Atenção: Esse livreto é da coleção da Folha e não o livro de Dostoyevsky.
Em São Petersburgo, um jovem ex-estudante de direito mata uma velha agiota para comprovar sua crença de que a humanidade se divide entre criaturas superiores e inferiores. Aos poucos, esse ato extremo o leva a carregar o peso da culpa e, em torno dele, outros personagens confrontam-se com dilemas morais. Publicado em 1866, o romance “Crime e Castigo”, do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), mergulha nas contradições humanas para produzir um painel cruel e pessimista da alma. Em 1970, o diretor russo Lev Kulidzhanov dirigiu a melhor adaptação do livro, preservando detalhes da intriga e traduzindo em poderosas imagens em preto e branco os contrastes que consomem a consciência de Raskólnikov.
«As obras falam-nos de muitas maneiras: graças aos temas, às situações, aos objectivos, aos heróis. Mas o que importa é a parcela de arte que na obra se esconde. A arte das páginas do Crime e Castigo emociona-nos mais do que o crime propriamente dito de Raskolnikov.»
A escrita densa do Dostoiévski é difícil de acostumar no começo, mas depois acaba ficando muito mais fluida. Acho que o ponto sensacional dessa obra não é nem a construção do enredo, mas sim a maneira que o autor aprofunda em cada personagem de uma forma extremamente detalhada. Os diálogos característicos de cada um trazem suas personalidades. A forma de escrita do Dostoiévski que é muito criticada, por suas obras serem "mal escritas", na minha opinião é o que deu uma gigante profundidade neste livro. As reflexões oferecidas são enormes em um enredo que nem precisou ser tão explorado.
Crime e Castigo (Fiódor Dostoiévski). Publicado na década de 1860, durante o período em que o autor esteve preso na Sibéria devido a sua associação com grupos socialistas. A narrativa acompanha Raskólnikov, um jovem estudante que enfrenta dificuldades financeiras, levando-o a abandonar seus estudos. Ele vive isolado em condições precárias, enquanto sua família, composta por mulheres trabalhadoras, luta para sustentá-lo. Raskólnikov, inteligente e ambicioso, elabora a ideia de que alguns crimes podem ser justificados se resultarem em um bem maior. Influenciado pelo conceito do "super-homem", ele trama o assassinato de uma usurária, convencido de que vai libertar a sociedade de uma pessoa má e ainda conseguir dinheiro para ajudar sua família. No entanto, o plano dá errado quando, em um momento de pânico, ele acaba matando a irmã da usurária, um ato que não estava previsto em sua teoria. Conforme avança a história, Raskólnikov se vê lutando com os conflitos morais após cometer os dois assassinatos, especialmente o da irmã, reconhecendo que esse crime não se encaixa na justificativa que ele havia proposto. A narrativa explora as consequências psicológicas e sociais que esses atos impõem ao protagonista, refletindo temas de culpa, redenção e a natureza do crime em um contexto mais amplo. Raskólnikov, após cometer os assassinatos, vivencia momentos intensos de pânico, especialmente pela incapacidade de levar adiante o plano de roubo que idealizara. Em vez de dinheiro, ele acaba levando pequenos objetos, como uma corrente, que despreza depois. Ao retornar para sua casa, a narrativa se concentra em seu processo interno de culpa, destacando que o título da obra não se restringe apenas ao ato ilícito, mas se estende a uma reflexão sobre as consequências e o castigo psicológico que o protagonista sofre. O conflito interno de Raskólnikov é palpável ao longo do livro, onde ele se contorce entre sentimentos de ódio e altruísmo, frequentemente se comportando de maneira desagradável com os outros, mas ainda assim se dedicando a ajudar quem está em situações piores do que a sua. A dinâmica familiar e as relações interpessoais também desempenham um papel crucial na obra. Raskólnikov, em sua solidão e isolamento, oscila entre momentos de egocentrismo e atos de generosidade. Sua amizade com Razumíchin, um personagem que contrasta com sua personalidade, traz leveza à narrativa, já que Razumíchin é descrito como amável e divertido, mesmo com todas as adversidades. Raskólnikov é consciente de sua divisão interna, representada não apenas por sua alienação social, mas também pela luta constante entre orgulho e consciência. Além disso, a obra versa sobre a disfunção familiar e as pressões sociais relacionadas ao casamento, como exemplificado na situação da irmã de Raskólnikov, que é pressionada a se casar para garantir a segurança financeira da família, um casamento que, embora não seja um crime, pode ser visto como uma prisão social. O livro, portanto, não só rastreia a jornada do crime ao castigo, mas também se aprofunda nas complexidades da psicologia criminal, oferecendo uma análise detalhada do comportamento humano. Os personagens que cercam Raskólnikov, como Marmeladov, que representa as degradações sociais e morais, adicionam camadas à narrativa, revelando a depravação e os desafios enfrentados por aqueles que vivem nas margens da sociedade. A presença de Sonia, a filha de Marmeladov, que se torna prostituta, serve como um contraponto à desumanização e à busca de redenção, mostrando que, apesar das circunstâncias adversas, existe uma centelha de humanidade que se recusa a se apagar. A dualidade, um tema recorrente nas obras de Dostoiévski, aparece também na relação entre Raskólnikov e Sonia, onde ambos encontram uma conexão espiritual que transcende a degradação ao seu redor, revelando suas lutas internas e a busca por um propósito maior em meio ao caos. Sônia enxerga Raskólnikov não apenas como criminoso, mas como pecador, refletindo sua própria condição. A religiosidade de Sônia aparece de forma intrigante, especialmente quando sugere a Raskólnikov que ele deve se redimir em uma encruzilhada, beijando o solo e pedindo perdão a Deus, o que pode ser interpretado como um apelo à mãe Terra. Esse pedido permeia a narrativa, mostrando a intersecção entre o catolicismo e elementos pagãos que Sônia representa. A relação entre os dois personagens se aprofunda através da confissão de Raskólnikov, que revela seu desejo de expiação e anseio por conexão espiritual. Ao longo da história, outro personagem se destaca, simbolizando o lado sombrio da criminalidade: um vilão que também carrega consigo o peso de um crime, criando um paralelo direto com Raskólnikov. Esse personagem intentará chantagear a família de Raskólnikov, expondo a depravação como uma constante entre os personagens. A obra adentra a temática da paranoia, ilustrando como a mente humana se deteriora ao tentar lidar com a culpa e os atos imorais cometidos. O processar dessa culpa culmina em uma jornada penosa de redenção, um tema central ao longo do livro. Raskólnikov é apresentado como um personagem dividido, cujos atos heroicos, como ter salvado crianças de um incêndio, ameaçam simplificar seu caráter. A complexidade psicológica do protagonista revela os conflitos internos que o levam a buscar uma verdade mais profunda sobre si mesmo e sua existência. A reflexão sobre a inevitabilidade do castigo é uma linha prominente do livro, pintando um retrato da mente que não consegue se desvincular de suas transgressões. A consciência atua como um juiz implacável, que persiste em lembrar os erros. Ao longo da narrativa, é também notável a influência de Dostoiévski na literatura universal, propiciando um legado que vai além do seu tempo e que continua a ser uma fonte de inspiração para a produção cultural contemporânea. As vozes polifônicas presentes na obra, conforme explorado por Bakhtin, são uma celebração da diversidade de perspectivas que refletem a complexidade da experiência humana. A narrativa convida o leitor a mergulhar em um universo onde a tragédia e a catarse se entrelaçam, proporcionando uma experiência emocional profunda que provoca reflexão sobre a moralidade e a condição humana. A análise crítica da obra leva à compreensão de que suas tensões emocionais e psicológicas estabelecem um diálogo com as questões eternas da existência, conectando o leitor às ansiedades e conflitos do próprio ser. A obra de Dostoiévski, apesar de sua temática pesada, apresenta momentos de alívio cômico, especialmente através de personagens como Razumíkhin, que contrapõem a atmosfera sombria presente na história. Esses alívios ajudam a amenizar a profundidade do desespero humano, permitindo que o leitor respire durante a narrativa. A ambientação em Petersburgo também é descrita de forma vívida, transformando o cenário em um personagem à parte, onde o verão, por trás de sua beleza, oculta pesadelos que gradualmente se manifestam como realidade. Além disso, há uma curiosidade sobre a origem de "Crime e Castigo", com duas versões a respeito da inspiração para a escrita da obra. Uma delas remete aos anos de trabalhos forçados na Sibéria, enquanto a outra sugere que Dostoiévski inicialmente contemplava escrever sobre os problemas do álcool. Com o desenrolar do trabalho, o autor acabou direcionando sua narrativa para as questões morais mais profundas, resultando na formação de um clássico que aborda a complexidade da alma humana e suas convicções.
"Crime e Castigo”, publicado em 1866, é um livro de 576 páginas que me levou, sem qualquer castigo, numa "viagem" fascinante pelas questões da alma humana... O conceito de castigo ou culpa, não é mais que um confronto connosco próprios. Uma leitura profunda em que o escritor consegue unir filosofia, psicologia/psicanálise e ainda oferece uma história policial, repleta de suspense e investigação, num cenário realista endurecido pelas teorias sociais e políticas dominantes na Rússia daquela época(czarista). Recomendo vivamente!!.., é sem dúvida um clássico indispensável.
Fiz a leitura no texto adaptado por Yuri Martins, que traz uma leitura bem fluida, gostei bastante, sem falar no ar de mistério que impulsiona o desejo por ler mais e mais...
As obras falam-nos de muitas maneiras: graças aos temas, às situações, aos objectivos, aos heróis. Mas o que importa é a parcela de arte que na obra se esconde. A arte das páginas do Crime e Castigo emociona-nos mais do que o crime de Raskolnikov. Sim, ele cometeu um crime, e um verdadeiro criminoso não tem desculpa. Mas Dostoiévski faz-nos defender Raskolnikov, violando os princípios da justiça a que sempre fomos fieis. Não me alongarei mais, como forma de preservar o prazer de quem ainda não leu este livro. Deixo apenas mais uma apreciação: o título é muito bem escolhido.
As sensações pós leitura são de superioridade para com quem ainda não a leu. Sinto que tirei um curso que nem todos tiraram. Um curso que custa 20€ na FNAC, mas que exige algo que nem todos têm, e não se pode comprar - bom gosto, que é subjectivo, mas não quanto a esta obra. Crime e Castigo não olha a gostos. É uma lição para a vida.
Um livro que me marcou e nunca esquecerei. Faço questão de, um dia destes, o reler. Um cânone, na essência do termo, que resiste ao tempo e se torna imortal, de qualidade indiscutível.
The works speak to us in many ways: thanks to themes, situations, objectives, heroes. But what matters is the portion of art that is hidden in the work. The art of the Crime and Punishment pages moves us more than Raskolnikov's crime. Yes, he committed a crime, and a real criminal has no excuse. But Dostoevsky makes us defend Raskilnikov, violating the principles of justice to which we have always been faithful. I will not go on further, as a way of preserving the pleasure of those who have not yet read this book. I leave just one more appreciation: the title is very well chosen.
The sensations after reading are of superiority for those who have not yet read it. I feel like I took a course that not everyone did. A course that costs €20 at FNAC, but which requires something that not everyone has, and cannot be bought - good taste, which is subjective, but not as far as this work is concerned.
A book that left a mark on me and I will never forget. One of these days I would like to reread it. A canon, in the essence of the term, which resists time and becomes immortal, of unquestionable quality.
Talvez eu tenha perdido um pouco do tempo do livro, pois passei um tempo sem avançar na leitura. Vou reler pra tentar manter o ritmo da leitura até o fim.
Mas ainda assim foi uma experiência bastante agradável.
Crime e Castigo, porque exemplifica toda a filosofia de Nietzsche de uma maneira acessível e profundamente dramática, de como o cérebro humano é capaz de racionalizar qualquer crime, que tudo é relativo, em suma, a pessoa que pensa e age, como Raskolnikoff, o protagonista. Vale tudo. Dostoievski, para nos impedir de aniquilar uns aos outros, acrescenta que não se pode viver sem piedade.
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