«Da infância, somos todos sobreviventes.» De quantos nascimentos e mortes se constitui uma vida? De quantos partos precisa uma pessoa para nascer? Com quantas palavras se constrói um corpo vivo? Num percurso delicado pelas memórias da sua infância e crescimento, eis as perguntas que movem Eliane Brum, uma das mais vibrantes autoras de língua portuguesa.
«Lembro que, quando tudo começou, era escuro. E hoje, depois de todos esses anos de labirinto, todos esses anos em que avanço pela neblina empunhando a caneta adiante do meu peito, percebo que o escuro era uma ausência. Uma ausência de palavras. Essa escuridão é minha pré-história. Eu antes da história, eu antes das palavras. Eu caos.»
Era uma vez uma menina que parecia estar sempre a piscar o olho à morte. Essa menina revela, neste livro, como foi resgatada pela escrita. A cada página, desfilam, vivíssimos, lugares e personagens fantasmáticos, que pertencem ao imaginário coletivo ou a um álbum de famí a «casa-túmulo»; a praça da cidade pequena; a irmã morta, que é afinal a mais viva entre todos; a mãe, despovoada de alegria; o pai, filtrado pela sombra de peripécias domésticas e de um país amordaçado; a avó, comedida em tudo menos na imaginação; as tias, transformadas em flores para não murcharem. Meus desacontecimentos marca a estreia em Portugal de uma escritora singular e multipremiada, que aqui regista a história da sua vida com as um relato delicado, impressivo e inquietante sobre como nos tornamos quem somos a partir da língua, da escrita, da memória. Neste itinerário de dentro para dentro, afiadíssimo e despudorado, Eliane Brum conta como se tornou uma narrativa de si, conduzindo o leitor numa viagem encantatória.
Os elogios da crí
«Eliane Brum tem uma escrita poética e envolvente. Cria um coro polifónico de vozes e olhares, e investiga as coisas delicadas que tornam a vida possível.» The New Yorker
«Não é todos os dias que encontramos uma escritora como Eliane Brum, para quem escrever émais uma ultrapassagem de fronteiras, uma transgressão existencial, do que um exercício virtuoso.» O Globo
«Eliane Brum aproxima-se da palavra através da escuta e conta com lirismo as histórias e detalhes da vida que (quase) ninguém vê.» El País
«Uma escritora de consciência – astuta, liricamente intimista, apaixonada e cirúrgica.» Booklist
«Eliane Brum apresenta uma escrita reconhecivelmente sua, visceral. Meus desacontecimentos é uma investigação sobre como a escrita não apenas a tornou uma escritora premiadíssima, mas virou o próprio ar que ela respirava.» Zero Hora
«As memórias da relação de Eliane Brum com a arte escrita, em uma espécie de autoperfil de formação literária. [Um livro que] traz momentos de força vital.
Eliane Brum é escritora, jornalista e documentarista. Uma das repórteres mais premiadas da história do Brasil, em 2021 recebeu o prêmio Maria Moors Cabot, da Columbia University, pelo conjunto de sua obra. É idealizadora, fundadora e diretora de redação da plataforma trilíngue Sumaúma – jornalismo do centro do mundo, baseada na Amazônia, e colunista da seção de internacional do jornal espanhol El País. Publicou 9 livros e dirigiu quatro documentários.
Eliane Brum is a writer, journalist, and documentary filmmaker. One of the most highly awarded reporters in Brazil’s history, she received the Maria Moors Cabot Prize from Columbia University in 2021 in recognition of her body of work. She is the creator, founder, and editor-in-chief of the trilingual platform Sumaúma – Journalism from the Center of the World, based in the Amazon, and a columnist in the international section of the Spanish newspaper El País. She has published nine books and directed four documentaries.
Como contadora de histórias reais, a pergunta que me move é como cada um inventa uma vida. Como cada um cria sentido para os dias, quase nu e com tão pouco. Como cada um se arranca do silêncio para virar narrativa. Como cada um habita-se.
Chega a Portugal dez anos depois de ter sido publicado originalmente no Brasil este livro de memórias de Eliane Brum, aquela que é considerada a jornalista mais premiada do seu país. Tendo nascido no Rio Grande do Sul, trabalhou também muitos anos em São Paulo, para se estabelecer em 2017 no Médio Xingu, um dos epicentros da destruição da floresta amazónica.
Desde pequena eu tenho muita raiva — e quase nenhuma resignação. A reportagem me deu a chance de causar incêndios sem fogo e espernear contra as injustiças do mundo sem ir para a cadeia. Escrevo para não morrer, mas escrevo também para não matar. Ouvi de alguns chefes que a indignação faz mal para o exercício do jornalismo, que bom jornalista não tem causa. Discordo. Indignação só não faz bem para quem tem como única causa a do patrão.
No princípio era a escuridão e só depois o verbo. Para Eliane, a existência são as palavras: primeiro, ditas, e mais tarde, escritas.
A palavra é o outro corpo que habito. Não sei se existe vida após a morte. Desconfio que não. Sei que para mim não existe vida fora da palavra escrita. Só sei ser — por escrito. No meu nome carrego o que sou e o que não sou, sustento o que busco e não alcanço, assim como o vazio entre as letras, o incapturável em mim. O indizível que também me constitui.
Já antes de saber escrever, as palavras eram como pão para a boca. Escutava-as nas radionovelas que tornavam a vida das empregadas mais suportável…
A novela de rádio rompeu a escuridão da casa-túmulo como um daqueles raios de sol que se enfiam por um buraco da parede e fazem nascer flores em ruínas de guerra. As palavras rastejaram para dentro das minhas orelhas com suas unhas compridas, raramente limpas, e me contaminaram para sempre. Foi ali que comecei a me tornar uma escutadeira que conta.
…e mais tarde nas histórias fantasiosas da avó que vira interrompido o seu curso de professora e acabara num casamento infeliz com um homem infiel e analfabeto que lhe escrevia cartas de amor para a conquistar.
É só como história contada que podemos existir. Por isso escolhi buscar os invisíveis, os sem-voz, os esquecidos, os proscritos, os não contados, aqueles à margem da narrativa. Em cada um deles resgatava a mim mesma — me salvava da morte simbólica de uma vida não escrita.
Só depois veio a paixão pela palavra escrita que lhe trouxe o mundo dos livros.
Desde que o primeiro livro se abriu para mim (e se fechou sobre mim), o cotidiano tornou-se um fardo a suportar. Era aquém demais. Sempre havia sido, mas agora existia uma maneira de escapar. Os livros me carregaram para dentro.
Eliane diz-se uma “repórter de desacontecimentos”, privilegiando a vida das pessoas comuns e relatando as banalidades das suas vidas, mas o corriqueiro também pode ser notável, como acontece com aquelas que ela aqui recorda, ainda que o facto mais marcante do percurso desta família tenha sido uma perda.
Só naquele momento, ao apalpar a dor das mulheres cujas crianças viveram mais no seu desejo do que na vida, alcancei a soleira da dor da minha mãe por aquela filha. Maninha não tinha vivido apenas cinco meses, já que o tempo de um filho não se mede por dias, meses ou anos. Um filho é mundo sem tempo.
Tendo nascido depois de uma irmã que morreu e cujo túmulo é levada a visitar ao cemitério, é um misto de temor e ressentimento que invade a pequena Eliane…
Só muito mais tarde eu descobriria que esta é a sina dos filhos que sobrevivem, chapinhando no lago escuro e sem fundo que é a dor sem consolo de pais órfãos.
…que nunca chegou a morar na desejada casa com jardim, construída pelo pai por ter sido aí que a bebé fora velada.
Essa irmã, que era um túmulo no cemitério, um túmulo que ninguém da família conseguia fechar, muito menos eu, havia me roubado a casa, o sol, as roseiras, a luz. Passei a infância pedindo ao meu pai que plantasse roseiras, mas já não havia onde. Percebo agora que nunca perguntei ao meu pai como era ser um homem sem rosas. Como é, pai, como é ser um homem sem rosas?
Eliane Brum é uma memorialista tremenda que, infelizmente, escreveu um livro demasiado curto.
Desta vez, fiz um percurso de dentro para dentro. Me percorri. Lembranças não são fatos, mas as verdades que constituem aquele que lembra. Recordações são fragmentos de tempo. Com elas costuramos um corpo de palavras que nos permite sustentar uma vida. Quem conhece as pessoas e as situações aqui contadas poderá rememorá-las por outros caminhos, a partir de suas próprias circunstâncias. Ao descrever aqueles que morreram, possivelmente confronto as reminiscências de outros. Os que ainda vivem talvez discordem do que neles adivinho porque enxergam a si mesmos de modo diverso. Esta é a minha memória. Dela eu sou aquela que nasce, mas também sou a parteira.
Desde 2017/2018 que tenho O Olho da Rua e Uma Duas para ler! Mistérios da vida de uma leitora: acho que vou gostar, compro e depois ficam por aqui, à espera que um dia a vontade bata à porta. Ainda não foi desta vez. Optei por Meus Desacontecimentos, uma breve autobiografia da autora.
Eliane Brum é gaúcha, natural de Ijuí – cidade cujo nome, em guarani, significa algo como “Rio das Águas Claras” ou “Rio das Águas Divinas” –, situada no noroeste do estado, ali para os lados da região das Missões.
Em Meus Desacontecimentos, Brum revisita a sua infância e confronta as memórias, as perdas e os traumas que moldaram a sua relação com as palavras.
“Pela memória da minha avó, aprendi a escrever com a ponta dos dedos.”
A autora resgata fragmentos para compor a sua história e mostra-nos que somos feitos tanto pelas lembranças quanto pelos esquecimentos e omissões.
Na sessão de 15 de janeiro do Clube da Livraria Buckholz a Tânia Ganho referenciou e relembrou uma ideia especial do livro de Eliane Brum que salienta que “os livros não são objetos e mercadorias são portais”. Reforço: “os livros não são objetos e mercadorias são portais”, São esses portais para a deslumbramento que pode ser a vida e a descoberta da humanidade por cada um de nós.
Neste pequeno volume, da maravilhosa coleção de “não fricção literária” da Companhia das Letras, a jornalista e ativista brasileira cruza as memórias familiares com as lembranças da descoberta da leitura e da escrita. Existem inúmeros pedaços que vale a pena recordar mas só para vos provocar deixo aqui esta frase: “Ás vezes me perguntam o que aconteceria comigo se não existisse a palavra escrita. Eu respondo: teria me assassinado, consciente ou não de que estava me matando. É uma resposta dramática, e eu sou dramática. O que tento dizer é que, se não pudesse rasgar o papel com a caneta, ainda que numa tela digital, eu possivelmente rasgaria o meu corpo. E, em alguns momentos, o rasgaria demais.” "Meus Desacontecimentos" de Eliana Brun é uma obra introspectiva e poética que explora as suas experiências da vida de uma forma profunda e sensível. Nesse livro, a autora aborda temas como a solidão e a busca por sentido, utilizando uma linguagem rica e evocativa que convida o leitor a refletir sobre suas próprias vivências e percepções. A narrativa é construída a partir de uma série de fragmentos que capturam momentos de vida – as referências à avó são lindas - revelando as contradições e complexidades das emoções humanas. A escolha de Brum em fazer uso de uma prosa fragmentada espelha a desconstrução de narrativas tradicionais, permitindo ao leitor uma imersão na multiplicidade das experiências que a autora compartilha. Outro elemento fundamental deste livro é uma sensação contínua de autenticidade nas histórias que a autora narra, potenciando a conexão entre o pessoal ao universal. Ao discutir os desenganos e as esperanças que cruzam a sua vida, a autora convida os leitores a confrontarem suas próprias histórias, promovendo um diálogo íntimo entre o texto e a experiência individual. "Meus Desacontecimentos" é, portanto, uma obra que não apenas retrata a trajetória da autora, mas também serve como um reflexo das lutas e desejos que definem a condição humana.
O livro é curto, mas muito intenso. São histórias reais contadas de uma forma tão mágica que se tem a impressão de estar-se lendo algo inventado. Afinal, quem conta fatos reais usando essa linguagem, esse ritmo, essa poesia toda nas frases? E que capacidade a autora tem de captar emoções, sensações, angústias ao seu redor!! O resultado é um livro de uma intensidade ímpar. Vale muito a leitura!!
Lili era a livreira alemã que, numa cidade brasileira, deu rédea solta à paixão por livros de Eliane Brum. A D. Odete é a minha Lili, a livreira que, desde que sou eu, me deixava deambular horas pelas prateleiras inteiras daquele espaço mágico para mim. Prateleiras cheiinhas de livros. Livros que eu tirava do sítio, folheava, revirava e que a D. Odete sabia que nunca iria comprar. Sentia-me sempre no paraíso quando ali entrava: tantos livros e o sorriso doce da D. Odete a ocupar-lhe a cara, os olhos, a boca. Anos depois, viria a abrir uma livraria em nome próprio, muito bonita, a Livros & Companhia, com muitos gatos no quintal. Apesar de já não viver na Marinha Grande, sempre que posso passo por lá, para o velho hábito de revirar e folhear livros, de receber o sorriso doce de cara inteira da D. Odete, e trocar um dedo de conversa. Este livro já valeu por esta memória que acordou.
Biografia curta e ultra sensível da escritora e jornalista Eliane Brum. Sua capacidade de usar as palavras para descrever sentimentos e descortinar vidas faz valer esta leitura.
Li em 2 dias, recomendo num clube de leitura, reconfirmado por uma amiga. Eventualmente ficaria fora do radar. Lido quase de um fôlego Estranheza das palavras no início, das sucessivas mortes e nascimentos, de uma infância que nao é a tua, mas quase sentes o escuro, o ar ... A vida salva pela escrita, pelos livros. Compreendemos o que a tornou uma activista, como.nasceu a jornalista. A urgência da escrita, as memórias, as reflexões, algumas situações que nos deixam com o coração na boca.
Comecei este pequeno livro e não consegui parar de ler!! A escrita cativa-nos página a página. Os livros são muito mais do que objectos inanimados e a autora mostra-nos isso de uma forma poética e na qual nos conseguimos rever ... Para quem gosta de livros sobre livros mas também gosta de histórias de vida fortes, este livro cumpre com isso tudo!!
Não ficção. Prosa quase poética e muito sentida ou não fosse um relato pessoal íntimo e delicado. E de uma surpreendente intensidade e força. A resiliência nas mulheres da família como a avó e as tias. E a combatividade (ou a raiva, de que a escrita salvou a autora). (Curioso mas a Eliane que, queria ser Isabel, uma heroína, nasceu no mesmo ano que eu).
Um pequeno livro que, é imenso. Beleza em palavras que expressam dor e perda mas também coragem e alegria ao resgatar esta história de família e a sua biografia. Testemunho que os antecessores vingaram para as gerações seguintes. “Acredito que só alcançamos o extraordinário do que somos ao sermos capazes de alcançar o extraordinário que é o outro.”
“Publicar meus textos, seja em papel ou na internet, por muito tempo me provocou um sentimento ao mesmo tempo fascinante e aterrador. De certo modo, era flertar com o risco de me perder ao me dar ao outro, já que é o meu corpo que ofereço. Às vezes passava noites acordando em susto depois da publicação de uma reportagem ou de um artigo ou do lançamento de um livro, com a sensação de estar sem pele e sobrar em carne viva. Ou com um buraco entre os seios por onde os leitores podiam investigar meu fundo sem fundo, como se eu fosse uma daquelas aberrações de circo expostas à visitação pública. Às vezes, ainda é assim. Volto a vestir a nudez do meu primeiro livro, aos onze anos. Mas, hoje, há uma parte vital de mim que se coloca fora de alcance. É a parte que me mantém sã. Sou lida, mas o corpo me pertence.”
Primeira vez lendo um texto não jornalístico da Eliane Brum e constatando que genialidade que ela tem com as palavras ultrapassa os gêneros da escrita. Sensível e potente.
Há pouco mais de 3 anos, mais precisamente no dia 2 de agosto de 2010, começamos O Espanador. Lembrando sempre que somos em 5 pessoas. Cada um com a sua própria bagagem, mas que juntos somos ainda mais fortes.
De certa forma posso dizer que comecei a compartilhar com vocês que acompanham o blog uma parte da minha vida com as palavras. Porque nesse tempo foram tantos textos, tantas madrugadas que eu tenho certeza que essa é uma parte fundamental da minha história.
O livro de hoje, Meus Desacontecimentos - A história da minha vida com as palavras, da jornalista Eliane Brum é um relato emocionante e sincero (e por vezes desconcertante, como quase tudo que a autora escreve).
Quando pensava no texto de hoje e relia algumas passagens do livro de hoje me deparei com esse trecho:
"Como contadora de histórias reais, a pergunta que me move é como cada um inventa uma vida. Como cada um cria sentido para os dias, quase nu e tão pouco. Como cada um se arranca do silêncio para virar narrativa. Como cada um habita-se. Desta vez fiz, um percurso de dentro pra dentro. Me percorri. Lembranças não são fatos, mas as verdades que constituem aquele que lembra. recordações são fragmentos de tempo. Com elas costuramos um corpo de palavras que nos permite sustentar uma vida. Quem conhece as pessoas e as situações aqui contadas poderá rememorá-las por outros caminhos, a partir de suas próprias circunstâncias. Ao descrever aqueles que morreram, possivelmente confronto as reminiscências de outros. Os que ainda vivem talvez discordem do que neles adivinho porque enxergam a si mesmos de modo diverso. Esta é a minha memória. Dela eu sou aquela que nasce, mas também sou a parteira." Página 9
Eu comecei o texto falando da minha experiência porque por mais que o livro trate de uma história muito mais séria (e intensa), sempre que eu descubro como alguém começou as suas leituras, ou ainda de que forma que as palavras mudaram as suas vidas eu sinto como se fizesse parte de algo maior. Nesse último ano que passou, minha história com as palavras ganhou capítulos que juntos poderiam render um livro.
Uma estrela a menos por repetir sempre as mesmas ideias. Se eu tivesse ganhado um dólar por cada vez que ela compara a palavra com um corpo, eu tava rica. Outra estrela a menos por querer biscoito. Apesar do livro ser uma autobiografia, a autora se apresenta como ótima, sofredora, desconstruída desde a infância, eu não acredito em ninguém que não tenha defeitos. Outra estrela a menos por CLICHÊ ALERT. A autora pega varias frases de efeito e tenta costurar elas em um livro cheio de repetições. O loco acaba se tornando uma narrativa completamente perdida, permeada por frases clichês. Me parece que ela queria virar legenda de Instagram.
São ensaios crus sobre si própria e os acontecimentos que a fizeram enquanto mulher e enquanto escritora. Gostei de muitos dos pensamentos mas achei repetitivo no geral.
"Aos poucos percebi que só poderia me colocar diante do outro, de todos os outros, como eu era. Quebrada. Com toda a integridade das minhas fraturas, das quais finalmente fiz um vitral". A citação acima está na penúltima página desse livro em que a carne coincide com o texto, e a palavra escrita permite a existência da autora. Não na posteridade e na memória de outras pessoas, mas no momento da escrita. A escrita constituía o corpo da autora, e sua existência, no sentido de que por meio dela [da escrita] lhe era possível forjar uma forma de existir. Esse livro curto é pleno de sensibilidade. Junto aos desacontecimentos da autora mostra outras vidas acontecendo. E Eliane as olha com carinho, agudez, lirismo. Vaguei deliciosamente pelas sombras da Ijuí de sua infância - criei imagens de uma cidade que não conheço, mas que vislumbro pelas histórias que ali passaram. Sobretudo, para mim, esse livro mostra uma narradora aprendendo a viver por meio da escuta das histórias das outras pessoas e transformando-as em narrativa. Doloridos e valiosos desacontecimentos.
"Desde o início o mundo doeu em mim. Dentro, mas também fora. Alguns creem que as memórias da primeira infância ou são boas ou não existem, temerosos de que até o mito da infância feliz lhes escape. São os que preferem não lembrar. Eu lembro muito, sempre lembrei. E ainda hoje há noites, muitas noites, em que acordo com o coração descompassado. Sempre vou temer o retorno da escuridão, que para mim é o mundo sem palavras."
"Lembro que, quando tudo começou, era escuro. E hoje, depois de todos esses anos de labirinto, todos esses anos em que avanço pela neblina empunhando a caneta adiante do meu peito, percebo que o escuro era uma ausência. Uma ausência de palavras. Essa escuridão é minha pré-história. Eu antes da história, eu antes das palavras. Eu caos."
Difícil tecer comentários objetivos acerca de algo que nos toca tão profundamente no âmbito subjetivo. Li o livro em uma única sentada, e me reconheci inteiramente em quase todos os capítulos. Qual seria o sentido de uma vida, senão aquele que decidimos oferecer a ela? Deste modo, o ato de escrever ultrapassa os limites da "nomeação" do mundo, passando, então, a produzir significados para si e para a vida. Escrever para se ressignificar. Para se autocriar. Escrever para (re)existir.
Ainda estou sob o impacto da leitura, e recomendo fortemente a todos aqueles que já não podem viver sem o corpo das palavras.
Admiro o trabalho de Eliane Brum há muito tempo. Mas só conhecia sua superfície. Esse mergulho no que permite que ela seja uma jornalista e escritora tão brilhante foi denso, esclarecedor e inesquecível.
Destaco uma das passagens de que mais gostei...
"Desde pequena eu tenho muita raiva — e quase nenhuma resignação. A reportagem me deu a chance de causar incêndios sem fogo e espernear contra as injustiças do mundo sem ir para a cadeia. Escrevo para não morrer, mas escrevo também para não matar. Ouvi de alguns chefes que a indignação faz mal para o exercício do jornalismo, que bom jornalista não tem causa. Discordo. Indignação só não faz bem para quem tem como única causa a do patrão."
Um livro gostoso de ler, mesmo que cheio de coisas não tão agradáveis de se ver. Eliane Brum escreve sobre sua vida e a relação com a morte de forma bem poética.
Ela desabrocha e mostra a sua alma ali. Conta como foi viver no interior do Rio Grande do Sul, a história da sua família e o seu começo com as palavras. Que como ela mesma diz é o que a mantém viva nesse mundo.
Eliane Brum é uma excelente jornalista. É extremamente humana e isso faz diferença no seu trabalho. Recomendo o livro pra quem a admira e para os jornalistas e estudantes de jornalismo. Uma boa referência nunca é demais.
A escrita de Eliane Brum a contar sobre sua vida me abraçou de um jeito muito particular. Me vi nessa menina que tem medo de falar em público, que entende os fardos de ser mulher cedo demais e que sofre com as injustiças do mundo e com aqueles que ninguém vê. É bonita a forma como ela nomeia as mulheres da família como flores, a força delas em seus jardins. Talvez por isso a gente acabe virando donas de “uma floresta amazônica” como dizem agora aqui de casa. Um livro sensível, com metáforas poéticas e que constroem a história de vida dessa jornalista premiada. Se você quer uma leitura rápida e confortável como um chá quente em um dia frio, esse é o livro que indico.
Comecei a ler este livro sem imaginar que ia ler uma das melhores obras literárias que com que já contactei. Nas palavras da autora, demonstra-se um processo em que narra a sua vida em episódios soltos, de profundo pesar e crescimento pessoal. Num mundo contemporâneo onde as narrativas são sempre bipolares - de um extremo pessimismo ou de positividade tóxica - “Meus Desacontecimentos” apresenta uma alternativa de construção narrativa do eu através da palavra. Para mim, pessoalmente, teve um enorme valor acrescentado identificar-me tantas vezes com os relatos de Brum, já que também eu: “Não sou capaz de esconder sentimentos, o que faz de mim uma aleijada social.” (p. 115)
Viciei na escrita da Eliane Brum nessa quarentena ... E nessa ~ autobiografía, Brum revela como ela inventou a sua própria vida, através da escrita.
“ ... tentei fazer da minha escrita um espelho amoroso no qual as pessoas cujas histórias eu contava pudessem se enxergar, descobrir-se habitantes do território das possibilidades e viver segundo seus próprios mistérios.”
“As notícias habitam os detalhes, às vezes empoeirados, do cotidiano. A maior parte das histórias reais que conto vem dessa grandeza do pequeno, da delicadeza que anima cada vida humana.”