«Chovem pais e filhos sobre os campos, terrenos de árvores húmidas, outono. Os pais tentam sempre proteger os filhos, essa é a natureza que corre nas árvores, essa é a lei e esse é o sentido. É outono e não poderia ser outra estação, começou o frio e a fome, olho a força dos campos pela janela submersa deste último outono e compreendo por fim a minha chovem pais e filhos de mãos dadas. Lá longe, sou pai. Lá longe, sou filho.» Gaveta de Papéis de José Luís Peixoto
Há tanto pretensos poetas, muito ou pouco vendidos, pouco interessa, de quem se fala tanto, se escreve tanto. E depois há isto, que é muito bom, por si e em si. José Luís Peixoto é uma voz importantíssima da nossa poesia. Saibamos ouvi-la, na sua toada pessoalíssima, na sua aparente simplicidade/profundidade.
Não sou a maior perita a avaliar poesia, até porque esta tem um valor diferente para cada pessoa que a lê ou mesmo para cada pessoa que a escreve. Ainda assim, não me marcou, mas gostei de ler.
E o amor transformou-se noutra coisa com o mesmo nome. Era disto que falavam as mães quando davam conselhos às filhas e diziam: o amor vem depois. Era isto o depois. Uma ternura simples, quase dolorosa, muitos silêncios, todas as horas do dia e um poema que se dissolve dentro de mim e que, devagar, sem rosto, desaparece.
Normalmente não gosto muito de comentar poesia, adoro escreve-la e lê-la porém comentá-la não é de todo algo que goste de fazer. Para amar poesia é preciso identificarmo-nos com o autor, com aquilo que o poema nos transmite, sentir um calorzinho no nosso coração. Deste autor li a Criança em ruínas e fiquei apaixonada pela sua poesia, quando me deparei com este livro na biblioteca tive de acolhe-lo e lê-lo , porém não foi o que estava à espera.
“ Os teus lábios parados eram a noite, o abismo e o silêncio das ondas paradas de encontro às rochas. O teu rosto dentro das minhas mãos. Os meus dedos sobre os teus lábios e a ternura, como o horizonte, debaixo dos meus dedos. Os meus lábios a aproximarem-se dos teus lábios. Os teus olhos entreabertos, os teus olhos e os teus lábios a aproximarem-se dos meus lábios a aproximarem-se dos teus lábios a aproximarem-se dos meus lábios, teus lábios.” José Luís Peixoto
Não me sinto confortável a escrever críticas de poesia, excepto se forem poemas da Sylvia Plath e puder dizer "lindo! espantoso! fantástico!" enquanto bato palmas e aceno um pouco a cabeça. E as razões pelas quais gosto dos poemas dela são porque satisfazem aquilo que eu acredito que a poesia promete: os poemas devem-nos torcer por dentro como laranjas e deixar espremer novas consciências, novos fascínios, traduzir-nos todos em novas maravilhas palavreadas.
Mas não gosto de dizer: este poema é mau, este poema é bom. Porque todos os poemas são a tradução de alguém num certo momento, melhor ou pior conseguida, mas acho que não deve ser trabalho de ninguém classificar essa tradução. O trabalho de um leitor de poesia deve ser ler e rever-se (ou não), ler e sentir-se desafiado(ou não), ler e sentir-se quente por dentro (ou não). Mas claro, isso é só a minha opinião. Quando se lê prosa, há, claro, outros objectivos a ter em conta. Mas para mim, a poesia é o maior espaço de liberdade criativa, e essa liberdade não deve ser sujeita a escrutínios muito detalhados.
Feita esta reflexão inicial, as minhas quatro estrelas a este livro são muito voláteis. O José Luís Peixoto é um escritor bastante sólido em prosa. Li já grande parte da sua obra, e fico sempre surpreendida com o que ele consegue fazer. Antes deste livro, tinha também lido o seu outro volume de poesia A Casa, a Escuridão, que na altura (já há uns bons anos) me deixou com boa impressão, mas especialmente por estar associado ao seu livro de prosa Uma Casa na Escuridão, que é provavelmente o meu livro favorito da sua autoria.
Acho que é natural que os poemas dele saibam a pouco depois de ler universos inteiros de boa literatura em forma de romance sob o nome JLP. Talvez porque falta aos poemas um pouco da magia dos espaços, das pessoas. São pequenos pedaços de histórias que não agarram de igual modo por serem apenas janelas e não portas.
Mas apesar de tudo, quatro estrelas. Foi um prazer sentar-me junto ao meu aquecedor com música de fundo a desfolhar página a página a Gaveta de Papéis.
O autor escreve magníficamente, mas curiosamente não me tocou a sua poesia como tem tocado alguns dos seus romances. Acho a sua poesia um pouco artificial, parece mais um jogo de palavras com um intuito anterior, que um jorrar da alma... Enfim, é apenas a minha opinião.
Este Peixoto não é o mesmo Peixoto que adorei em "Morreste-me". Vê-se que ainda está distante. Por vezes, num verso aqui outro acolá, vislumbra-se o brilho breve do escritor que já me fascinou. Mas olhando para este livro como um todo... não é dos que me cativa.
Romeu, o teu nome é um pacto e um relógio. Entrego-te o meu nome e permaneço imune ao mundo, à mentira e à passagem dos anos.
Romeu adolescente, perdido e camuflado nas minhas ilusões. Lírico Romeu, que volto a baptizar, agora com sangue em vez de água.
Coincidimos à frente e atrás de uma pistola carregada. Romeu, o teu nome chama-me pela voz com que a morte chama o amor.
Somos derrotados por um outono defeituoso, como por um poema errado ou pelo mar. Ali, pouco longe, um túmulo precisa do nosso calor * Quando chegaste - esquálida e coberta de adjectivos que rejeitavas, que te seguiam - o silêncio deixou de ser solene. Atirámos frases inteiras às paredes, somos crianças, e rimo-nos. A história escreveu-se longe das nossas mãos. Não sabemos mais verdades do que a nossa. Existiu um dia, perdido, em que nos encontrámos. Podíamos celebrá-lo com discursos estruturados e insignificâncias. Preferimos comê-lo - é um bolo de creme.”
Estamos juntos, mesmo quando nos separamos pelas ruas e, dentro de nós, somos um exército de segredos, mesmo quando nos escondemos do mundo que desejámos e que desejamos indescontroladamente, desincomparavelmente, como um silêncio que mente e mente e não mente.
"Agora, já não preciso que gostem de mim. Agora, tenho mil peças de um puzzle, tenho uma caixa cheia de molas soltas, duas mãos, tenho a planta de uma casa, tenho ramos guardados para o inverno, e tanto silêncio, tenho tanto silêncio, bolsos vazios e cheios, pão, fé, céu, chão, mar, sol, cá e lá, tenho sobretudo lá, uma distância imensa feita de planícies estendidas e eternidade porque eu caminho com vagar ao longo das estradas, o horizonte é demasiado quando planeio toda a sua distância sem medo de nada, destemido apenas, a coragem é um exército ao meu lado, tenho a coragem necessária, tenho um lago que reflete a noite e a lua quando há lua, uma orquestra inteira tenho, o som e o silêncio, já disse o silêncio, repito-o a saber quem sou e o que tenho, tenho uma gaveta de papéis, tenho montanhas de montanhas, tenho ar, tenho tempo e tenho uma palavra que corre à minha frente, mas que consigo apanhar e que ainda utilizo no poema."
Comparado a A casa, a escuridão e A criança em ruínas, essa Gaveta de papéis se mostra diferente. É bastante descritivo, sem perder o toque do poeta. Gostei da construção da obra, trazendo poemas, chaves e desenhos. É uma composição muito sólida.
Neste livro, o autor leva-nos numa viagem poética especial, única e mágica por alguns dos elementos que o leitor poderá deduzir que o autor guardará dentro de uma gaveta, nesse sentido, o livro é dividido em diversas partes: fotografias de cidades, documentos, chaves, recortes de jornal, tarefas domésticas entre outros.
Dentro de cada um destes pequenos capítulos José Luís Peixoto presenteia-nos com textos poéticos incríveis, de uma qualidade ímpar e rara que nos leva a viajar por cada um dos elementos que dividem o livro como se eles próprios ganhassem vida.
É difícil não se ficar rendido a este livro, pequeno; mas com textos belíssimos de grande qualidade.
Gostei particularmente da forma como ele descreveu algumas cidades: portuguesas e estrangeiras no capítulo que abre o livro: “Fotografias de cidades”, como se as cidades se transformassem num ser humano. É brilhante.
Recomendo vivamente a leitura deste livro.
Garanto-vos que vale a pena.
Partilho dois dos poemas que mais gostei deste livro:
Sozinho, chego a uma cidade saqueada e caminho com vagar, os braços quase parados, olho para as portas abertas, o que sobrou está espalhado nas ruas, o ar é limpo porque ninguém o respira, esta cidade, este silêncio, esta cidade, tenho na pele do rosto o contrário do choro de uma criança, esse tempo já passou, tenho tranquilidade séria e erosão porque esta é a nossa cidade e porque sei que não te vou encontrar quando chegar a casa, minha mãe.
FOTOGRAFIA DO PORTO
O Porto é uma menina a falar-me de outra idade. Quando olho para o Porto sinto que já não sou capaz de entender a sua voz delicada e, só por ouvir, sou um monstro que destrói. Mas os meus dedos são capazes de tocar-lhe nos ombros, de afastar-lhe os cabelos. Entre mim e o Porto, existem milímetros que são muito maiores do que quilómetros, mesmo quando os nossos lábios se tocam, sobretudo quando os nossos lábios se tocam. De que poderíamos falar, eu e o Porto, deitados na cama, a respirar, transpirados e nus? Eis uma pergunta que nunca terá resposta.
10/10 estrelas Recently I made the decision to try reading more poetry. I think for a long time I had the most basic idea about poetry. I literally knew close to nothing, the most I ever learned about it was in school. I had the feeling like poetry was really hard to understand and that it didn't tell a story, plus the books are so tiny and you finish them so fast that I didn't really feel like spending a lot of money on them. Well, I can admit I was dumb af. Lately, and since I want to save money and have fewer books that I bought compulsively and that only the room on my shelves I started borrowing a pile of them from my library. Having said that I mostly was trying to choose Portuguese poetry since there are a lot of fighters I love like José Luís Peixoto, Valter Hugo Mãe e Afonso Cruz that write poetry, and I never actually read it. I ended up getting two poetry books by José Luís Peixoto yesterday and I already finished them both, you can check my review for the other book already here) and I think I have discovered one more reason to love this writer. Having read his nonfiction books and novels I found it interesting that I was really more attracted to his less known publications. And poetry can reinforce that even more. I must confess I didn't love the other book of poetry. But this one! It is probably one of the best poetry books I have ever read and I'm just so happy that it is from an amazing Portuguese author. This book was so profound, with the most beautiful words and analogies, and I also found it to be so original since the author attributes each poem to an object that he finds in his "gaveta".
" O Porto é uma menina a falar-me de outra idade. Quando olho para o Porto sinto que já não sou capaz de entender a sua voz delicada e, só por ouvir, sou um monstro que destrói. Mas os meus dedos são capazes de tocar-lhe nos ombros, de afastar-lhe os cabelos. Entre mim e o Porto, existem milímetros que são muito maiores do que quilómetros, mesmo quando os nossos lábios se tocam, sobretudo quando os nossos lábios se tocam. De que poderíamos falar, eu e o Porto, deitados na cama, a respirar, transpirados e nus? Eis uma pergunta que nunca terá resposta."