Rasgam as entranhas do meu corpo palestiniano frases e palavras em português, um idioma que ainda vou aprendendo. Resisto com toda a força, só algumas conseguem escapar. Aperto os lábios diante da impossibilidade de falar do meu corpo que não é, do seu lugar que é nunca. Não digo a nenhuma alma que não distingo o «cá» do «lá». Nem que as línguas e os desejos acontecem em mim em simultâneo. Não consigo, não consigo, não consigo soletrar o nome árabe de quem morreu ontem em Gaza, nem no dia seguinte. Fecho a boca perante o caminho da história da minha família que foi expulsa da sua terra após a catástrofe palestiniana Nakba, em 1948. Coloco a mão à frente da minha voz para evitar um erro de português, enquanto conto uma piada ou até um sonho de liberdade, mesmo se toda a liberdade. Não declamo nada. Aguento um golpe atrás de outro de um verso que me quis abandonar. Mantenho o silêncio.
1948 Minha casa tornou-se capaz de todas as chaves.
Uma coisa que aprendi há uns anos sobre os palestinianos e que me comoveu extraordinariamente foi a simbologia em torno da chave, um desenho comum em cartazes, murais e até em monumentos, como um em Jericó que diz “Havemos de regressar”. Essa chave representa a Nakba (catástrofe) de 1948, quando se iniciou a limpeza étnica dos palestinianos com a expulsão de 750 mil pessoas de suas casas pelo exército israelita.
POESIA ASSASSINA Carnificina Chacina Palestina Esta rima me mata
Shahd Wadi vive em Portugal desde 2006 e escreveu este livro de poesia em português “com sotaque palestiniano… o sotaque da liberdade". Tendo nascido no Egipto 24 horas depois de a sua mãe ter sido expulsa do Líbano, Shahd é doutorada em Estudos Feministas pela Universidade de Coimbra. Como diz Alexandra Lucas Coelho, “Shahd Wadi fez de Portugal a sua morada – até que ir para casa seja possível. Enquanto a Palestina estiver ocupada, o mundo é a Palestina.” Espero que lhe reste casa a que regressar, ela e todos os Palestinianos na diáspora, e que a bandeira com as cores de “uma fatia de melancia” deixe de servir de mortalha.
SONHOS PROIBIDOS Antes de ser despedida, o patrão encontrou na sua mala: uma fotocópia da primavera, um boletim do Euromilhões fora de validade, as cores proibidas de uma fatia de melancia, um livro de poesia em segunda mão, claro, uma chave antiga que se assemelha a um regresso, e muitos pedaços de sonhos sujos e incompletos que já ganharam a cor do fundo da mala. Tudo foi apreendido, exceto ela. À saída a chuva de setembro e um guarda-chuva de uma mulher passageira de sapatos amarelos na mão, esperava. Entrelaçou sem hesitação o seu braço com o dela, fixou o olhar para a câmara do número 16 da Rua António Enes e levantou devagar o dedo do meio. A partir desse dia, o seu dedo do meio permaneceu no meio entre as nuvens, a bandeira, e o arco-íris O seu dedo do meio permaneceu no meio dos sonhos proibidos jamais serão vencidos.
CHUVA DE JASMIM Um bairro inteiro exilou-se deixando a solidão num estendal longínquo na janela de uma vizinha. Hiba responde, estendendo toalhas, que mudam de cor e posição todos os dias. A mulher da janela distante, faz o mesmo. Uma toalha, estou viva. Outra, estou de verde. Estou contigo. Estamos juntas. Resistirmos. Prosa, o caraças! [...] Mas aquele meu povo palestiniano não largou ainda a tal doença incurável chamada esperança?
Há uma fotografia de Shahd Wadi que acho particularmente enternecedora. Há de ter sido tirada para uma publicação jornalística e, em si mesma, nada tem de extraordinário: nela a autora debruça-se sobre um muro, meio busto acima da linha de visão. A sua beleza é evidente, como aliás, em todas as demais fotografias, mas um pormenor salta à vista: as duas fatias de melancia que lhe emolduram rosto. Dito assim, parece supérfluo. Mas os brincos que adornam o rosto sorridente da autora são um símbolo maior da resistência palestiniana - vermelho, preto, branco e verde: as cores da bandeira do Estado da Palestina. O último reduto contra a ocupação. Ocupação a que a autora palestiniana, a viver em Portugal há quase 20 anos, resiste de uma forma que aos portugueses não é estranha: através da poesia.
O CORPO QUE NÃO É Sou um cruzamento com mapas a invadirem o meu ser. Ocupada, mas livre. As minhas línguas são um muro. Acontecem em mim em simultâneo tal como os meus sonhos. [...] Na linha que nos separa eu habito. Nem a pátria, nem o exilio é aqui. Nem isso, nem aquilo: sou eu. Sou a própria fronteira.
Shahd encontra em Portugal uma pátria emprestada e uma língua que lhe matiza o colorido da voz. Estudiosa do activismo das mulheres palestinianas, o seu trabalho mune-se de roupagens coloridas (não só da cor da melancia) neste Chuva de jasmim em que fala sobre identidade, exílio, legitimidade de discurso e sororidade.
DESCALÇAS Faremos o caminho até o último dedo.
Num país que acolhe diferentemente o emigrante e o migrante, o refugiado e o exilado, fico feliz por saber que Shad Wadi aqui tenha encontrado uma pátria temporária. E ficarei ainda mais feliz se um bocadinho dessa pátria regressar um dia com ela a casa, ao mesmo tempo que um bocadinho da Palestina fica connosco nas suas palavras.
LADO A LADO No olhar, palavras sem garganta, como se o meu eu fosse o vosso ontem. Entrego-vos a minha inquietação do nada para que se torne nossa. Palavra dita escrita nunca é em liberdade.
NÓ O problema do nó na garganta é não achar o fio à meada.
CHUVA DE JASMIM (...) O nó na minha garganta é agora uma vala comum. Que verso aguentaria ao lado da pergunta: «pai, os mortos vão para o céu, o mesmo lugar de onde nos caem as bombas?»
Ontem, ao ler “Chuva de Jasmim”, de Shahd Wadi, senti-me pendurada numa corda de secar a roupa, balançando para a frente e para trás, questionando-me sobre o significado de uma palavra já de si frágil, mais ainda nos tempos que correm: Humanidade.
Este é o primeiro livro de poesia portuguesa escrito por uma palestiniana que vive em Portugal e que encontrou a liberdade através da escrita, arte e investigação.
Os poemas de Shahd Wadi respiram. Respiram de saudade e amor pela Palestina, pelo seu “Povo Pássaro” que, nas palavras de Shahd, sofre da “tal doença incurável da esperança”.
É impossível ficar indiferente à sua escrita, cirúrgica e sem anestesia. Este livro inquieta, desassossega, como o pedaço de vidro enterrado na sola do pé. Ergue-se, alta, a voz de Shahd: “Ó mundo, estás aí?”.
De entre os meus poemas preferidos, destaco aqueles que mais me sensibilizaram e que são:
“Casa Palestiniana” “Nunca Mais Vai Chover” “Nó” “Alucinações Sobre Flores Meio Ano Depois” “Chuva De Jasmim”
Assim como a autora, também eu acredito que um dia, na Palestina, “haverá chuva de jasmim.”
Não poderia ter sido melhor a minha estreia com a escrita de uma voz feminina palestiniana. Obrigada, Shahd Wadi.
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A par deste livro, sugiro a escuta do podcast “A Beleza das Pequenas Coisas” dos dias 14 e 15 deste mês.
Quando os verbos se desengonçaram à porta da conjugação. Quando as frases se entupiram no corpo em tradução. Quando os sons que não lhe pertenciam cortaram a respiração.
Quando lusas as vogais se reproduziram sem contraceção.
Quando os acentos pássaros. Quando a entoação habitou a desafinação. Quando as letras fugitivas eternas. Quando uma língua se tornou nunca. Quando o agarrar da caneta e o moldurar da boca fizeram acontecer palavra-ausência.
Tropecei nestes poemas por duas vezes e, embora tenha caído longe do meu planeta literário habitual, seria impossível levantar-me indiferente. Shahd Wadi entrelaça, nos seus versos, as duas terras dos cravos. A sua ânsia de resistir, existir e sonhar manifesta-se numa escrita colhida na pureza das pétalas de jasmim. Mas é também a prensagem da desumanidade da qual fazemos parte: da Palestina que, impedida de ser ela própria, é por hoje o restante do mundo.
Isto foi uma das melhores poesias que li. Ter a Shahd Wadi, palestiniana, a escrever poesia em português é de um espanto inquietante: conhecem-se bem as palavras que usa mas a realidade que as escreve é estranha ao - meu - português, o que torna cada palavra um nascimento - novo mas ligado por ancestralidade - a cá e a lá.
Leio estes poemas, escritos por uma mulher palestiniana que aprendeu a ler em árabe, mas que, a viver em Portugal, é na nossa língua que sonha e escreve. Sonha por algo, o reconhecimento da humanidade dos palestinianos, com frontalidade e muita ternura, numa língua que já é a sua.
Subitamente Respiro toda a morte, E morro-me morrendo devagar ao morrer do sol.