História sem fim examina vitórias e percalços envolvidos na busca pelo controle da hanseníase (outrora conhecida como lepra). A partir da análise de materiais documentais, artigos científicos, e de mais de cinco anos de pesquisa etnográfica em ex-colônias hospitalares, em eventos nacionais e internacionais, em reuniões e entrevistas com ativistas, pesquisadores(as), profissionais de saúde e pacientes, a autora nos leva a explorar questões do passado e do presente referentes às políticas de controle dessa doença infecciosa. Mais do que isso, ela demonstra o caráter multitemporal dessas medidas, destacando como elas englobam aquilo que chamou de uma história bacilo-centrada. Nesta obra, somos convidadas(os) a acompanhar o exame de incertezas científicas e de categorizações do conhecimento, além de refletir sobre os instrumentos de medição que moldaram as campanhas de eliminação dessa doença como problema de saúde pública das últimas décadas. Este não é um livro sobre a história da hanseníase, mas se trata de uma obra que explora o enredamento entre materialidades, medidas, tecnologias, conhecimentos e categorizações que, juntos, performam aquilo que foi chamado de “mundo sem hanseníase”.
Abaixo, um pouco de uma resenha maior que fiz para uma disciplina de Antropologia da Ciência que pude ter o contato com essa obra incrível e até mesmo com a autora!! Com certeza uma ótima leitura pra quem quer se aventurar na Antro da Ciência!!!
A obra "História sem fim: Medidas, tecnologias e conhecimentos de um mundo sem hanseníase", da antropóloga Glaucia Maricato, é uma contribuição fundamental para a antropologia da ciência e da saúde, oferecendo uma análise profunda e multifacetada da persistência da hanseníase no Brasil e no mundo. Por meio de uma etnografia inovadora, crítica e multissituada, Maricato examina e questiona as medidas, tecnologias e conhecimentos que performam o projeto de um "mundo sem hanseníase" e a narrativa vitoriosa da sua eliminação.
Fruto de uma tese de doutorado premiada em 2021 com a 1ª edição do Prêmio de Tese de Doutorado em Antropologia da Saúde “Tabita Bentes dos Santos”, concedido pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), o livro é resultado de mais de cinco anos de pesquisa etnográfica
A estrutura do livro, dividida em introdução e cinco capítulos principais, é bem elaborada, com títulos que trazem curiosidade aos leitores. No primeiro capítulo, "Infraestruturas dobráveis: Entre jalecos e terninhos", a autora inicia o livro com uma análise etnográfica em ex-colônias hospitalares no Brasil, que hoje funcionam como unidades de saúde especializadas, em um movimento pendular entre o contemporâneo e as “políticas da lepra” ainda presentes. No segundo, "Recursos na saúde global: Instrumentos e protagonismos", o enfoque é nas dinâmicas da saúde global em hanseníase. O Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN) é enfatizado assim como outros atores, instrumentos, agendas e eventos no campo global da hanseníase. No terceiro, "Certezas em fuga: Efeitos resistentes de evidências mutáveis", são comparadas as concepções do século XIX/XX (lepra como altamente contagiosa, unicausal, com isolamento obrigatório) com as atuais (hanseníase de baixa contagiosidade, multifatorial, multigênica, com potencial zoonótico) e questionamento de algumas “certezas” do passado que continuam a moldar as definições e realidades do presente. No capítulo quatro, “Fábulas do fim: Entre hierarquias ontológicas”, a autora desvela as "fábulas do fim" da hanseníase, que são performadas pela biomedicina e pelas campanhas de eliminação, além de refletir sobre as políticas ontológicas de cura, em específico, através da poliquimioterapia (PQT). No quinto capítulo, "Políticas sob a pele: Do microscópico às estatísticas globais", a autora colocou o modelo biomédico da hanseníase sob a mesa de análise antropológica, dando enfoque aos diversos processos biomédicos que instituem a hanseníase. A autora discute sobre a PQT e seus efeitos que causaram durante as campanhas de eliminação global de hanseníase: de um lado um mundo sem hanseníase era enfatizado, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, era habitado por milhares de sujeitos que enfrentam complicações intensas e precisam continuar a frequentar os serviços de saúde.
Um dos aspectos mais interessantes da obra é o uso da metáfora das dobras, inspirada na noção de "objetos dobráveis" de Amade M’charek. Esta metáfora, empregada pela autora, permite explorar como os objetos e as realidades "performam o tempo", capturando a história e tornando-a presente no aqui e agora. Ao cunhar o conceito de "infraestruturas dobráveis", Maricato demonstra como as materialidades, como os antigos leprosários, não são meros resquícios do passado, mas estruturas que continuam a moldar as políticas de saúde e a vida dos afetados no presente. Essas "dobras" revelam como o tempo não flui linearmente, mas se amassa, fazendo com que pontos distantes se toquem, explicitando a persistência de antigas preocupações no cenário contemporâneo.
A obra de Maricato cumpre uma função de salientar uma realidade incômoda: a hanseníase, outrora referida como lepra, não é uma doença do passado no Brasil. Apesar de quase 150 anos desde a identificação do bacilo e dos avanços no tratamento com a PQT, persistem incertezas sobre sua transmissão e manejo de sequelas. O Brasil, alarmantemente, é o único país que ainda não conseguiu "eliminar" a hanseníase segundo as estatísticas da OMS, mantendo as maiores taxas da doença no mundo. A autora evidencia como a declaração de "eliminação global" nos anos 2000 gerou um desinteresse e cortes de financiamento para pesquisa e programas de busca ativa, resultando na perda progressiva de expertise médica e no subdiagnóstico de milhões de casos. Outro fato que chamou-me atenção foi que a pesquisa revela a potencial transmissão zoonótica da hanseníase, com a identificação do bacilo em animais como tatus, esquilos e chimpanzés, um aspecto pouco abordado pelas campanhas globais da OMS, e que é pouco divulgado e comentado.
Maricato explora as hierarquias ontológicas que subjazem à produção da verdade sobre a hanseníase, demonstrando como diferentes formas de existir e de produzir verdade convivem ou colidem num mesmo espaço institucional. Como pode a hanseníase ser considerada "curada" pela biomedicina se, mesmo após a eliminação do bacilo, os pacientes continuam a vivenciar reações dolorosas, sequelas permanentes e a questionar a própria noção de cura?
Em "História sem fim", Glaucia Maricato não apenas narra, mas tece uma análise crítica e envolvente, essencial para a compreensão das complexas interações entre ciência, política e experiência humana no campo da saúde. Evidencio que a escolha de uma etnografia multisituada, ou seja, que percorre por diversos "locais" de pesquisa como as ex-colônias hospitalares no Brasil, eventos nacionais e internacionais, reuniões com ativistas e pesquisadores, entrevistas com profissionais de saúde e pacientes e etc, permitiu trazer aos leitores uma compreensão que integre múltiplas realidades sobre a hanseníase, caracterizando uma leitura muito rica. A escrita da autora permite a aproximação dos leitores com a realidade da hanseníase no Brasil e gera diversas curiosidades sobre a temática que nos é respondida ao longo da obra. A autora tece um complexo enredamento de dimensões sociais, políticas, históricas e científicas no exercício da compreensão da hanseníase.
Ademais, a obra é um convite irrecusável à reflexão sobre as persistências e as resistências da hanseníase. A autora desafia narrativas de encerramento e reafirma a relevância contínua do olhar antropológico sobre as políticas da vida e da doença, em um contexto que, ironicamente, se insiste em chamar de "mundo sem hanseníase", mas que é, na verdade, uma história sem fim.