Na passagem ao século XX, o Rio de Janeiro era palco de importantes mudanças e vivia uma efervescência cultural que não passava batida aos olhos de João do Rio.
Descobri que esse livro foi feito para ler na rua. No meu caso, no metrô do Rio de Janeiro. Enquanto lia na minha cama, os textos se arrastavam. A partir do momento em que comecei a ler no caminho para o trabalho e de volta pra casa, a vida narrada nas páginas, mesmo que muitos anos distante da minha, começou a fazer sentido. A introdução do livro já vale muito, mas o livro como um todo, pinta uma imagem do Rio de Janeiro no início do século XX com muita sensibilidade, além do cinismo dos que carregam a herança dos realistas. Algumas passagens soam racistas e podem apresentar um tom de superioridade sobre os mais pobres, mas também há uma preocupação com o estado dos marginalizados, principalmente detentos. Além da ironia e do realismo que costuma ser mais apontado quando fala-se sobre João Barreto, acredito que o que me fisgou foi também um vestígio de romantismo. João fala das esquinas podres da cidade, mas também de uma musa que dança nelas.
Ao contrário de outros livros de João do Rio, em A alma encantadora das ruas há mais variação quanto à estrutura de suas crônicas, a começar pelo enorme texto que abre o livro, espécie de ensaio sobre a rua, mas cansativo, sem dúvida uma das principais razões para o alto índice de abandono de leitura do livro (8% no Skoob).
Tal ensaio, pela extensão, não se adéqua ao espaço jornalístico tradicional. Os demais textos são menores, mas, ainda assim, maiores do que as atuais crônicas. É que o espaço que João do Rio tinha nos jornais não era tanto o de cronista, mas o de repórter. E o que ele faz ao longo do livro é justamente uma crônica-reportagem, pois ele sai para a rua a fim de buscar as histórias e os ambientes com os quais irá preencher o espaço informativo que o jornal lhe oferece.
Às vezes, o resultado que encontra em suas explorações na rua é eminentemente humorístico: o material que reuniu nas crônicas “Orações” e “Tabuletas” é de fazer rir, a ponto de parecer até que ele, antecipando o nosso Stanislaw, organizava uma espécie de “festival de besteiras que assolam as ruas”. Por mais engraçado que sejam os exemplos e as conclusões a que João do Rio chega, porém, é interessante perceber que eles são argumentos desfavoráveis à rua.
João canta a rua no ensaio inicial, mas o conjunto das crônicas permite concluir que ele não é exatamente simpático ao que encontra nela – e, honestamente, há casos em que ele parece ser até hostil a ela, como ao desqualificar o tipo de literatura produzida na rua e o tipo de pessoa que lê esse material (há termos como “homens primitivos” e “gentalha”, por exemplo). A rua atrai e seduz o cronista, mas não necessariamente encanta ou deleita os seus sentidos.
É verdade que ele retrata muitas cenas e ambientes onde não poderia mesmo haver um sinal de deslumbramento. Que encanto poderia haver, por exemplo, entre os comedores de ópio, ou entre os miseráveis que abarrotam as hospedarias de má-fama? Grande parte daquilo que João do Rio registra em suas crônicas é composta de uma realidade dura, por vezes suficiente para desumanizar as suas vítimas, e o autor tem o mérito de chamar nossa atenção para isso.
Mas não significa que ele, necessariamente, simpatize com essas pessoas. A crônica de João do Rio é, também, a reportagem do jornal, não o texto descompromissado escrito em um rodapé da página, mas um material informativo de destaque, associado ao espírito noticioso, por mais que nele se sobressaiam os talentos literários do seu autor. Como um repórter, João do Rio é o “outro”, aquele que observa, registra, retrata, narra – mas não se confunde com seu objeto.
Algumas dessas reportagens são tão interessantes que mereciam ser reunidas em um livro próprio, como aquelas que escreveu sobre a vida dos presos. Mesmo nessas, porém, percebe-se o distanciamento do cronista em relação ao que retrata. É ele quem é capaz de apontar erros de ortografia em cartas de presos, ou de sugerir que algumas pessoas apresentam uma “visão superior do mundo” e que por isso estariam deslocadas no meio da “cloaca do crime”.
Essa sequência de crônicas sobre a prisão, se bem que apresente um painel que vale a pena conhecer, conta, aqui e ali, com alguns trechos que, no mínimo, envelheceram muito mal, com destaque para a insinuação, em “Crimes de amor”, de que as próprias mulheres vitimadas por maridos ciumentos seriam as “destruidoras” da vida dos homens. Pode-se alegar que essa era uma opinião da época, mas Lima Barreto já era muito mais simpático à causa das mulheres.
Também chama atenção, em sua crônica sobre pessoas em situação de rua, que praticamente não há, para ele, mendigos honestos, e mesmo os que eventualmente o sejam não deixam de ser, também, meros exploradores da própria miséria. De vez em quando, ele fala também em “massa ignorante” e chega a criticar os “versos falhos” das cançonetas populares, em opiniões que sugerem ser ele não apenas o “outro”, mas, na sua própria perspectiva, alguém “melhor”.
Mesmo assim, é claro, o autor pinta quadros interessantes e necessários, alguns bem tristes, como o dos velhos cocheiros, o das mariposas de luxo, o dos trabalhadores de estiva, nos quais, aí sim, sente-se que de alguma maneira ele se identifica ou se solidariza com as pessoas que retrata. Há ainda crônicas sobre pequenas profissões, sobre músicos ambulantes, sobre as pinturas das ruas, e nem sempre o estilo do autor permitiu que elas fossem de fácil leitura.
“Nesta Cosmópolis, que é o Rio, a poesia brota nas classes mais heterogêneas”. João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto (1881-1921), perambulou pelos becos, vielas, ladeiras, bem como pelos salões da alta roda, teatros e grandes avenidas, registrando as transformações que ocorriam com o plano de modernização urbanística do Rio de Janeiro do início do século XX. Delineou diversos retratos da vida urbana e de seus personagens.
Em A alma encantadora das ruas, coletânea de crônicas e reportagens publicada em 1908, Do Rio movido pelo ato de flanar – “ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem” – expõe, critica e denuncia a marginalização social no Rio antigo de becos e vielas, e enaltece o ímpeto e o desejo da modernização do Rio da Avenida Central. No submundo carioca – presídios, casas de ópio, no porto da cidade, nas vielas onde residiam moradores de rua, entre outros –, João encontra a matéria-prima para problematizar e divulgar as contradições e perversões dessa modernização. Em uma das crônicas, A fome negra, relata sua visita à Ilha da Conceição na Baía de Guanabara, onde trabalhadores imigrantes, na maioria portugueses e espanhóis, viviam em condições subumanas de trabalhos degradantes com minério e carvão, muitos “passando quase uma existência na ilha”.
Jornalista e escritor, João do Rio era também mestiço e homossexual, enfrentou a herança cultural de um Brasil patriarcal e racista, foi alvo de chacotas e desprezo por parte da elite intelectual da época. Dândi – vestido à moda francesa, sempre elegante –, criou um novo estilo ao sair da redação jornalística e ir apurar os fatos na rua. Fez da cidade sua personagem, desvendou para o público o que nela havia de marginal e poético. Com um texto que transita entre a literatura e a reportagem, a ficção e a realidade, João do Rio é eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1910.
Um relato vivo e fabuloso de um Rio que não existe mais. Com uma narrativa vibrante e expressiva de seu tempo, João do Rio dá encanto e protagonismo para as ruas cariocas de tal maneira que nos sentimos parte dela.
Li a edição comentada pelo Simas e acabei sentindo falta de ainda mais comentários e notas explicativas pra tantas referências evocadas pelo João do Rio. Me senti um pouco transportado ao Rio do início do século XX por meio das crônicas. A cosmovisão da época é bem marcada e o estilo de escrita é prazeroso. Ler esse livro logo depois de ler Capitães da Areia me deixou mais sensibilizado pela camada da população que faz da rua a sua morada, e reforçou a importância rua no meu pensamento como um espaço que precisa ser de qualidade e convivialidade para todos. Rua movimentada e populada é uma rua que vibra e que faz a cidade reverberar quem ela é.
Recopilación de crónicas del periodista y escritor Joao do Rio. ‘La calle’ marca el estilo de su escritura, poética y nerviosa, en este elogio del flâneur. Su gusto por lo pintoresco y lo decadente lo hacen interesante aunque al castellano debe de ser ésta la única traducción.
A Alma Encantadora das Ruas é uma coletânea de crônicas publicada em 1908, sob o pseudônimo João do Rio, do jornalista Paulo Barreto. As crônicas mostram a visão do jornalista sobre suas andanças pelo Rio de Janeiro. Seus relatos são crus e algumas vezes até repugnantes - acredito que era esse o sentimento que ele queria ao entregar cenas de situações repugnantes. Interessante que, mais de um século depois, muitas das situações são as mesmas: trabalhador explorado por ricos empresários, ganhando um mísero salário, quase sem segurança nenhuma e sem outra opção; crianças exploradas na mendicância; pobres sendo presos apenas por serem pobres; situação desumana nos presídios.
Em alguns momentos, senti um traço ou outro de preconceito de classe por parte do narrador, mas grande parte de sua análise é sensata e desafiadora. Tem uma parte do livro que reúne as crônicas sobre a prisão, com bastante crítica social, principalmente no que concerne a falta de um motivo para o encarceramento: adolescentes e jovens presos apenas por brigarem na rua; mulheres presas por alcoolismo. A gente pensa: ah, mas isso foi há um século! Hoje, temos nos nossos presídios casos similares, gente presa por furto de alimentos junto com assassinos, por anos. Muita coisa do Brasil recém democratizado continua na mesma: pobres continuam enfrentando os mesmos problemas e aquelas que deveriam mudar a sociedade, continuam com o mesmo pensamento de séculos atrás.
Outro ponto que achei interessante foi do cronista abordar, em vários pontos, a saudade do brasileiro comum da monarquia e de como ele não compreendia esse saudosismo. João do Rio soube bem capturar a alma das ruas. Ele mostra que o local do repórter é nas ruas, conversando com as pessoas comuns, observando as minúcias do cotidiano, um sociólogo, um pesquisador etnográfico da cultura urbana.
É de uma riqueza de detalhes tão impressionante que fui arrebatada para o início do século XX.
Acredito que, para nós cariocas, a leitura ganha uma dimensão ainda mais tangível , visto que, além de conhecermos bem o cenário, ainda vivenciamos muito do que fora relatado no livro.
Mas não para por aí: há também a descrição de um Rio que não existe mais, o que aguça nossa curiosidade pelo desconhecido e nos envolve em uma nostalgia por algo que não vivemos.
"Para compreender a psicologia da rua não baste lhe apreciar as delícias como se aprecia o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flaneur e praticar o mais interessante dos desportos - a arte de flanar." (pp.16/17)
Com prosa divertida e inteligente sobre um Rio que não mudou muito, João do Rio é um excelente cronista da cidade. Apenas um pouco decepcionada com a edição comentada por Simas: muitas notas de rodapé explicativas, mas pouco comentário de fato; esperava mais considerando o auê em cima dessa edição.
Este livro é o Gênesis das mazelas do Brasil, mas é também uma declaração de amor ao Brasil de baixo, das ruas, estivadores, ladrões, detentos, imigrantes, lundus, modinhas… Em cada uma destas crônicas, João do Rio só precisa de um parágrafo para nos fisgar, e a prosa dele é sempre rica e fluida. Uma maravilha da literatura brasileira.
Escrita e forma de condução narrativa muito atuais! Bom demais, uma leitura ímpar! Ótimo para entendermos as conjunturas socioeconômicas que perduram até a contemporaneidade no Rio de Janeiro.
The first of João do Rio's many books to be translated in full into English, The Enchanting Soul of the Streets is excellent both as an introduction to one of Brazil's essential writers and as an entry-point into the literature of the country's belle époque. Sometime in his late teens or early twenties the author attempted to join a diplomatic envoy to Colombia. Rejected, he became a journalist instead. (How fortunate for us!) This book collects several chronicles written between the years 1904 and 1908 that deal, as the title suggests, with the life of the common people who inhabit Rio de Janeiro's metropolitan streets. It's true that João do Rio sometimes lets his ego get the better of him -- though the ostensible subject of his book is the carioca popular class, he never lets us forget that he is the one observing it for us -- it's also true that the book builds immense empathy for such easily disliked urban characters as the swindling gypsy, the begging child, the drowsy coach-driver, and so on. An important though at times rather odd piece of world literature. Highly recommended.
O livro tem aquela linguagem bem chata típica do início do século passado, cheio de palavras 'americanizadas' que acabam fazendo a leitura um pouco irritante em alguns momentos. Fora isso, é um ótimo livro, mostrando a vida das ruas cariocas no início do sec. XX. Diferente dos autores mais lembrados da época, João do Rio (pseudônimo de Paulo Barreto) busca sua inspiração nas camadas mais pobres da sociedade carioca, poetizando os muito personagens que habitavam o centro da cidade. De presidiários aos poetas das ruas, os vários capítulos são como uma aula de história do Rio de Janeiro que você não aprendeu na escola.
João do Rio tem uma maneira de descrever e relatar que é para poucos: conciso, objetivo mas ainda rico em detalhes e sensações. Retrato impressionante do Rio de Janeiro do começo do século XX.
Curti demais o livro, principalmente porque foi escrito a mais de cem anos e continua muito atual, mostrando um lado da cidade do Rio de Janeiro que poucos querem ver, ou sequer saber que existe.