Diz-se do povo português, que tem a melancolia na alma. Que os acordes de um fado, essa música bela e triste, se refletem na literatura de além-mar. Principalmente na produção contemporânea. Jorge Reis-Sá, um dos talentos da nova geração de escritores portugueses, explora a tendência para a nostalgia numa trilogia da perda, composta por volumes de leitura autônoma, e iniciada em TODOS OS DIAS. Neste primeiro romance de Reis-Sá, uma família do norte de Portugal, a região mais tradicional, se depara com a morte de um ente querido. Com extrema sensibilidade, o autor mostra como os que restaram reestruturam suas vidas de acordo com essa perda. Como refazem, passo a passo, os pequenos atos do cotidiano e como encontram alívio e conforto na previsibilidade de suas ações. Na constância de seus afetos. A narrativa é dividida por quatro personagens, todos íntimos de Manuel Augusto, jovem que abandonou a faculdade para se tornar escritor e morreu. Temos Justina, a mãe; António, o pai; Fernando, o irmão; e Cidinha, a avó, também já falecida. É por meio de seus olhos que montamos, aos poucos, a imagem de nosso protagonista e os sentimentos que desperta na família. Reis-Sá divide a ação pelas diferentes fases do dia; Aurora, Manhã, Almoço, Tarde, Crepúsculo, Jantar e Noite. Além de um epílogo intitulado Tarde demais. Os capítulos, curtos, mesclam passado e presente. Memória e realidade. E nos fazem mergulhar em relações interpessoais densas, repletas de saudade, amor e até amargo ciúme. Pela simplicidade de linguagem, pela recuperação lírica das vivências de uma família suburbana, pela percepção das relações estabelecidas entre parentes vivos e mortos, pela narrativa fragmentária e ao mesmo tempo concatenada, TODOS OS DIAS se revela uma leitura obrigatória.
Jorge Reis-Sá nasceu em 1977 em Vila Nova de Famalicão. Frequentou, entre 1994 e 2000, os cursos de Astronomia e Biologia na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e estagiou no Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto onde estudou genética populacional, interrompendo a formação académica para se tornar editor.
Editou seis livros de poemas, os últimos dos quais Biologia do Homem, Livro de Estimação e Vou para Casa e cinco de narrativa, entre os quais a memória Por Ser Preciso, vencedor do Prémio Manuel Maria Barbosa du Bocage desse mesmo ano, o romance Todos os Dias, os contos Terra e o divertimento O Dom. Organizou diversas antologias, entre as quais Anos 90 e Agora - Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa e colabora frequentemente com a imprensa.
"Todos os Dias" caiu como uma luva, num momento em que eu estava pensando e sentindo várias das coisas expressas aqui. Leitura de uma sentada só, uma vez que desde cedo fica claro que há mistérios a serem revelados, pelo tom da narrativa, pelo jeito como fatos são encobertos e postergados. Impressiona muito como retrato da mente de um escritor, mesmo que ausente: o Augusto, filho morto desta família central. Todos os detalhes de sua vivência, dados a partir de outras vozes, são belos e precisos nesse retrato. Sobraram António e Justina, o irmão Fernando, e o espírito da vó Cidinha, os quatro narradores oficiais da trama. O delineamento dessas personalidades e o modo como a prosa se modifica minimamente de uma para a outra traz uma força de luto coletivo, de narrativa épica a essa trama que, em tese, descreve apenas um dia na vida dessa família. Toca em mim, sobretudo, o ressentimento de Fernando, o filho mais novo que teve de crescer à sombra do mais simpático, mais divertido e mais brilhante Augusto (a mãe Justina, em algum momento, se culpa por gostar que a morte de Augusto represente, de algum modo, a vitória do filho que sobrevive). Vindo na corrente de "Boyhood" do Coetzee, e com a memória ainda fresca da estrutura similar usada em "Desesterro" da Smanioto, me parece que "Todos os Dias" encontra um lugar ideal entre a descrição e a melancolia, um sentimento que é tudo menos descritivo. Duas surpresas incríveis ao final, onde vários fios da prosa se reúnem finalmente, garantem uma sensação de inédito neste livraço.
Um trecho memorável:
"E conheço as badaladas com que a igreja chama os seus mortos para os enterrar no cemitério. Conheço-as porque me diziam - Foi sicrano, foi beltrano quem morreu. e eu ouvia. Ouvia o sino e a minha mãe repetindo os nomes de quem partira ao meu pai sempre que na freguesia existia um corpo a menos para encher, aos domingos, a igreja. E as badaladas com que enterrei o meu filho. O passo apressado com que o meu António foi à casa do padre, dizendo-lhe - Morreu, senhor padre Horácio, o meu filho Augusto morreu. ou o passo já mais sereno, já mais habituado, com que se deslocou quando lhe foi dizer - Morreu, senhor padre Horácio, a senhora minha mãe morreu. e o padre, intuindo as palavras, chamando o sacristão. E eu vejo os braços do sacristão, os seus braços fortes pelos anos de manejo das cordas, a tocarem com força o sino. Duas badaladas e duas carreiras quando é mulher. Assim quando morreu a Cidinha, quando o António a matou à entrada da casa do padre dizendo - Morreu, senhor padre Horácio, a senhora minha mãe morreu. mais vezes quando o fez pelo meu filho Augusto. Quando é homem tocam três badaladas e três carreiras para dizer que partiu quem dava sustento à casa. E o Augusto dava à casa o sustento de que ela, na altura, parecia não precisar. Só quando faltou, como acontece sempre, é que se notou a importância das coisas que pareciam tão insignificantes: um sorriso, o arrastar sereno do roupão pelo corredor, outro sorriso, os papéis que trazia sempre com ele, como fazendo com ele um corpo só: a companhia que nos oferecia sem exigir nada em troca. Mas não foi pelas vezes que ouvi o sino, enquanto o meu filho jazia na cama com a sua pele já fria, que o senti mais alto. Foi pela dor lancinante quando tocou para mim. Não era sicrano ou beltrano quem morrera, como dizia a minha mãe. Era o meu filho. E, se para as outras pessoas era apenas uma morte a mais, para mim era a única. A única morte que me poderia um dia fazer entender o sino como se fosse uma fala antiga que me entrou quando nasci."
Não minto, custou-me a ler. Um livro que escreve sobre uma família e os dias de todos os dias. Que carrega a vida depois da perda de alguém querido, as várias fases do luto; carrega a espera pela morte, carrega a vida que se deixa nos que estão vivos e a saudade. Doloroso, e tão belo.