Atravessar a pandemia com filhos pequenos em casa e o desafio de escrever. Juntar as peças do quebra-cabeça da memória, descortinar um novo olhar sobre a cidade, percorrer o deserto chileno de ônibus e se deparar com o oceano. Entre os diversos cenários e cenas cotidianas, uma mulher pede licença para envelhecer, uma mãe faz da maternidade a sua maior profissão, uma escritora constrói nas palavras o seu melhor refúgio. ‘Pensei, mas não disse’ é a seleção de 43 crônicas de autoria da escritora Luisa Sá Lasserre – a maior parte delas publicada no jornal A Tarde, da Bahia, de janeiro de 2020 a dezembro de 2022. Nesta leitura, você é convidado a experimentar, por meio das palavras, a vida que não se faz de grandes arroubos, mas de instantes miúdos, somados pouco a pouco. E se não dão em nada... pelo menos, dão em crônica.
Talvez a principal realização do gênero da crônica seja valorizar aquilo que, em um primeiro olhar, poderia parecer banal e desimportante. A crônica reconhece que grande parte da matéria da qual se ocupa não tem um grande impacto e não altera a ordem das coisas no mundo, mas insiste que nem por isso ela é menos relevante. Ao contrário, sugere que é no comum e no cotidiano que estão algumas das coisas mais importantes da nossa vida, e se esforça para mostrar como isso é possível.
A mensagem por trás da crônica encontra bastante ressonância porque, por mais que estejamos imersos em rotinas sobrecarregadas (ou precisamente por isso), há dentro de nós alguma coisa que concorda com a ideia de que vida poderia ser bem mais simples. Nem sempre nos lembramos disso, mas o cronista costuma colocar em perspectiva nossas prioridades e nosso senso de urgência. É quando podemos dizer “e não é que é assim mesmo?” e seguir nossa vida um pouco mais leves.
Luisa Sá Lasserre se inscreve no rol de cronistas que causam esse bem aos leitores. Em seu livro “Pensei, mas não disse” (Patuá, 2024), ela está muito atenta ao que chama de “a vida no miudinho”, coisas aparentemente triviais que acontecem no dia a dia, às vezes até sem sair de casa (“Em casa a vida não para de acontecer”, ela constata). Provavelmente até como consequência da pandemia, a cronista se deu conta de que a vida “real” e insubstituível de fato é aquela que existe “indoor”.
ua coleção de crônicas é marcada pela valorização de pequenos feitos, de gestos e do calor humano de quem faz parte do nosso dia a dia. Ela chama a atenção do leitor e diz que “toda hora, todo dia, algo incrível acontece, se a gente reparar bem no extraordinário que habita o comum”. Mas a gente normalmente não consegue fazer isso sozinho, tão desacostumados estamos a esse exercício de ver alguma coisa importante no corriqueiro – é quando o cronista entra em cena e nos ajuda.
É verdade que Luisa tem uma grande ajuda em casa: seus filhos. As crianças são muito mais capacitadas que os adultos para ver as importâncias que ninguém vê. Às vezes a filha diz à mãe “você precisa aprender a ser criança”, e é isso mesmo, porque a gente esquece, enquanto vai crescendo. E então elas são as professoras, elas nos ensinam a importância daquilo que está longe do grandioso. As crianças têm um olhar estrangeiro sobre o mundo, não contaminado, e isso nos convém.
Esse talvez seja um dos salários bons da maternidade (Luisa considera que ser mãe é a profissão mais bem paga do mundo). Mas que revolução é isso de virar mãe! E mais, ser mãe durante a pandemia! Como deve ser difícil conciliar a literatura com a maternidade! Quem sabe a crônica seja a forma ideal para esses momentos. Como Alice Munro escrevia contos nos intervalos da sua vida de mãe, seria possível escrever crônicas. De uma forma ou outra, Luisa escreveu – que bom para nós.
Com delicadeza, ela faz a defesa da pausa e dos instantes. As crônicas que escreve, muitas vezes, podem parecer conselhos, mas são reflexões sobre o próprio viver da cronista. Ela é daquelas que mais observam do que falam, a quem a frase correta só vai aparecer depois de o instante ter passado. O texto, essa forma de conversar com os botões, é a forma de recuperar o momento perdido, refletindo sobre o viver e, eventualmente, chegando a alguma verdade que, generosa, vai compartilhar.
Como está com olhar treinado para captar as sutilezas do ordinário, a cronista pode partir de uma aranha que avistou na grama ou até de uma frase na embalagem de parmesão ralado para promover reflexões maiores, filosóficas um tanto, às vezes psicológicas, mas de forma natural e ao alcance do leitor. Ela faz reflexões maduras sobre a memória e sobre o envelhecer, acompanha as estações do ano (é outonal) e faz bons exercícios imaginativos, como na crônica “Cadê você, Teresinha?”.
Em sua defesa do simples e do doméstico, com uma proposta de olhar para si, para os outros e para a cidade com outros olhos, não mais reféns das urgências que nos consomem habitualmente, Luisa consegue um ótimo resultado com esse livro, digno do destaque recebeu no Prêmio Sabiá de Crônica Júnior.