O ano revolucionario deixava suas marcas em Paris, Praga, Cidade do Mexico, Brasil, e Portugal tambem foi um polo em que 68 repercutiu. Na literatura, Cardoso Pires, com o romance O Delfim, foi e continua sendo um grande representante da linguagem inovadora que se tornou referencia nas letras lusas contemporaneas.
Pires e considerado um renovador do romance em lingua portuguesa, tendo-lhe dado dimensao internacional, gracas a modernidade da linguagem e da tecnica narrativa. O autor se coloca na condicao de leitor-critico ao realizar uma metaescrita, ao lancar hipoteses, ao dissecar seus personagens.
Para o proprio Cardoso Pires, seus textos traduziam a duvida e os questionamentos que a vida impunha. Eu ponho sempre em duvida o que eu escrevo... E como duvidar da imagem dum pais. O meu livro pretende que a pessoa Em que pais eu estou?, afirmou em entrevista a um jornal no ano de sua morte.
JOSÉ CARDOSO PIRES nasceu na em São João do Peso, concelho de Vila de Rei, distrito de Castelo Branco, a 2 de Outubro de 1925. Estudante na Faculdade de Ciências de Lisboa, trocou as matemáticas superiores pela marinha mercante. Entre 1969 e 1971, foi docente de Literatura Portuguesa e Brasileira no King’s College, em Londres. Foi director literário de editoras lisboetas e director-adjunto do Diário de Lisboa (1974-75). Estreou-se com Os Caminheiros e Outros Contos (1949) e obteve o Prémio Camilo Castelo Branco com o romance O Hóspede de Job (1964). Dentro do neo-realismo, retoma a tradição satírica setecentista. Entre outros, escreveu os romances O Delfim (1968), Dinossauro Excelentíssimo (1972), Balada da Praia dos Cães (1982, Prémio da Associação Portuguesa de Escritores), Alexandre Alpha (1987), República dos Corvos (1988). Escreveu para o teatro O Render dos Heróis (1960) e Corpo Delito na Sala de Espelhos (1979). Deu ainda a lume a colectânea de ensaios Cartilha do Marialva (1960) e o volume de crónicas E agora, José? (1978) e A Cavalo no Diabo (1994). Em 1997 publicou De Profundis - Valsa Lenta e Lisboa, Diário de Bordo que lhe valeram o Prémio Pessoa desse ano. Foi condecorado pela Presidência da República com a Comenda da Ordem da Liberdade, em 1985. Faleceu a 26 de Outubro de 1998, em Lisboa.
Considered one of the best books in Portuguese literature of the twentieth century, O Delfim places the action in Gafeira. There's an imaginary land a hundred and a half kilometers from Lisbon, where two mysterious deaths occur that arouse a writer's curiosity, a friend of the Palma Bravo family. With realistic writing, the author makes a biting portrait of a society in which it is possible to find men like the engineer Tomás Palma Bravo (the Infante), deeply macho, racist, and unable to accept any change. We are in the sixties, a period of significant changes in Portugal and doubts about the future of a political regime that showed all signs of rot (Salazar would leave power in September this year, 1968). The narrator, played by the writer who visits Gafeira, is a central figure in O Delfim, as he goes through not only the collection of information about the most elegant events that took place there but also his interpretation. In a period when censorship actively intervenes, Cardoso Pires addresses taboo themes from Portugal at the time, such as homosexuality, betrayal, and incest.
The film was directed by Fernando Lopes - in 2002.
Segundo as concepções biológicas de Darwin, as espécies foram evoluindo umas a partir de outras - como ramificações de uma árvore - em direcção a algum patamar de perfeição. Na do reino animal, o ramo mais frondoso, pertence ao ser humano que, dono e senhor do mundo, se acha pleno de poderes para subjugar os outros. No entanto, até pelo olhar dos neurocientistas, não nos devemos esquecer que dentro de nós habita um instinto animal, enraizado no arquencéfalo, que sustenta todas as estruturas que definem a supremacia mental. Mas é neste cérebro primitivo que se esconde a essência primordial do medo e da luta, da fuga e do confronto, da protecção e do ataque,... daquilo que nos aproxima dos restantes animais.
Sorvendo dessas ideias ontológicas, José Cardoso Pires serve-nos um enredo, à partida, simples e banal: um escritor (que coincidência!?) regressa a uma aldeia conhecida, para tentar compreender um crime que por lá ocorreu. A casualidade termina logo aí. Pelo uso de uma linguagem extrusiva, o narrador vai rompendo a terceira folha, para apresentar os seus juízos de valor sobre aquela terra que parou no tempo e estacou no espaço. Cria, portanto, uma metaficção para evidenciar, ao de leve, os achaques de uma sociedade remetida ao silêncio, onde a crítica era condenada. Tais pensamentos funestos de mentes absortas são embebidos nas águas lodosas e pestilentas de uma lagoa, que norteia a vida dos habitantes, como se eles fossem seus efluentes. Ela que, assim, se torna a personagem principal, por excelência - o mal dos pecados, a fonte de (uma espécie de) vida. E o que existe ao redor da lagoa? Animais - de várias espécies e feitios!
Voltamos aos animais pois também o título da obra é um. Delfim, um mamífero aquático, tido como dócil, afável e, sobretudo, inteligente. Um diamante em bruto no meio dos cardumes, a merecer um sermão. É assim também este escritor - um alienado frente a uma população sonâmbula nos seus defeitos. Mas a crítica assertiva poderia valer um traço azul e, quiçá por isso, homens são animalizados ou animais an-tro-po-mor-fi-za-dos, numa fábula social, de difícil encaixe. A fusão quântica de estilos e doutos étimos cria uma radiação replectora. E é desta energia que nasce o Hommo delphinus, um homem que se deixa banhar nessas águas tóxicas, mesmo sabendo do possível envenenamento advindo. Eu creio mais na vindoura espécie Hommo animalis - aquela que, fundada numa sociedade do "proveito próprio", se desinteresse totalmente do conceito de sociedade e parta rumo a ermos lugares de solidão e rebeldia.
"Pensa em tudo e em coisa nenhuma - no padre e no Engenheiro; em enguias (e a propósito de enguias num provérbio africano: <>); pensa no fatalismo sentimental com que fala dos animais, seus adversários na caça, e que não lhe agrada nada (acha as antropomorfizações uma bravata, acredite ou não o Padre Novo, acha um termo feio an-tro-po-mor-fi-za-ções) e com isto tudo tem a consciência de estar a adiar o sono. Depois há o ruído da rua, música e campainhas; dirige-se à janela para a fechar."
Que fazer quando acabamos um livro e chegamos à conclusão que está irrepreensivelmente bem escrito e fala de temas muito relevantes (o Portugal dos anos 60 com o seu machismo, marialvismo, censura...), mas não gostámos de nenhum personagem (salva-se, talvez, o padre novo), detestámos os constantes saltos temporais da narrativa e viramos a última página com uma certa sensação de desapontamento, misturado com mau estar? Bem sei que é um marco da literatura portuguesa, mas pelos vistos, não é para mim.
"Estendo-me na cama a ler o jornal. Em poucos minutos está visto e deixa-me os dedos sujos de tinta, comprometidos por uma negrura baça de chumbo. É o suor, penso; o amargo e penoso suor de uma folhinhas que nasceram de apreensivos redactores e passaram por cadeias sucessivas de repartições, tesouras, adiamentos, sustos, até serem espremidas nas pesadas rotativas. Esfregando o polegar no indicador, sentimos escorrer o esforço, o fungo quase imperceptível que reveste e que alisa os altos e baixos da nossa consciência. São jornais sem sobressaltos, é o que se pode dizer deles, lendo-os. E é o que eles nos dizem a nós, suando. Foram tão escorridos, tão lavados pela Censura, que sujam as mãos."
“ Estendo-me na cama a ler o jornal. (…) Este, em particular, vem exausto. Mensageiro maltratado mas convencido (em artigos de fundo e notas do dia) do seu Valiosíssimo Papel de Órgão de Informação nas Estruturas Nacionais, chegou à Gafeira muito composto de bom senso e com a autoridade de ter preenchido as vinte e quatro páginas que lhe competem. Chegou cansado; sem voz, pode dizer-se. Abre-se e pouco adianta, a não ser para os desconfiados leitores das entrelinhas. Mas, vá lá, mal ou bem sempre faz um prometedor boletim meteorológico. Esperemos que não falhe. Que, ao menos, não seja tão desastrado como certas previsões da NASA – lembro-me eu, deparando com a fotografia de Edwin Aldrin a sorrir a duas colunas na primeira página.
UM LAVRADOR FESTEJOU O NASCIMENTO DE UM FILHO VARÃO
Beja, 30 – Mais de 500 convidados festejaram no Monte de Santa Eulália, propriedade do Sr. Patrício Melchior, o nascimento do primeiro filho varão daquele lavrador. Consumiram-se, entre outras iguarias, doze perus, vinte e quatro cabritos, quinze leitões, trinta e um frangos e cem quilos de borrego. Beberam-se cem litros de vinho, quatrocentas cervejas, duzentas garrafas de whisky…
… e isto, parecendo que não, é um desafio ao sorriso de Edwin Aldrin. Ri-te cosmonauta inacessível, das vitórias que se ganham cá em baixo, e não te espantes. Conheço, meã culpa, vários cidadãos de lavoura-e-cabaré capazes de pensar como o nosso lavrador e, aqui entre nós, nem reparo. Sei como é fundo neles, e constante, e magoado, o sonho de fazerem um homem à sua maneira, ensinando-lhe o mundo e mulheres. Desejo-lhes, portanto: Salute ed figli maschi – que é como brindam (diz-se) os napolitanos legítimos.
Edwin Aldrin encara-me: Com os seus lábios brancos de americano engarrafado em aço. Está cheio de guerra e de publicidade, mas é um cosmonauta – nunca esquecer. É um homem confiante nos milagres que os outros homens vão descobrindo porque se põem à prova neles, e nessa qualidade merecer tudo, quer se chame Edwin, Gagarine ou tenha o nome de código de Major Alfa Zero. (…) Um homem que confia, um cosmonauta, leva fios invisíveis de humanidade em esfuziante propulsão. Com ele viaja o nosso velho universo – com lábios assim tão gelados e com escafandros tão tenebrosos. Sinceramente. Falo com a mão na consciência, porque, modéstia à parte, muitos dos meus avós portugueses também foram bons cientistas de descobrir mundo. Excelentes, não exagero. (…)
Outra vez o sorriso branco: Enquanto as moscas passeiam, o caminhante do espaço permanece suspenso na primeira página do meu jornal. Se lhe descrevessem as fabulosas aventuras dos portugueses que foram, antes dele, navegadores do impossível, talvez não acreditasse. Também, pouco adiantaria que acreditasse ou não. Acenar com os padrões dos nossos descobridores como resposta às façanhas de um cosmonauta é o argumento dos olvidados, e já enjoa. Estamos fartos de ouvir nos discursos de academia e nas crónicas oficiais. Aldrin nunca teria tempo para isso. Anda excessivamente atarefado com o futuro para poder dar atenção aos desprezados dos século XX…”
Cada tempo tem um preço." Via as florestas trituradas pelas fábricas de celulose (ele próprio trabalhava numa, e que remédio); via a caça a desaparecer («não tarda muito, só nos restam perdizes de aviário e coelhos enlatados», ameaçava); nas vilas do interior surgiam snack-bars («manjedouras», chamava-lhes ele) onde o sincero e palpável linho ia sendo substituído por guardanapos de papel («papel higiénico para limpar o olho da boca»); via na Gafeira os filhos dos emigrantes passeando transistors («garrafões de música») - via isto e não criava ilusões: «É o preço do tempo. Para haver Jaguars e safaris foi preciso aceitar esta trampa toda.» «E para haver menos fome...» Resposta dele: «Fia-te nisso. Com os bancos de esperma e a população a crescer desta maneira, sempre estou para saber como é que se acaba com a fome.» E logo a seguir, num desabafo que nunca mais me esquece: «Esperma em ampolas, ao que a malta chegou. Mandarem-nos pares de cornos devidamente esterilizados e ainda por cima ficarmos muito agradecidos à Ciência. Chiça. Vão mas é fazer pouco da raiz da avó deles.»
Há alguns anos atrás, li dois livros de José Cardoso Pires de que gostei muito, a "Balada da Praia dos Cães" e "Alexandra Alpha", dos quais o último pretendo relê-lo.
O ano passado li um livro do mesmo escritor chamado "O Hóspede de Job", que não apreciei, e agora, terminei de ler "O Delfim", considerado por muitos a sua obra-prima, cuja leitura foi para mim difícil, entediante e que só com muito esforço é que não a deixei a meio.
O narrador é nesta história a personagem central e à volta do mesmo é-nos relatado o mistério da morte do empregado "mulato" e "maneta" e da mulher de Tomás Palma Bravo, e o consequente desaparecimento deste, um homem rico, poderoso e descendente da família mais importante de Gafeira, proprietário de uma casa e da lagoa onde todos anos muitos caçadores se dirigem para caçar.
O narrador é simultaneamente escritor, talvez o próprio José Cardoso Pires, e caçador desportivo, que regressa, um ano depois do eventual assassínio das personagens supra-mencionadas, a Gafeira, a fim de caçar e de descobrir o mistério em relação ao qual vários dos habitantes desta localidade tecem conjunturas muito distintas entre si.
Mas este narrador tece muitas considerações filosóficas sobre as personagens, a vida dos habitantes de Gafeira, a estratificação social entre ricos e pobres, os representantes do poder local, a localidade, a residencial onde fica alojado, o café onde se reúnem habitantes e visitantes, a caça e os caçadores, que, quase desde o início, me fez perder completamente no meio de tanta reflexão.
A narrativa decorre entre os anos de 1967 e 1968, e o narrador pretende, ao contar a história dos crimes, caraterizar em termos sociais, económicos e políticos, a localidade de Gafeira como um reflexo do próprio país onde as desigualdades são uma realidade, onde os preconceitos imperam e onde o poder de um homem, Tomás Palma Bravo (o Delfim), é exercido de forma violenta e irracional.
No entanto, não existe um fio condutor entre uma série inesgotável de pensamentos do narrador que mais me pareceram verdadeiros monólogos e a própria trama em si.
Mas não vou desistir de ler José Cardoso Pires, porque além de ter sido uma excelente pessoa, com um sorriso cativante, mantenho a esperança de gostar de outros livros que tenha escrito.
Written during the regime of the Portuguese dictator, Antonio Oliveira Salazar, the book is multi-layered. There is the straightforward story of the Delfim, Palma Brava, the Lord of Gafeira, who rules the entire village, in particular the mythical Lake always shrouded in mist. His beautiful wife, Maria das Mercês, is supposed to produce heirs but how is that possible if he ignores her and spends his evenings with his helper a maimed person called Domingos in Lisbon, club hopping.We are not privy to any sexual relationship with Domingos, if at all there is one. Palma Brava treats Maria das Mercês and Domingos as his possessions to use and abuse at will. All this leads to the drastic end, Domingos is found dead in Palma Brava's bed, did he die of an overdose of sex at the hands of his Mistress, Maria das Mercês, who just let herself go? We do not know. Maria das Mercês, too commits suicide whilst trying to flee the house and drown herself in the sea. On the way to the sea, she gets entangled in the roots of plants at the bottom of the Mythical Lake. Did she really want to die? Palma Brava just flees although he is not implicated in the murder-suicide pact. Why? What was his role in this terrible episode? The other way of looking at 'O Delfim' is from the allegorical point of view.The stagnant lake as Portugal where everything stands still. No progress, during the regime of of the dictator. All those symbols alluding to murkier meanings. Every scene and many objects as well as animals pointing to deeper meanings, mystery laced with mystery.
O livro “O Delfim”, do português José Cardoso Pires, quem mo trouxe à atenção foi o Carpeaux, já nas páginas finais de sua História da Literatura Ocidental. Com uma pontual recomendação, indicando “O Delfim” como uma obra-prima, o crítico austro-brasileiro conseguiu atiçar minha curiosidade o suficiente para incluí-lo em minha lista de leituras, apesar de não estar mais em qualquer outra das minhas fontes habituais. Se é ou não uma obra-prima, isso eu tirei a limpo com a leitura e digo a quem tiver paciência de me acompanhar.
Em “O Delfim”, há uma diferença marcada, exemplar mesmo, entre o tempo real e o tempo interior. Contando-se das primeiras páginas, que marcam a chegada do narrador à aldeia ficcional chamada “Gafeira” e sua instalação numa pousada, até as finais, com o nascer do sol, passam menos de um dia, isto é, da manhã de um dia (1ª de novembro, dia de todos os Santos) até a madrugada do seguinte, dia de finados. No entanto, não é propriamente com os fatos do tempo real que se preenchem as páginas, mas com as memórias, evocações, impressões e raciocínios desenvolvidos pelo narrador.
A escolha da voz narrativa foi bem apropriada para o método empregado: trata-se de um narrador em primeira pessoa, personagem que interaje com os demais, mas, ao contrário de um narrador em primeira pessoa tradicional, ele acaba por adquirir um simulacro de onisciência narrativa através da imaginação e recomposição de certas cenas a partir de boatos, lembranças, autos judiciais e demais elementos externos que funcionam como combustível para o seu febril cogitar.
Nessas evocações e imaginações, o tempo vai se estendendo, e dentro de uma lembrança nasce outra, que dá azo a um raciocínio, e lá surge uma evocação que traz ao presente, empurra para o passado novamente, mas já não como lembrança e sim como especulação, só para que haja uma associação fortuita que traga novamente o narrador para o presente. Em outras palavras, há um esforço consciente de José Cardoso Pires em mimetizar os processos de pensamento humano, que jamais são tão coerentes e focados como aparecem nos romances mais tradicionais.
Não obstante, há ainda muito de artifício na coisa, dando ao desenrolar da estória algo de concentração, algo de narração linear, sob pena de tornar intolerável a leitura. Isto é dizer que por trás desse mergulho no subjetivo algo há de objetivo que guia e impulsiona não apenas a mente do narrador como também suas (poucas) ações externas.
Esse algo de objetivo é a notícia da morte trágica de Domingos e Maria das Mercês, bem como do desaparecimento de Tomás Manuel da Palma Bravo, conhecido como O Infante ou O Engenheiro, patrão daquele e marido desta.
O narrador havia estado na Gafeira em outras oportunidades, sempre para a temporada de caça aos patos e outras aves da região, caçada esta que se dava na altura da Lagoa que era de propriedade multissecular da família Palma Bravo. Nas visitas anteriores, travou conhecimento e se tornou amigo frequente de Tomás Manuel, o Engenheiro, herdeiro da propriedade e da lagoa, elo atual de uma família de notáveis que já era famosa o suficiente para que, em 1801, viesse a constar como notória dinastia em uma memória escrita por um abade local.
O Engenheiro é um homem até certo ponto típico: um homem rico e bem educado, casado com uma jovem e bela mulher, e que no entanto não se satisfaz com a vida que tem e sempre busca aventuras, seja sexuais, seja desportivas. Tem ideias extravagantes, um quê de macho-alfa querendo épater le bourgeois, mas, apesar de tudo, alguém generoso a seu modo e consciente do legado que recebera. Sua esposa é Maria das Mercês, jovem, bela e entediada, que passa o dia fumando e dissolvendo comprimidos de aspirina na língua. Completa a casa da lagoa um casal de idosos e um auxiliar, chamado de sombra do Engenheiro, de nome Domingos, mulato maneta, personalidade retraída.
O narrador fica sabendo, ao chegar em Gafeira, que o Egenheiro estaria foragido da justiça por ter assassinado sua esposa logo após ter descoberto que esta matara o criado Domingos. Esta é a versão que circula pela boca do velho da lotaria, espécie de jornalista local. Mais tarde, fica sabendo ao Regedor que houvera um processo crime e que neste processo ficara provado que Maria das Mercês havia se matado ou, ao menos, morrido acidentalmente, afogada na lagoa, ao se embrenhar no mato, na direção do mar. Mas de Domingos ou do motivo do assassinato, nada se fala.
Há, como eu já mencionei, poucas ações externas do narrador. Essa conversa com o velho da lotaria – teria sido uma ação externa ou uma recapitulação da memória? Impossível saber -, um passeio até a lagoa, uma conversa com o Regedor, um encontro fortuito com o Padre Novo, pequenas interações com a dona da pensão, a quem chama “monte de seios”, dentre outros nomes desabonadores, com sua criadita - e nada mais.
Não é aquele mundo vivo e feérico dum Eça de Queirós, nem o teatro metafisicamente arquitetado dum Camilo Castelo Branco; nem mesmo as memórias angustiantes dum Vergílio Ferreira, porque nesses três os personagens presentes, atuantes, são importantes e bem marcados. Nada disso em José Cardoso Pires. Nele, os personagens presentes são insignificantes, mesmo que descritos de forma tradicional, e os ausentes, os que mais importam, aparecem apenas refletidos e incompletos nas recordações fragmentadas (e que recordação não o é?) do autor-narrador, como se a unidade de cada personagem dependesse da percepção constante de dados externos pelos sentidos.
A estória, com todo esse jeito indireto, ramificado e até caprichoso de ser contada, atrai e prende. Não só pelo assassinato e o mistério que o envolve, não apenas pelo fascínio que aquela existência decadente da casa da lagoa exerce, mas sobretudo porque pressentimos que o autor sabe perfeitamente o que ocorreu e que, não obstante, esconde os fatos dos leitores, não por um capricho dele, nem por conta de pontos ainda não revelados, mas apenas porque se limitou a seguir o interesse de seu próprio pensamento, e esse interesse não é de modo algum uma espécie de “whodunnit”, senão entender, nas cenas do passado, o que estaria ali denunciando a tragédia do futuro.
Diz Carpeaux dos romances policiais que “o crime, no romance policial, sempre é misterioso; mesmo quando se conhece o criminoso, são misteriosos os meios que empregou, ou então os motivos. Os ingleses chamam o romance policial, simplesmente, mystery” (“Técnica do Romance Policial”).
Nesse sentido, é “O Delfim” uma total subversão do romance policial – e mesmo do conto gótico, que lhe criou e emprestou a estrutura. A matéria do mythos policial, o crime, as motivações e os detalhes fáticos, tudo já foi resolvido. “Está nos autos”. Não é isso que interessa. O narrador, intelectual e escritor que apenas por desfastio é caçador, odeia e abomina a liguagem oficial, o tom burguês, o clichê. E é por isso que rejeita a “verdade” que está nos autos. Ele mesmo, retomando uma conversa com o Engenheiro – coisa que faz constantemente no romance –, ele mesmo acena para o leitor, dizendo dos romances policiais que têm sua forma tradicional e seu sucesso devido ao fato de que o “burguês pacato precisa de acreditar nas instituições. Mostrar-lhe que pode haver crimes perfeitos era o fim da sua tranquilidade.». Mas tampouco é à imaginação popular que se inclina: recua, cheio de abusões, dos boatos mesquinhos e invejosos dos pequenos da terra.
É aos sinais dos fados, nas cenas que viveu, a que se inclina. E quando o leitor descobre e se entrega a essa pretensão, a maquinação do romance se lhe revela, esplendorosa e verossímil.
De fato, havia ali muitos sinais do fatídico fim de Maria das Mercês e de Domingos, quase todos presentes nas ideias amalucadas de Tomás, o Engenheiro. Tomás sonha com túmulos subaquáticos em sua lagoa, Maria das Mercês vai ali parar no seu túmulo subaquático. Tomás se obceca com a estória de uma de suas amantes, uma manicura casada com um velho a quem odeia, e que o mata do coração usando o sexo como arma do crime, o crime perfeito, e é assim que Maria das Mercês mata Domingos, usando o sexo para explorar as fraquezas de seu “coração de passarinho”. É a fascinação de Domingos pela esposa de seu patrão que justifica o desinteresse do criado pelas raparigas e os prazeres fáceis da cidade, tão notado e zombado por Tomás junto a sua esposa. Domingos é a sombra de Tomás, e Maria das Mercês, perdendo rápido a afeição e exclusividade do marido, se apega à sua sombra como se ela fosse o próprio Tomás. É por isso também que Domingos não revida à surra que lhe impõe Tomás: sabia estar conspurcando seu leito e violando as regras da vassalagem.
Raios, até mesmo a cena desnecessariamente naturalista dos cães copulando no largo, incapazes de desvencilhar-se um do outro, até essa cena ganha sua significação como augúrio da tragédia!
Mas aí somos obrigados a nos perguntar: essas coisas, esses sinais, são realmente sinais? Seriam um grande sistema de augúrios ou são apenas a atenção, memória e até imaginação seletivas do autor que, depois de descobrir a verdade, vagueia de imagem em imagem, em associação frenética, vendo em tudo um fio de Ariadne que o tirará do vórtice sem sentido?
O romance termina sem que isto fique respondido. A reafirmação do que houve faz a mente repousar nos fatos, no que é objetivo. Mas a viagem de compreensão ocorrida na alma do narrador não parece ter sido em vão, pois além de aumentar o conhecimento e consciência desse detetive de casos resolvidos, ainda fornece, para quem tem olhos de ver, um modelo de meditação e investigação que muito me lembra o do Comissário Maigret: entender, entender e entender cada vez mais os dramas humanos, as personalidades, sem deduções bonitinhas mas ordinárias, como as do fastidioso Sherlock Holmes.
Não sei se alguém além de mim já pensou isso, mas quando estou passeando por um lugar, novo ou velho conhecido, fico pensando se seria possível escrever um romance interessante que eternizasse aquele lugar na literatura, sem necessidade, é claro, de que as pessoas ou mesmo os fatos reais ali ocorridos sejam efetivamente interessantes. Trata-se aqui daquele poder numinoso do escritor de descobrir e conquistar novos lugares para a literatura, pela força de sua imaginação e de sua expressão. Pois bem, perguntando-me isto, sinto que a prosa de “O Delfim” veio a completar a resposta para a charada, já parcialmente dada pelo “Amanuense Belmiro”, de Cyro dos Anjos: o poder de tornar tudo interessante consiste em passar tudo pelo crisol da alma humana, desde que ela esteja desprovida de qualquer teatralidade ou desejo de causar efeitos calculados. E que fuja, como o diabo à Cruz, dos clichês.
Mais do que o enredo em si, o que chama a atenção em “O Delfim”, de José Cardoso Pires, é a técnica narrativa, é o modo de narrar o desastre do Palma Bravo sem nome — simplesmente “o Engenheiro”.
Mas qual é a história?
O narrador - o próprio José Cardoso Pires —, também sem nome, chamado apenas de “caçador” ou “sr. Escritor”, retorna à Gafeira — localidade rural não muito distante de Lisboa — pretendendo participar da abertura da temporada de caça. Sim, caça de aves — patos, galeirões, cordonizes e outros tipos de emplumados que vivem na lagoa.
Mas, como disse, se trata de um retorno. Retorno porque o narrador já esteve no mesmo local, com a mesma finalidade, exatamente um ano antes.
E tudo no livro gira em torno desse retorno, dessa volta ao passado — recordação de pessoas e fatos que foram e mais não são.
O que motiva a recordação, no entanto, não é apenas a volta à Gafeira para uma nova temporada de caça na lagoa. É que, nesse meio tempo, ocorreu um desastre, verdadeira tragédia familiar. Domingos, serviçal do Engenheiro, foi encontrado morto na cama desse último. E Maria das Mercês, mulher do Palma Bravo, suicidou-se logo em seguida, afogando-se na lagoa. Tudo leva a crer que Domingos e Maria estavam dividindo a mesma cama quando, não se sabe bem como — e o narrador faz questão de não esclarecer —, Domingos teve um piripaque e partiu dessa para melhor.
O narrador-escritor-caçador toma pé desse fato assim que chega na Gafeira pela manhã. É um velho, o “velho cauteleiro”, coscuvilheiro malicioso, que o informa do acontecido.
A partir daí a narrativa ganha uma forma toda especial — e aqui o ponto alto do livro, na minha singela opinião.
Não é propriamente um flashback de tipo cinematográfico. É, na verdade, o esforço de recordação, de escavação da memória em busca de imagens, sensações, impressões, falas, conversas, paisagens, acontecimentos, pensamentos e detalhes dos mais variados que o narrador teria experimentado em seu contato — ainda que breve — com o Engenheiro, Maria das Mercês, Domingos e o próprio cenário da Gafeira com sua lagoa no ano anterior.
A narrativa construída por Cardoso Pires é maximamente realista. Todo esse conjunto de impressões vem à tona, não num bloco coeso e uniforme, mas fragmentariamente, em brumas, com lacunas, contornos fugidios e imprecisos.
Muitas vezes não fica totalmente claro se o narrador está se referindo ao presente, à sua segunda passagem pela Gafeira, ou se, pelo contrário, esta tratando de momentos vividos no ano anterior. Mas isso, passado um certo desconforto inicial na leitura, é rapidamente absorvido, não criando maiores obstáculos. Na verdade, esse detalhe faz com que a narrativa assuma maior realismo ainda, eis que é mesmo um esforço de rememoração, de retorno ao que foi experimentado um ano antes. E qualquer um de nós — é patrimônio comum — sabe que a memória quase sempre nos trai; que ela nunca nos entrega — a não ser em situações excepcionais — tudo exatamente o que queremos ou que precisamos.
Cardoso Pires desenha uma narrativa verossímil, realista, que transmite ao leitor a sensação de estar diante de um consciência que, em meio ao burburinho do ambiente em torno, forceja por recordar, relembrar, cenas e impressões a respeito de pessoas com as quais conviveu mas que, por força do destino, não estão mais aqui.
E Cardoso Pires faz isso — ponto importante para mim — sem cair, de um lado, na balbúrdia mental do fluxo de consciência, nem, por outro, na glossolalia existencialista. Bom enredo, técnica narrativa interessantíssima, tudo realizado com arte, com talento. Cardoso Pires é um mestre e “O Delfim” uma jóia da literatura em língua portuguesa.
A leitura de O Delfim, considerada a melhor obra do escritor, foi um autêntico deleite linguístico. Muito bem escrito, num tom bem-humorado e repleto de ironia, transporta-nos para uma pequena localidade, Gafeira, onde nada de importante acontece a não ser a caçada anual. “Aí vai a dona da pensão: um mastodonte. Acaba de sair por baixo da minha janela, carregada de gorduras e de lutos, e calculo que de boca aberta para desafogar o seu trémulo coração. Atravessa a rua perseguindo a criada-criança, como é hábito. Entra no café: mal cabe na porta. Tem cabecinha de pássaro, dorso de montanha. E seios, seios e mais seios, espalhados pelo ventre, pelo cachaço, pelas nádegas.” (p.39)
É nesta magnífica encenação que o leitor vai tomar conhecimento, pela voz do escritor-caçador, de uma história de crime e mistério que ocorreu na lagoa da aldeia. “Cá estou. Precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje um ano, me instalei na minha primeira visita à aldeia e onde, fui anotando as minhas conversas com Tomás Manuel da Palma Bravo, o Engenheiro.” (p.9) e acrescento eu, O Delfim.
Gafeira, terra de uma família tradicional e privilegiada, dona de uma lagoa mítica, é então o palco do passado, das lendas, dos rumores, das sombras, das superstições, onde a sua população vive uma existência rural, alheia ao progresso, apesar das marcas de modernidade que vão surgindo, e confinada em si mesma, onde misticismo e realidade muitas vezes se confundem.
Este livro, publicado em 1968, é uma verdadeira caricatura do Estado Novo e simboliza, por excelência, o tempo da decadência, o fim de um regime, muito bem plasmado em Palma Bravo, O Delfim, que sem poder ter filhos, representa o fim de uma linhagem, em Maria das Mercês, sua mulher, que morre afogada na lagoa, na própria lagoa que adquire características fantasmagóricas e no narrador que insone no seu quarto desfila em pensamento o passado e o presente, as conversas que teve com os habitantes da aldeia e os acontecimentos que ocorreram, sem todavia desvendar o mistério das mortes.
Se ainda não vos convenci a ler este livro, deixo mais dois excertos que considero magníficos: “Falta uma vírgula na paisagem: E a tarde escorre sem estremecer. Nem um golpe de ar, nem um pássaro, um ruído ao menos a descer dos montes pela estrada. Isto, no fundo, é morte. Podia-se pôr uma cegonha na torre da igreja – seria a vírgula. Um pescoço longo e curvo. Espalmado no ar sobre o largo.” (pp.136 e 137) e “«Mulher inabitável…» Gosto, é frase altiva, a prumo – de título para alegoria: A MULHER INABITÁVEL Na brancura de uma folha de papel (que é indiscutivelmente um território de sedução, um corpo a explorar), no centro e bem ao alto, planta-se a frase. Ela apenas, o título, como um diadema de dezassete letras.” (p. 139)
Had to read this book for a university course, and I have to say that this is definitely not my genre of books. I mean, this is a masterpiece, we can all agree on that, but still, I didn't enjoy it.
O Delfim de José Cardoso Pires Considerado uma obra-prima da literatura portuguesa, este romance passa-se na década de sessenta quase no fim do regime salazarista em Portugal. Aqui vamos conhecer a familia Palma Bravo que vive na Gafeira, uma terra imaginária situada a alguns quilómetros de Lisboa, onde ocorrem duas mortes misteriosas que suscitam a curiosidade a um escritor amigo da família Palma Basto. O autor faz uma análise profunda sobre o poder, corrupção e moralidade.Com uma narrativa hábil e personagens complexos esta obra proporciona uma reflexão perspicaz sobre a sociedade da época, uma escrita envolvente e uma capacidade invulgar de descrever o ambiente opressivo daquela época fazem deste livro uma leitura agradável e importante para recordar uma ditadura esmagadora e opressiva que por vezes temos a tendência de esquecer...
What a way to tell a story! Using an incomparable technique, Cardoso Pires, blends past and present when repporting upon two misterious deaths. Although the whole action only takes place in one day, the narrator frequently evokes some characters to unravel some aspects (imaginated or not) that will present the truth. Atention: it takes a few chapters to fully understand the hybrid perspective.
Como disse Eduardo Prado Coelho no prefácio, o que é mais importante neste livro não é a história, mas a maneira como é contada. Que é brilhante, diga-se de passagem. Eu diria que é um livro para escritores.
Trazia grandes expectativas para a obra de Cardoso Pires (“O Delfim” é eleita pelo seu biógrafo, Vieira Amaral, como a obra-prima) e as mesmas foram cumpridas. A obra não é de leitura fácil: localiza-se numa espécie de “metanarrativa” e a cronologia não é linear, abundando analepses e prolepses. O narrador é um escritor e vamos acompanhando a história de fundo pelos interstícios das suas próprias reflexões e da sua vivência de caçador, na aldeia onde decorreu a trama de fundo. É pelos olhos deste forasteiro que se reconstituí retrospetivamente o crime. A escrita de Cardoso Pires é “rija”, crua e bastante telúrica, mas abundam também as referências eruditas (latinismos, referências à literatura ou ao cinema, …) e à história coeva (um diálogo de duas personagens, na Gafeira, é interrompido pela especulação sobre se, naquele momento, um astronauta não espreitaria de longe). Recomendo a obra e fiquei muito curioso por conhecer mais de Cardoso Pires.
Cardoso Pires impregna os temas do neo-realismo português de uma neblina desconcertante para produzir uma obra com uma sofisticação e imersividade que as versões imaculadas nunca granjearam. O estilo alegórico, imagético, quasi-ensaístico, envolve complementarmente a perspectiva marxista - despudoradamente classista e materialista - com que Pires aborda a vida na Gafeira; não diluindo o pendor crítico-revolucionário, mas elevando-o. O resultado é um romance sublime, um dos melhores do século XX português. O materialismo histórico marca toda a obra: em pequenos comentários sardónicos - como as observações sobre a obra do abade Agostinho (um panegírico às linhagens aristocrático-burguesas); na progressão narrativa - a coletivização da lagoa (de 1 para 98) muda por completo a vida na aldeia (até a da fauna aquática); no tema liminar da obra: a caça, o mais directo método de subsistência; nas relações de Tomás Manuel: a sua mulher - "incontrolável" - é demitida como estéril, enquanto o criado - obedientíssimo - é moldado como um operário pela máquina. Mas estas (claras) impressões são transmitidas de uma forma quase meiga. Isto porque o narrador, apesar de acutilante, é uma figura real, embrenhada na rede viva da Gafeira, com paixões e desavenças não redutíveis a qualquer a priori. Este ponto de vista, laivado de ambiguidade, é acompanhado de outra faceta aparentemente antitética à doutrina de Marx - a temporalidade, que é circular e retroativa. Como a névoa da lagoa, o fumo das enguias, ou peso do uísque no estômago, este tempo entrecortado provoca um estado de torpor, de confusão confortável, aconchegante. As misteriosas mortes são um ponto difuso que acompanha esta condição, e a sua aparente inexplicabilidade apenas mais um dos (romanticamente, diria) insondáveis fenómenos que compõem as nossas vidas. São estes, então, um neo-realismo e um marxismo que abrem espaço à incerteza e à ambivalência (à lenda, até). Ao que é humano, arrisco.
O domínio secular de uma família sobre a Lagoa, as terras e as gentes da Gafanha chega ao fim de uma maneira simultaneamente dramática, para o Delfim, e surpreendente para todos.
Herdeiro estéril de uma linhagem de senhores semifeudais, o Infante, apesar da sua fortuna, da sua autoconfiança e das suas maneiras paternalistas, autoritárias e distantes e violentas de relacionamento com a população e os criados, não consegue evitar a sua queda, que chega de onde menos se espera, do núcleo mais chegado.
Um personagem é Domingos, o estóico e pacifico cabo-verdiano que sem um braço e sem escolaridade, domina a mecânica automóvel e outras artes, e se revela fundamental para a queda do Infante.
Pode ser interpretado como uma inteligente metáfora aos últimos anos do fascismo em Portugal, na vigência de Marcelo Caetano, ele próprio um delfim envelhecido de Salazar, e na queda do regime, e na previsão da queda do regime com base no problema colonial.
Narrado de uma forma distante e desapegada, o livro contém interessantes reflexões sobre a realidade, como pode ser vista e pressentida de vários ângulos e perspectivas, sobre a relação do caçador e da caça, sobre a educação tal como era vista na época pelos poderes dominantes e que ainda prevalece nas relações laborais em muitas empresas “os mandamentos de fazer o homem, os quais foram ditados pela experiência dos antigos e são três, a saber: recompensa com prudência, governo com vigilância e castigo com firmeza. Vinho por medida, rédea curta e porrada na garupa”.
Do livro saiu um filme, em 2002, de Fernando Lopes com Rogério Samora e Alexandra Lencastre.
Fiquei um bocado desiludida com este livro. Adorei o tema, a época que retrata e a abordagem dada. Contudo, apresenta uma complexidade de leitura que dispenso na literatura portuguesa e que não julgo ser necessária para tratar um tema tão cliché como o tempo da ditadura - julgo que haja pouco a dizer, que possa chocar susceptibilidades, pois a informação é já divulgada de diferentes formas aos portugueses. Outra coisa da qual não gostei de todo, foi o facto do narrador, personagem passiva da acção, se reflectir nas personagens e não ao contrário. Gostaria de ter visto um enfoque maior na acção, como é tratado o filme!
"Sei, todos nós sabemos, como pesa o tempo vencido sobre quem se aventura a recompô-lo. É um eco a sublinhar as palavras, uma ironia que nos contempla de longe, um aviso". (p.137)
Tema central: crítica às relações de poder entre latifundiários e serventes por altura do Estado Novo. Temas em órbita: um crime misterioso, a caça, e o processo criativo de um escritor. Não se lê como um romance; exige uma leitura decantada e atenta. Levantam-se hipóteses, mas não há desfechos. Bom livro, mas para suposta obra-prima de JCP achei fraquinho.
O Escritor (narrador do romance) relembra os fatos de quando fizera uma viagem à Gafeira, aldeia do interior de Portugal. De como conhecera Tomás Manuel (o Delfim), também conhecido por alguns como O Infante, ou ainda como O Engenheiro. Relata as várias conversas que tivera com ele e comenta muito de sua personalidade. Homem mais importante daquela aldeia, herdeiro das terras que cercam a lagoa. A Lagoa é importante, pois a Gafeira tem como única atividade econômica importante a caça. O Delfim é dado às bebedeiras e às noitadas, embora seja casado com Maria das Mercês. Esta vive isolada na casa da fazenda e sente saudade do tempo em que tinha amigas e passeava. O criado Domingos vai se destacando por suas habilidades com as máquinas (o trator).
O Escritor está tentando compor uma história baseada no clã da família de Tomás Manuel, tem como apoio um texto antigo escrito pelo Abade Agostinho Saravia, escrito em 1801 intitulado Monografia do Termo da Gafeira. O exemplar que lera pertencia a dona de uma pensão da Gafeira, que avisa que ao que ela sabe, apenas o Tomás Manuel tem outro exemplar. De Tomás Manuel o escritor também consulta muito um livro intitulado Tratado das Aves, escrito por um anônimo.
Nas conversas com o Delfim, o Escritor vai citando obras e autores como Xenofonte (considerado o pai dos escritores-caçadores), Conan Doyle (Sherlock Homes, em que se discute a possibilidade do crime perfeito) e de uma poetisa local chamada Maria da Paz Soares (uma que escreve): “Todos os anos publica um livro de poemas e todos os anos muda de amante que é para manter os cornos do marido em forma.” Citam-se ainda outros escritores. O Delfim tem para com a literatura e filosofia uma posição cética e parece conversar sobre tais assuntos com o Escritor apenas para aporrinhá-lo.
Dedica-se vários parágrafos no romance a se esclarecer a importância dos cães para os caçadores. A caça começa a se recuperar como atividade econômica quando Tomás Manuel começa a se tornar ausente da vila em razão de seus problemas pessoais. O, Regedor que tem uma loja de artefatos para caça, começa a vender licenças de caça para eventuais visitantes e turistas.
Tomás Manuel é motivo da conversa de várias pessoas do bar em que o Escritor freqüenta, muitos suspeitam que ele esteja envolvido nas mortes de sua esposa e do criado mas não existem provas concretas. O Escritor vai anotando as conversas dessas pessoas: O Padre Novo, o Batedor, o Velho, o Dono do Café.
Numa noite, Tomás Manuel fora visto discutindo com um casal no bar do posto de gasolina (Bar do Shell). Ao que parece, o casal era de fora, e Tomás Manuel acertara que ele dormiriam na cidade, mas eles queriam ir para a casa de Tomás. Na discussão, o Delfim - supõem alguns - teria arrancado uma orelha ao homem. Saiu do bar com seu Jaguar, não sem antes bater numa árvore, ficando ferido na ocasião. Ao chegar em casa, bêbado, encontra o corpo do criado morto na cama da esposa - o médico legista dirá que a causa da morte foi um colapso cardíaco (para o Escritor, a morte do criado pode ter sido o fato de que o criado tivera que acompanhar Tomás Manuel em muitas bebedeiras, mas não tinha físico para isso). A mulher de Tomás Manuel, Maria das Mercês fora encontrada morta, afogada na lagoa.
O Jaguar é um símbolo de status, representa o poder de Tomás Manuel, as pessoas admiram a beleza e a potência daquele carro esportivo. Domingos, o criado, aprendera a dirigir o carro e se tornara choffeur do Delfim.
Num dos primeiros capítulos do romance ficamos sabendo que o Engenheiro afirmara que gostaria de ser enterrado na lagoa, para que não sentisse sua carne sendo comida pelos vermes da terra, se fosse necessário que o coveiro usasse escafandro para tal tarefa. Maria das Mercês considera esse desejo do marido algo estranho e esdrúxulo. A morte da mulher na lagoa simbolicamente representa o sufocamento a que essa mulher sentia na sua vida. Mulher de educação urbana e moderna não conseguia se sujeitar totalmente ao estado repressivo a que estava sujeitada.
Os cães e as aves caçadas são também evocadas como conceitos alegóricos de qualidades e defeitos dos homens.
Outros aspectos conotados na obra: o Vinho e o Whisky. A primeira bebida é usada sem, no entanto, causar maiores danos que uma série de conversas e boatos entre os freqüentadores dos bares. O Whisky, por sua vez, é a bebida predileta de Tomás Manuel e a que vai causar seus maiores destemperos e estado agressivo.
No bodégon (o café) um cartaz de um toureiro espanhol serve de motivo para que se fale dos toureiros que morreram vítima de touros, e Tomás Manuel conhece o nome desses touros.
Como observa Nelly Novaes Coelho: “O Engenheiro encarna a sobrevivência de uma mentalidade medieval: arrogante orgulho de superioridade frente aos inferiores, contraposto a um sentimental paternalismo”.
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Com a publicação de “O Anjo Ancorado” e, cinco anos volvidos, de “O Hóspede de Job”, José Cardoso Pires provava possuir todos os atributos de um genial romancista, que não apenas o contista sedutor e requintado dos seus trabalhos inaugurais. A exigência do romance, o voo mais largo, um maior fôlego, encontrou nele um escritor à altura, capaz de gerar histórias a partir umas das outras e criar no leitor aquele tipo de interesse que o faz pegar num livro e lê-lo sofregamente do princípio ao fim. Os romances enunciados são disso um belíssimo exemplo, ao mesmo tempo que herdam o trabalho de filigrana que os seus contos encerram, os ambientes com idênticas texturas, as figuras com a mesma ilusão, a mesma inquietação, as mesmas sombras. Eis senão quando chega a vez de “O Delfim”, um livro que se distancia dos anteriores pela aspereza das suas falas, pelo uivar dolorido dos cães, pelo sangue mais vermelho e mais espesso, pela raiva mais raiva ainda.
É um livro admirável este “O Delfim”, narrado por um escritor – Cardoso Pires, “lui même” – que regressa à Gafeira um ano depois para viver a euforia da abertura da caça e que percebe o quanto tudo se modificou em tão curto espaço de tempo: os jogos de sedução, as relações de poder, a atitude das pessoas, a própria fisionomia da aldeia. Tudo por causa de duas mortes que se abatem sobre a casa dos Palma Bastos, senhores todo-poderosos do lugar e seus termos, dando azo a dúvidas e “certezas” as mais variadas e díspares na base do “cada cabeça sua sentença”. Desses crimes, pela voz do “escritor-detective”, nos fala “O Delfim”, dando a ver um Império a desabar com estrondo porquanto assente nos frágeis alicerces de uma estrutura social retrógrada, com os seus insuportáveis tiques machistas, o marialvismo mais refinado e os estigmas de um racismo cultivado há séculos.
Mas se “O Delfim” tem o toque de mistério e de fascínio que torna a sua leitura tão irresistível, tudo isso é devido, sobretudo, à qualidade da sua escrita, à forma de contar de José Cardoso Pires da qual se destaca uma superior inteligência e enorme destreza em lançar mão dos mais variados recursos estilísticos, colocando-os ao serviço da obra. Falando a várias vozes, a vários tempos, recorrendo às monografias, aos cadernos de apontamentos ou à sua própria memória, reproduzindo as conversas dos outros ou o seu pensar em voz alta, Cardoso Pires oferece um conjunto de camadas narrativas que se interpenetram e complementam, adensando a trama e deixando o leitor cada vez mais preso ao livro. Personagens, tempos e lugares de um enredo labiríntico são aqui “espremidos até ao tutano”, a essência de cada um dispensada gota a gota, exigindo do leitor um trabalho de desconstrução com tanto de exaustivo como de fascinante. Um romance que não se esgota em si mesmo e que, passados mais de 50 anos sobre a data da sua publicação, mantém vivos os traços de modernidade e uma espantosa actualidade.
Escrito de forma magnífica, o Delfim toca em vários temas e motivos para camuflar o acontecimento cental da narrativa, um crime (ou mais do que que um). O narrador, que vê e participa no que acontece quando assim deseja, deixa pistas em diferentes direções, abrindo caminhos e trilhos pelos pinhais da Gafeira, apenas para evocar internamente uma possível suposição do sucedido, que é anulada (ou melhorada) algumas páginas à frente com novas revelações. Andamos às voltas, no tempo e no (curto) espaço, mas porque é a viagem que interessa, e não o que acontece. O que acontece já aconteceu, ou acontecerá. O tempo é circular e inevitável, o espaço é a hermética Gafeira.
No meio deste ludibriar assumido e consentido, está um retrato social do Portugal dos 60's, sobretudo na sua ruralidade e classicismo, e de tantas gerações de Tomás Manuel Palma Bravos que enterraram nas dunas o seu sangue e o seu mesmo nome que herdam há onze progenitores atrás, impedindo durante uma eternidade feudal o livre acesso dos "camponeses-operários" à lagoa. Familía e sexualidade são outros temas falados, e os animais populam todo o texto e deixam as marcas zoomórficas que lhes convêm, não fosse a caça a justificação para a história estar a ser contada.
São as artimanhas e os mecanismos do narrador de José Cardoso Pires que tornam as inúmeras voltas entre a pequena Gafeira e a lagoa num deleite e não uma azia cansativa e repetitiva. Quer-se chegar ao fim do livro não para entender o que sucedeu (ou não), mas para prolongar uma relação íntima e prazerosa com as palavras do autor. Tal como o acesso à lagoa, que se levantem e corroam as muralhas invisíveis dos lugares verdadeiramente belos. Positivamente, aliás.
Em qualquer 'short list' das melhores obras portuguesas na literatura do século XX, O Delfim, de José Cardoso Pires tem seguríssimo lugar (por saber se apenas esta obra de CP caberá em tal lista, ou se nomeadamente Alexandra Alpha lhe fará companhia). É um livro notável, que diz tudo o que há a dizer sobre Portugal e os portugueses daquela época, mas, como todos os clássicos, diz muito sobre Portugal e os portugueses de qualquer tempo, sobre o mundo, sobre a vida. Não que se trate de um livro "de tese"; pelo contrário, é um romance puro, daqueles em que o enredo, a narrativa e o romanesco (passe o pleonasmo) são servidos por uma linguagem perfeita e rigorosa. Como todos os grandes romances, O Delfim é um universo, um sistema completo que, não obstante, interage com os mundos à sua volta. (Abril 2002)
Escritor volta a uma cidadezinha para aproveitar a temporada de caça e descobre que um casal conhecido dele se envolveu num crime.
No geral, até que gostei do livro, porém achei que da metade para o fim ficou muito meta, muito "olhe como eu sou um escritor e conheço todos esses recursos literários", e perdeu o fio condutor da vida (e morte) dos Palma Bravo, que é o que sustenta o interesse na primeira metade.
De qualquer forma, valeu pela oportunidade de conhecer esse autor português.