«Repare-se que o texto começa como qualquer lenda das que se ouvem na infância dos indivíduos e dos povos - «nesse lugar havia uma mulher...» - mas pouco depois temos cortes na narrativa, risos, frases, inacabadas, a confusão de vozes e tipos de discurso. É suposto que as lendas contenham uma lição clara, mas aqui essa clareza é substituída pela «energia das imagens» que garante a perpetuação do secreto como potência transformadora. É na sua irredutibilidade à decifração que o texto se aproxima por vezes de imagens da tradição - o cavalo Pégaso, um verso de Fernando Pessoa, a alusão ao milagre das rosas ou às cantigas de amigo.» Do Posfácio de Silvina Rodrigues Lopes
MARIA GABRIELA LLANSOL nasceu a 24 de Novembro de 1931, em Lisboa. Licenciou-se em Direito e em Ciências Pedagógicas, tendo trabalhado em áreas relacionadas com problemas educacionais. Em 1965, abandonou Portugal para se fixar na Bélgica. Regressou há alguns anos a Portugal. É um caso ímpar na ficção contemporânea, de jorrante, inesperada e original criatividade. De estilo muito próprio, a sua forte personalidade afirmou-se desde 1957, com as narrativas de Os Pregos na Erva, consolidando-se com O Livro das Comunidades, 1978, e com todas as suas obras posteriores, de que poderemos salientar A Restante Vida, 1978, e Um Beijo Dado mais tarde, 1990, e Lisboaleipzig, 1994 e 1995. Aliando a subjectividade enunciativa a um forte pendor mítico de implicação lírica, que funda numa visão da vida e do mundo de tipo religioso herético, sensualista e naturalista, a sua ficção caracteriza-se por uma hibridez de registos e de convocação, temporal e espacial de entidades, que no entanto assume uma coesão que lhe é dada por uma marca discursiva persistente e inconfundível. Faleceu a 3 de Março de 2008, em Sintra.
(sobre a morte) ...Quando me sinto ser senão olhos (que não tenho mais limites), sinto que sou eu, e morta; posso então olhar o meu corpo como qualquer coisa caída no chão. O que não me perturba. Posso olhar cada parte do meu corpo como se estivesse no seu exterior; não me importo que o meu corpo se torne mineral; silício ou argila, todos os minerais (todas estas matérias) eram um pouco seres vivos onde existia uma cadeia de energia cósmica que passava. Tudo é extremamente simples, se for a mesma coisa. Nas ocasiões em que me sinto nada - a morte não é nada. Quando perco o mundo, aparece a terra... ... (sobre o amor) E o amor? O som amor...É preciso fazer a distinção entre amor e sentimento maternal, segurar. O que corresponde um pouco a uma etapa, a um momento de sobrevivência, até chegar o dia em que, tendo já passado pelo ventre de sua mãe, ele se torne Amor; para mim, o amor é a força que aquece aqueles que passam pelos teus domínios com o fim de lhes permitir atingir o estádio em que tu estás. Seja olhado com olhar terno: é a força, uma força. O mundo erótico é verdadeiramente estranho; e vejo que o meu corpo aí não está. É qualquer coisa de artificial, como se para atingir o orgasmo devesse ter imagens diante de si; é um instinto de morte, qualquer coisa de imaturo, como se houvesse necessidade de uma pena que passasse pelo corpo para poder; o campo do amor me vai formando como uma pessoa maternal; dantes, eu acariciava sem ter necessidade de acariciar, respondendo a um pedido; era alimentar um buraco. Estou convencida de que se um ser humano, sozinho, não pode ficar cheio, dificilmente também poderá passar a um outro plano. Se o tipo de pedido que te fazem é um pouco sádico, então nada podes fazer. As ideias...é na própria cabeça que se pensa. Senão é como pedir a uma criança que parta uma caixa já partida, e nada destrua. Na minha vida, só uma vez amei. Alguém que estava num espaço diferente, que era um espaço de energia. Então, a sedução desaparece.
Leitura "difícil" no sentido mais delicioso do termo: o entregar-se ao labirinto da linguagem, onde povoa uma comunidade de imagens regidas por um tempo espirilado, fuga da linearidade e da subordinação do texto à narrativa. Texto vivo, quente, pulsante.