espanhol, de Cervantes, perto de Unamuno - respondi-lhe, enquanto me questinava como era possível que em Coimbra houvesse alguém a trabalhar numa livraria que não tivesse, pelo menos, ouvido falar de Miguel Torga.
- Não sei onde fica. - Perguntou a uma colega que vagueava por entre as estantes se tinha chegado algum livro sobre órfãos, que encolheu os ombros, desinteressada.
- Deixe-me procurar aqui. - Apontava enfaticamente para o computador. Começou a teclar, numa impressionante economia do uso dos dedos, que hoje se diria austera, apenas com o indicador direito. Eu tentava a todo o custo não olhar para ela, para conseguir reprimir a vontade de rir. Pouco depois, olhou para mim triunfal, e exclamou:
- Diz aqui que não existe! Tem a certeza de que é assim que se chama?!
- Posso ver?
Miguel Toga.
- Fala aí um érre. É T-O-R-G-A.
Voltou a repetir o processo de busca.
- Agora já existe... mas não temos nenhum livro! Devem estar para chegar.
- Pois...
- Quer que lhe telefone quando chegarem?!
- Não, não é preciso... Eu vou passando. Olhe, já que não têm o que eu queria, vou aproveitar para comprar outros.

Depois de ter um saco com três romances, não entres tão depressa nessa noite escura, de António Lobo Antunes, acabado de sair, e que comprei mais por ter um título que é um verso de Dylan Thomas, que por interesse, Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, e um romance qualquer de Paulo Coelho, que ao final da segunda ou terceira página me confirmou a certeza de que não andava a perder nada, nem gastaria mais tempo ou dinheiro com livros dele, despedi-me com outra certeza: nunca mais entraria naquela livraria.

Apenas três anos depois consegui finalmente comprar as duas obras. Foi na tal Feira do Livro Usado. Da velhinha edição de autor, da Coimbra Editora. A Criação do Mundo, originalmente publicada em 5 volumes, era a 2.ª edição conjunta, de 1997. Orfeu Rebelde, a 3.ª edição, de 1992.
Profile Image for João Barradas.
275 reviews31 followers
September 7, 2020
Longe da corrente científica – que nos impele para os míseros últimos segundos do calendário cósmico -, segundo a concepção bíblica, o mundo foi erigido ao longo de seis penosos dias, findo os quais, o Grande Arquitecto recebeu o seu merecido descanso contemplativo – o mestre a admirar a sua obra. Também a vida é um conjunto de estações, ao longo das quais se constrói, lapida, implode, refina e aprimora o maior bem vital – a nossa essência. Estátuas e escultores, em simultâneo, igualmente se imiscuem os papéis de mentores e aprendizes, numa partilha contínua, de salutar. Nos avanços e recuos, há memórias que teimam em ecoar. E se Deus ordenou o aparecimento dos animais, apenas ao sexto dia da criação, o meu contacto com “Bichos”, ocorreu em idade de petiz e foi sendo adubada ao longo do tempo.

Recriando o seu mundo, Adolfo Correia da Rocha compila o seu conjunto de memórias. Numa vida feita de etapas sucessivas, existe uma pedra basilar que sustenta todo o conjunto – a imagem de um Portugal em ebulição, onde o poder cego e centralizado era alimentado pelo compadrio apadrinhado das classes nobres e o tacanhismo mesquinho do “Zé Povinho”, a pedir fiado. Contudo, este é um livro de difícil catalogação: não é obra de memórias porque, aos soluços, surgem reflexões contra o regime opressor e a sociedade provinciana; não é romance de formação porque, baseado em factos, há vertentes da vida pouco exploradas e omissão da sua totalidade; não é romance epistolar porque, aqui, a noção do tempo é fluida, com retrocessos e arranques, por entre o restante todo. Sente-se, isso sim, um forte cheiro de algo intrinsecamente lusitano: um intenso odor de saudade, o fado de ser português.

No mundo dos livros, a curiosidade do leitor sobre a vida de um escritor é algo muito presente – com algumas decepções à mistura. De facto, a minha foi suscitada pela torrente de pontos em comum com este homem, selando uma relação empática que facilita a fluência da leitura e o interesse no virar da página. Como se isso não bastasse, além das viagens geográficas relatadas, o autor-protagonista deambula entre a pacatez aldeã e a eloquência citadina, para colher os melhores frutos literários, num mundo de palavras arcaicas e regionalismos, exigindo um mergulho na cultura portuguesa, da primeira metade do século XX. Fica a vontade de seguir este novo trilho (re)iniciado, conhecendo outras obras, sobretudo a sua produção lírica, pelos lamirés ofertados. Enquanto isso, o mundo segue e eu com ele!

"Cumprida a obrigação profissional, a devoção criadora. Arrumava o bisturi e pegava na caneta. E tinha a impressão de que continuava a abrir no papel os mesmos fleimões de há pouco. As páginas sangravam como feridas rasgadas, e os poemas pareciam uivos. Avaliava bem a nenhuma simpatia que esperava tais cruezas. Se pudesse limar certas arestas, adoçar certos travos, doirar certas negruras, outra aceitação sorriria aos meus livros. Mas seria roubar-lhes a autenticidade. E continuava. Testemunha de horrores, não podia entoar loas ao inefável. A violência estava na própria vida."
Profile Image for José Simões.
Author 1 book51 followers
June 21, 2021
Não fui ver, nem me interessa muito escavar o que é autobiográfico neste livro e o que não é. Interessam-me sim as relações que os diferentes livros que o compõem tecem com a realidade histórica, o chamado contexto, de cada um deles. Da primeira República à liberdade de Abril, passando por demasiado tempo de tempos demasiado negros, vamos acompanhando esse menino que se torna médico, que vai conhecer o mundo, que sente sempre que a sua casa é sua, mesmo quando está em chamas. E devoram-se as páginas, da criação do mundo até ao desencantamento com a vida, numa prosa genial, torrencial, sublime. São quinhentas páginas que se dobram como quem lê a sua própria biografia: sem grandes sobressaltos, mas sempre com o coração na boca.
Profile Image for AndreaLectora.
585 reviews43 followers
November 11, 2021
Memorias del autor, que escribe maravillosamente bien. Te atrapa desde el primer momento, con su lenguaje poético y la trama de su infancia. Un libro que merece ser mucho más conocido. De mis favoritos.
Profile Image for Patricia Posse.
249 reviews2 followers
March 12, 2021
Este registo autobiográfico de Miguel Torga empurra o leitor para as diferentes etapas da vida do escritor, da história do País, da perspectiva ininteligível das profundezas humanas. O caminho que se percorre desde o momento em que se nasce pode ser pejado de oportunidades, desilusões, sonhos, ambições, frustrações, esperanças, mas, no fim do sexto dia, os dias vindouros podem vir carregados de sol e de frutos, mas já não nos pertencem. Uma obra que nos ajuda a compreender melhor a identidade torguiana.
Profile Image for Luis Bandovas.
10 reviews1 follower
July 5, 2022
"O tempo, de resto, ensinara-me que no essencial não se pode ajudar ninguém. O Gonçalo costumava dizer que o problema humano era todo de cromossomas. Que ou se se nascia bem ou mal. Eu protestava contra uma fatalidade biológica tão absoluta. Argumentava com a educação, a influência do meio e o modo de vida. Parecia-me que alguma coisa podiam as forças que rodeavam o homem, que pelo menos o empurravam como o vento nos empurra quando sopra."
Profile Image for Paulo Seara.
Author 7 books4 followers
January 11, 2023
Miguel Torga, nasceu Adolfo Correia da Rocha, filho de gente modesta e terrosa de São Martinho de Anta, no Município de Sabrosa, fez-se homem e escritor a custa de muitos esforços, neste livro estão plasmados os caminhos de traga-mundos que percorreu em registo autobiográfico, mas que ficciona o nome de algumas personagens. O livro é um ciclo completo da vida, começa targalhadancas (procurem no dicionário) e não termina otimista, o autor confessa que se lhe acabaram os escancaramentos da alma, são as palavras de um velho, que apenas medita e se remenda da lamentação com um clarividente "a vida ia continuar. Outros dias viriam cheios de sol, de flores e de frutos. Mas não seriam os meus". Devido a sua condição humilde, foi um incompreendido, quiseram-no calar, mas quer nos momentos negros, ou luzidios, Miguel Torga soube ser um Homem inteiro, e mesmo que muitas vezes cego com amargura da derrota e agónico, teve a sorte do seu lado, pois era dotado de um génio para as letras desde a tenra idade, e aluno exemplar, como podemos constatar no primeiro livro da Criação do Mundo, pelas palavras do professor Botelho, o jovem tinha um futuro promissor. Enquanto lemos o livro, ao longo dos vários tomos, somos uma e outra vez transportados para uma ideia chave, a alma de Miguel Torga caminha tatuada no abismo da dor, e por teimosia, caminha possessa de esperança. Ao entrar neste livro, deparei-me com algumas peculiaridades, a cada folha que lia, dado que sou de uma aldeia muito próxima de São Martinho de Anta, que aparece no livro, Vessadios, bem como pessoas com sobrenomes familiares, profissões, e até mesmo o meu apelido, Seara; que aparece noutra obra de Miguel Torga. Por exemplo, conta o escritor que um colega de escola roubou armas para as vender aos colegas, de um serralheiro que tinha oficina nas proximidades da escola, pois bem, fiquei a saber do sítio exato da oficina, hoje uma ruína, e de que se tratava de uma pessoa real, e que ficou na memória coletiva das gentes. Os livros reunidos na Criação do Mundo, são também responsáveis por nos introduzir noutras obras de Torga, no espírito das diversas era que o século XX viveu, e por fazer uma breve resenha da vida, das artes e ofícios e evolução tecnológica que mesmo na "remota" Agarez se desenrolou. Torga menciona a existência de uma motorizada a rasgar a estrada nacional, naquela altura entre 1916-1917, a pista era uma perigosa rodovia de saibro. Durante a leitura lúdica, tive momento de puro gozo, ao ponto de me rir para dentro ou de soltar algumas gargalhadas, creio que com um livro assim um escritor ganha o dia, ainda colecionei um rol de palavras de um vernáculo trasmontano, que nos desatinam, as quais são de uma grande ternura. Ainda bem de Miguel Torga nao ouviu os remoques dos pais analfabetos, implorando que se deixasse de "escrevedoiros", dos seus alforjes, sob o peso de grandes ilusões nasceram-lhe páginas intensas de literatura portuguesa.
27 reviews
May 2, 2022
Comoventes as passagens da infância e do desaparecimento dos pais. A revolta interior e incapacidade de lidar com as suas guerras internas. Um registo pessoal e autobiográfico do autor dividido em grandes capítulos, equivalentes aos dias criativos de Génesis. Vale muito a pena
Profile Image for Luís Gomes.
Author 3 books2 followers
March 11, 2023
Contínuo a ler "A Criação do Mundo" de Miguel Torga. Estranhei o nome antes de começar. Depois, lembrei-me que toda a consciência é um mundo em progressivo acrescento.

E mesmo os mais definidos espíritos, como o de Torga, tomam conhecimento da sua incompletude.

Sendo um diário, lê-se como um romance; sendo um romance, lê-se como um longo poema épico. O título remete, aliás, para esse género mitológico.

Essa é porém a ironia: Torga descreve a sua própria criação ininterrupta, cumprindo em si mesmo a vocação poética.

Ao longe poderá parecer um relato realista, ao perto, uma obra profundamente moderna.
Profile Image for Marylight Gois.
15 reviews
July 1, 2024
Autobiografia de um homem íntegro, lutador, amante da natureza e do homem, no que este tem de mais animal. Espírito rebelde, que soube fugir às origens, e afirmar-se no panorama da literatura portuguesa.
Profile Image for David Alexandre Silva.
54 reviews1 follower
January 11, 2021
Proustina lusitana que vale o esforço de mais de 600 densas e ricas páginas. Torga enche-as de tamanha profundidade e honestidade, pautada pela rica língua sem cair, como outros autores, no ridículo pretensiosismo.
Profile Image for Peter.
576 reviews
June 29, 2018
It's probably inevitable that the narrator of an autobiographical novel called "The Creation of the World" would rub you up the wrong way occasionally by seeming rather egotistical. Particularly when the theme of the book is an effort to define and defend the self, particularly the self-as-poet. One can see why his traveling companions might have gotten impatient with him. (He goes on a rather grim road trip across fascist Europe just before WWII. It is important to remember, though, that the actual author really is a brave rebel; he was imprisoned for writing this.) But his self-definition is done in defense against first the low expectations engendered by an upbringing in poverty, and class prejudice, and then against a repressive fascist regime in Portugal under Salazar, under which he is imprisoned. There is much to be sympathetic with. And there are many moments of interesting, humble, often melancholy reflection, right up to the very end, which is very resonant and rather unexpectedly (given that the climax is the Carnation Revolution) elegiac.
Profile Image for Lurdes Martins.
35 reviews
August 18, 2023
"A Criação do Mundo", de Miguel Torga...
Simplesmente, magnífico e divinal! Uma das melhores obras que li. Figurará para sempre no Top das melhores! Os seis dias da criação relatados pelo homem "profundamente religioso" que "nunca pudera dobrar os joelhos diante de nenhum altar" e que não dá vontade de terminar de ler. Verdadeiramente, "uma sucessão caleidoscópia de emoções". Como sempre, Torga no seu melhor: as suas reflexões, o vocabulário sublime, o valor da palavra dada, o não deixar-se corromper, o não vender a alma, as metáforas divinais, como a "icterícia outonal" ou o "magna de angústia", as cartas vindas de Agarez escritas "a enxadão" pelo pai, a viagem pela Europa, a prisão e o Natal no cárcere, os verdadeiros amigos, a rapariga grávida do Espírito Santo, o contrabandista, a Guerra e a ditadura, os vinte anos de Jeanne sem lecionar, a viagem a África... Um lenitivo nestes dias de pandemia! Irei relê-lo, certamente.
Profile Image for Daniela Rodrigues.
338 reviews
October 4, 2024
É um livro que gostei de ler, mas que me levou a suspirar de alívio quando o terminei. É um livro grande (560 páginas na minha edição) e que, por ser uma autobiografia (ainda que pontualmente ficcionada), não estimula a uma leitura rápida, ainda que seja uma prazerosa.
Aprendi muito sobre o autor, mas, principalmente, sobre o país e o mundo lusófono e europeu do início do século XX. E fiquei com vontade de ler mais prosa de Miguel Torga.
Profile Image for Isabel Fontes.
340 reviews6 followers
February 24, 2024
Miguel Torga's "Animals and New Tales of the Mountain" depicted a poor Portugal with narrow-minded and unambitious people, but "Criação do Mundo" provided a pleasant and nostalgic experience that reminded me of my childhood and the importance of hard work and perseverance.

Through its portrayal of rural work and cattle raising, the book helped me better understand Miguel Torga's writing.
Profile Image for Manuel.
34 reviews3 followers
November 29, 2020
Excepcional libro autobiográfico de Miguel Torga❤️
Profile Image for Carlos Brandao.
144 reviews3 followers
February 5, 2024
Um livro extraordinário acerca da vida do autor em jeito autobiográfico

Imperdível
Profile Image for Alexandra  Rodrigues.
236 reviews
April 10, 2016
Voltar a Torga, em idade adulta e com uma curiosidade aguçada por uma escrita que acreditava "da terra". Livro Maior. Escrito em voz biográfica de uma vida "atormentada" por um sentido nunca encontrado. Dividido entre uma ciência da lógica (a medicina) e a paixão da poesia, descreve-nos uma vida marcada por uma infância de pobreza e simplicidade, da aldeia, para a dureza de um Brasil das fazendas e o regresso a um Portugal que se encolheu no tempo de ditadura e censura, não sem abordar o colonialismo ultramarino. Um livro que me transportou a epocas e vivências que não foram as mnhas mas, que me vincou na pele a permanente busca de uma razão para a vida que vivemos (e porque não outra qualquer) e a cumplicidade perante o que o autor descreve.
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