Em Lisboa, no fim dos anos 20, a rua do Mundo teve seu nome mudado para rua da Misericórdia. Esse fato urbano serviu de motivo para o poema que dá título ao livro, uma conversa emocionada com a poeta portuguesa Luiza Neto Jorge. Ao mesmo tempo, é o ponto de partida para as duas linhas complementares que dão a tônica de Rua do mundo: a rua como metáfora do mundo e a imagem do mundo como rua. Nessa ótica, as coisas cotidianas ganham densidade e valor poético, e ao mesmo tempo o que parece distante e impalpável ganha a proximidade das coisas que conhecemos e que nos reconhecem. Um elemento importante da poética de Eucanaã Ferraz é a claridade que perpassa todos os poemas. Mesmo na sombra, na tristeza e na morte é possível perceber a claridade do dia, das formas e dos sentidos, o clarão repentino dos desejos.
Eucanaã Ferraz nasceu no Rio de Janeiro, em 18 de maio de 1961. Publicou, entre outros, Desassombro (2002, Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Fundação Biblioteca Nacional), Rua do mundo (2004), Cinemateca (2008, Prêmio Jabuti), Sentimental (2012, Prêmio Portugal Telecom de Poesia), Escuta (2015), e, para o público infanto-juvenil Bicho de sete cabeças e outros seres fantásticos (2009) e Palhaço, macaco, passarinho (Prêmio Ofélia Fontes, pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, o Melhor Livro para a Criança). Organizou vários livros, entre eles, Letra só (2003) e O mundo não é chato (2005), ambos de Caetano Veloso; reuniu poemas e letras de canção na antologia Veneno antimonotonia (2005); após preparar a Poesia completa e prosa de Vinicius de Moraes (2004), passou a coordenar a edição das obras do poeta (Companhia das Letras). Publicou, na coleção Folha Explica, o volume sobre Vinicius de Moraes (2006).
É Professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e, desde 2010, atua como Consultor de literatura do Instituto Moreira Salles, onde elabora publicações, exposições, debates, cursos e espetáculos.
Um livro dedicado ao compasso: tanto aquele que sustenta a música, quanto aquele que mede o grau das coisas erguidas, seja homem, seja natureza. Eu, particularmente, penso na arquitetura de todas as coisas e seres mais pelo resultado das conexões que nos levam à morada do que pela lógica do resultado que nos faz pensar na morada como forma. Eucanaã vai se dedicando mais ao compasso, impregnando de forma bastante incisiva todas as pausas, mas se esquecendo quase sempre de algo que, para mim, é essencial: a música em si. Há poemas muito bons e bonitos, que cantaram ao meu ouvido e preencheram os vazios de minha esperança. Mas há muitos que, como uma parede fria de concreto, significam muito mais para quem das linhas vive em detrimento das sombras que projetam.
Como vestir a cidade? Como morar na roupa? "Rua do mundo", de Eucanãa Ferraz, é um livro de poesia urbana que tem a cidade como base da experiência e leitura poética, mas que transpassa a experiência urbana e ainda assim se mantém unida a ela por um fio de sentido. A poética de Eucanãa neste livro é maravilhiosa, me capturou em muitos dos poemas especialmente pelo jogo de palavras e ritmo entre elas, há certa musicalidade nos versos. É um livro que a um só tempo é de poemas e uma aula sobre as camadas que compõem o poema: silêncios, palavras, versos, ritmos, estranhamentos e deslocamentos. Eucanãa, não sei se foi essa a sua intenção, me parece que faz da sua experiência no mundo uma espécie de cidade na qual todos podemos habitar, tatear... a sua "Rua do mundo" que passou a se chamar de "Rua da misericórdia" era, diz o poeta, "uma rua qualquer, mas / a chuva sabia seu nome, bem como / os males irremediáveis, as ventanias, / os alvoroços de verão, os insetos.". Afundemos no poema, caiamos no mundo, no mesmo mundo sem fundos nenhums.