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206 pages, Paperback
First published November 5, 2014
MAS ANTES,
(julho de 2013)
ela saiu de casa batendo a porta. Mas antes, ele tinha mandado ela tomar no cu. Mas antes, ela tinha pedido que ele pelo menos limpasse a merda que fez. Mas antes, ele tinha derramado vinho no tapete. Mas antes, ela tinha duvidado de que ele derramaria o vinho todo no tapete. Mas antes, ele tinha dito que derramaria o vinho todo no tapete. Mas antes, ela tinha dito que não era culpa dela que ele não tinha um emprego. Mas antes, ele tinha dito que ela não precisava jogar na cara que ele não tinha dinheiro nem para comprar um tapete. Mas antes, ela tinha dito que a mãe dela merecia respeito, afinal de contas era ela quem tinha mobiliado o apartamento, do ventilador ao tapete. Mas antes, ele tinha dito que a mãe dela era uma vaca. Mas antes, a mãe dela tinha saído do apartamento batendo a porta. Mas antes, ele tinha pedido que a mãe dela saísse, de preferência sem bater a porta. Mas antes, a mãe dela tinha dito que ele estava mais gordo. Mas antes, ele tinha dito que a mãe dela estava mais velha. Mas antes, a mãe dela perguntou se ele tinha conseguido o emprego. Mas antes, ele disse que a mãe dela chegar de surpresa era só o que faltava. Mas antes, a mãe dela tinha chegado de surpresa. Mas antes, eles tinham se beijado e pedido desculpas e prometido que não iam brigar. Mas antes, ele perguntou por que é que nada que ele faz nunca está bom. Mas antes, ela tinha reclamado que ele não sabia nem abrir um vinho. Mas antes, ele tinha tentado abrir um vinho. Mas antes, ela tinha sugerido que ele abrisse o vinho. Mas antes, eles tinham se beijado. Mas antes, eles tinham deixado os filhos na casa da irmã dele. Mas antes, eles tinham dito que seria uma noite linda. Mas antes, eles tinham passado no supermercado e comprado o melhor vinho. Mas antes, ela tinha dito que tinha muito orgulho do marido que ele era. Mas antes, ele tinha chorado porque não era assim que ele se imaginava aos trinta e cinco. Mas antes, ele tinha sido recusado na entrevista de emprego. Mas antes, ela tinha dito que confiava cegamente nele. Mas antes, ele tinha dito que era só uma entrevista de emprego, e que nada estava certo ainda. Mas antes, eles tinham combinado de comemorar as duas coisas, o aniversário e o emprego novo. Mas antes, eles tinham acordado e percebido que, naquela noite, eles comemorariam sete anos juntos. Mas antes, eles tinham sido felizes. Isso antes.
*
A VIDA NO HOSPÍCIO
(setembro de 2013)
JORGE
Nada mais divertido que morar num hospício. Dá trabalho se fingir de louco. Mas vale a pena. O aluguel é de graça, a comida não é ruim e você ainda tem diversão vinte e quatro horas por dia. Melhor que TV a cabo. Tem um gordo que acha que é Napoleão. A parte engraçada é que ele é gordo. E tem dois metros de altura. E nem sabe direito quem foi Napoleão. Tem a Dona Valda, que acha que é dona disso aqui. Tem um louco, o Edmir, que acha que eu sou um armário e inventou que quer guardar coisas dentro de mim. Às vezes passa horas me perseguindo. É hilário. Outro dia tivemos um embate físico. Mas nada grave.
EDMIR
Eu devia ter feito veterinária, passava o dia cuidando de gatinho. Mas não. Passo o dia limpando cocô na parede e conversando com Napoleão. De todos os ramos da enfermagem, saúde mental é o mais ingrato. Sobretudo num hospício moderninho onde o paciente não usa camisa de força. Outro dia tomei um tabefe do Jorge, que não queria tomar o Haldol e saiu gritando: “Eu não sou seu armário!”. Pra piorar, a Dona Valda, que é a proprietária disso aqui, me obriga a tomar um remedinho. Ela diz que é bom pra eu sentir na pele o que os loucos sentem. Resultado: tremedeira, babação. Eu devia ter feito veterinária.
VALDA
Eu comecei isso aqui pra ganhar dinheiro. Mas acabei me apegando. Hoje em dia tem gente querendo comprar o terreno e fazer um estacionamento. Mas eu não vendo por nada nesse mundo. Os pacientes precisam de mim. O Edmir é um que eu tenho vontade de levar pra casa. Um amor de pessoa. De todos os loucos é o que tá aqui há mais tempo. E até hoje acha que é enfermeiro. Usa jaleco e tudo. Às vezes tenta empurrar um remédio goela abaixo dos outros e termina em briga. Não faz por mal. Mas o meu preferido mesmo é o nosso Napoleão de dois metros de altura. Um amor de pessoa. Ah, não vendo isso aqui por nada nesse mundo.
JAIME
Nunca aprovei a forma como a saúde mental era tratada no Brasil. Meu pai morreu num hospício, lobotomizado, no mesmo ano em que eu me formei em medicina. Me especializei em psiquiatria. Inventei meu próprio método. Aqui não tem lobotomia, eletrochoque nem camisa de força. Todo o mundo aqui é louco. E todo o mundo é médico. Me visto de Napoleão porque foi a fantasia que eu consegui alugar. Eu deveria ter pesquisado mais sobre o personagem. Se eu soubesse que ele media um metro e meio teria escolhido outra fantasia.
*
TRADUÇÃO SIMULTÂNEA
(março de 2014)
Sala de transmissão do Oscar. Um tradutor simultâneo tenta traduzir para o telespectador tudo o que acontece no palco.
ELE Billy Cristal: Boa noite, vocês são uma plateia mais bonita do que Mountain Rockwa… O ator fez um trocadilho, uma piada que faz referência ao fato de que há uma montanha homônima ao ator Rockward, bom, isso não tem tradução…
ELA A comediante Ellen De Generes retrucou dizendo: isso quer dizer que você não estava presente no Tonight Show no dia em que, bom o Tonight Show é um programa de John Stewart, isso foi uma piada mais voltada ao público americano, mesmo, que acompanha a programação televisiva, não cabe traduzir.
ELE Billy Cristal, novamente: obrigado Miley Cyrus, por nos… bem, ele está fazendo referência a uma celebridade local, é uma piada de atualidade, a atriz, famosa pelo papel de Hannah Montana, recentemente, bom, essa tem que acompanhar o noticiário americano pra entender. Não cabe aqui narrar, enfim. Steve Martin arremedou com uma piada referente à Miley Cyrus que eu perdi porque estava explicando a piada anterior da Miley Cyrus.
ELA E para apresentar o prêmio de Melhor Atriz, Whoopy Goldberg. O público aplaude intensamente. Com a palavra Whoopy Goldberg, que diz: hua-ha baby ooo, isso não tem tradução, é apenas isso mesmo que significa, uma série de onomatopeias. Acrescidas de um pouco de humor visual, uma piada imagética. Ou talvez seja a imitação de alguém que eu não conheço. O público ri, não sei exatamente por quê. Fica o mistério.
ELE Com a palavra Billy Crystal. Negros não gostam de, bom, eu não vou traduzir essa piada, em português ela fica parecendo racista, mas ela é calcada no fato, digo: no preconceito de que negros não teriam o hábito de, bom, acho que ele está falando dos negros americanos. Whoopy volta ao palco.
ELA Bom, Whoopy arremedou com alguma coisa que eu não entendi, acho que foi uma brincadeira com Billy, eles são amigos de longa data, foi uma piada interna. Billy responde com outro trocadilho, um chiste linguístico, intraduzível, baseado no fato de que duas palavras de significados opostos em inglês têm uma sonoridade parecida em inglês. Whoopy responde com: oh, no he didn’t. É uma piada de repetição, uma running gag, fazendo referência a uma piada anterior que eu não havia traduzido pois eu estava traduzindo uma outra piada que eu tampouco havia traduzido, assim como agora eu perdi alguma coisa que provavelmente foi uma piada pois o público está rindo. O público agora está aplaudindo, de tanto rir. Esse Oscar está se revelando especialmente divertido para quem está lá.
*
SE O PRÉDIO TIVESSE TRINTA ANDARES
(agosto de 2013)
Eu queria que esse prédio tivesse trinta andares. Ou de repente dois. Se tivesse trinta eu ia fazer amizade com todo o mundo que mora aqui. Se tivesse dois eu não ia falar é com ninguém. Mas se tivesse dois andares eles não iam precisar de ascensorista. Um elevador de dois andares não precisa nem de botão. Tinha que ter é trinta. Nove andares é que não dá. Quando o rapaz do 701 fala bom dia seu Zé, eu digo bom dia, como vai o senhor, e ele diz mais ou menos a minha hérnia voltou a atacar, e eu digo tem um remédio excelente pra hérnia, é só pegar um pouco de sálvia e colocar num potinho, pronto já chegou no sete. Ele diz me explica da próxima vez pra gente não prender o elevador, só que ele não vai lembrar de perguntar e nem eu vou lembrar de contar e mesmo que eu lembre não vai ter mais clima nenhum de falar de hérnia. A gente só quer falar de hérnia quando a gente tá com hérnia e olhe lá, uma vez minha esposa disse. Isso foi antes dela me largar. Ela disse que eu só falo coisa que não interessa a ninguém na hora que ninguém quer saber. Mas isso faz muito tempo. Ela não falava era com ninguém. Mas ela não mexia com elevador. Aí é fácil. Quando a gente mexe com elevador é diferente. A gente mexe com seres humanos. E acaba se envolvendo. Nove andares é o bastante pra ouvir um pouquinho da conversa da moça bonita que trabalha no 902 e saber que a patroa dela não gosta de batata corada, só de batata noisette, e quando eu pergunto como é que é uma batata noisette, ela diz é redondinha e crocante, e quando eu pergunto como é que faz batata noisette, já tá na altura do sexto andar e eu penso que não vai dar tempo dela explicar, e quando eu penso isso já tá no sete e ela diz é complicado não vai dar tempo de eu explicar, e aí eu digo bem que o prédio podia ter trinta andares só pra você me explicar, e ela diz Deus me livre, morro de medo de altura, mas se o prédio tivesse trinta andares eu ia dizer a gente pode até namorar, e ela ia dizer taí, isso não é uma má ideia, daí a gente ia parar o elevador e namorar ali mesmo. Se o prédio tivesse trinta andares. Só que não tem. E a porta já abriu há muito tempo e ela já foi embora e disse tchau seu Zé. E não fiz nem uma amizade daquelas de sair pra tomar uma cerveja depois do expediente. Ah, se esse prédio tivesse trinta andares. Mas não. Minha mulher é que tinha razão. Eu não vou mais falar é com ninguém.