Da leitura de Jean Meckert ninguém sai ileso. Nas suas páginas, grassam a raiva e a violência. Este livro reúne três histórias de juventude que prenunciam a obra futura do autor e que revelam a sua ética: a recusa em pactuar com a mediocridade e com as ofensas à dignidade, e a sua vontade obstinada de sobreviver. Numa escrita despojada, os dois primeiros episódios - «Um Crime» e «O Bom Samaritano» - relatam uma morte, a troco de uns míseros francos, e um gesto de súbita bondade; «Abismo», dedicado a todos os solitários e derrotados, traça a queda lenta na loucura de um jovem na penúria, enclausurado num quarto de Belleville, em Paris. Em plena crise dos anos 30, Meckert, também ele preso na engrenagem da miséria, faz assim o seu ajuste de contas com a sociedade.
Jean Meckert was a key figure in twentieth-century French literature, bridging populist novels and detective fiction. Know for his birth name for the books published in "Collection Blanche" by Gallimard Editions, for his pulp fiction works and noir detective novels he used several pen names such as Jean Amila, John Amila, Édouard, Edmond, Guy Duret, Albert Duvivier, Mariodile and Marcel Pivert. He also wrote theatre and screen plays. His work transpires a libertarian sensibility.
Assim, contentei-me comigo próprio. É incrível o que um homem contém dentro de si. Criei todo um mundo com o que possuía no meu interior. Os que pensam que são espertos, chamam a isso loucura; é uma palavra muito longínqua. Em verdade vos digo, eu, que venho desses lados, que se trata pura e simplesmente de autodefesa. -Abismo
Talvez as obras mais extensas de Jean Meckert sejam mais impactantes, mas estes contos da sua juventude, ainda que sejam um retrato fidedigno da crise dos anos 30, disseram-me muito pouco. Os dois primeiros não passam de previsíveis historietas moralistas sobre fome, miséria e injustiça, pouco elaboradas e com um desfecho previsível. O que encerra este volume, “Abismo”, já mais introspectivo e visceral, é um relato de desespero digerido e regurgitado em jactos de bílis.
À força de ficar sozinho no meu canto, dei não sei quantas vezes a volta à minha caixa craniana, no interior, caminhando no tecto. É muito difícil, quando não estamos embrutecidos, ficarmos sozinhos connosco próprios. Precisamos de uma distracção, de um amigo, de uma mulher, de um canário, ou então de muita imaginação. -Abismo
A raiva sincera de Meckert recorda-me em parte o grande mestre Céline. Literatura que não é, de todo, para coninhas.
«Bem entendido, devia ter dados os bons-dias a toda a gente. Só o compreendi depois: não se deve dizer às pessoas o que se pensa e sobretudo deve-se dizer-lhes qualquer coisa mesmo quando não se pensa nada.»
Jean Meckert não faz concessões. O fel que da sua escrita emana é coisa de experiência vivida e adquire a dimensão de manifesto honesto contra a estupidez. Rareiam autores assim, que rompem com lâmina fria o véu de falsidade que embeleza a ignorância que insiste em persistir. Tiro sempre o chapéu aos resistentes, que não vergam, que são até ao fim.
São três contos. Três contos tão breves, aparentemente tão simples e tão diretos que ficamos sem perceber bem de onde veio o murro que nos acertou em cheio no estômago. A sensação não é muito diferente, de resto. «Daqui ninguém sai indiferente» já se disse de muitos escritores, diga-se mais uma vez e justamente. A escrita não é brilhante - são textos da juventude de Jean Meckert, o que não justifica ou deixa de justificar alguma coisa, é apenas um dado -, o estilo é quase memorialístico, mas a capacidade de dizer o essencial é total, desconcertante, fria. Não completamente fria se atendermos a uma certa moralidade que atravessa os três contos por igual. E, contudo, denunciar a miséria e contar as vidas dos que «estão na merda» não é moralizar coisa nenhuma. É literatura comprometida com a realidade: não são rodriguinhos psicologistas centrados no eu afetado pela parafernália da existência. Também são, dirá alguém, porque se diz aqui que quando caímos «nos tornamos mais inteligentes, pomos a máquina a dar o rendimento máximo» e é desses o «sentimento pleno da vida». Só que não. Isto é um relato de quem foi a um dos círculos do inferno e voltou, não de um privilegiado com o cu sentado em cadeira de buinho. Toda a literatura tem o seu espaço, é certo, mas esta faz-nos render, olhar o abismo nos olhos.