MENINAS E INSTITUIÇÕES (2021) é o retrato afectivo de uma geração de funcionárias na máquina estatal de Putin, uma realidade que Dária Serenko conheceu de perto e que aborda com ironia, raiva e humor: a miríade de tarefas absurdas, a inescapável burocracia, a misoginia e o assédio dos superiores, em bibliotecas, museus e noutras instituições do Estado, mas também a solidariedade e a empatia que unem estas mulheres.
DESEJO CINZAS À MINHA CASA (2023), que começou a ser escrito atrás das grades, narra a experiência da autora numa prisão russa, na véspera da invasão da Ucrânia, e converte-se numa reflexão sobre o horror da guerra, a instrumentalização da morte, a identidade e o exílio.
Dois textos que, em episódios, poemas e flashes do quotidiano, revelam, pelo olhar de uma mulher e activista, a Rússia de hoje: a crueldade enraizada numa ditadura, a perda de individualidade no sistema burocrático e a repressão dos detractores do regime.
Dária Serenko, não satisfeita com o mister da poesia que, já de si, fazia da sua autora uma rebelde sobre a qual o estado mantinha a vigilância (e a mira apontada), é também ativista política e performer, feminista, co-fundadora da Resistência Anti-Guerra e, em virtude disto, também refugiada na qualidade de "agente estrangeira" - o equivalente a ter uma sentença de morte pendente sobre a cabeça (e a história mostra-nos a seriedade desta apóstrofe). Dividida em duas partes, esta edição da Antígona da sua obra acompanha dois momentos-chave da criação artística e ativista de Dária. Escritos muito recentemente, os dois textos complementam-se no retrato que fazem da sua autora e da sua causa. Meninas e instituições, ocupa-se da tomada de consciência da autora para a realidade política do seu país. Desejo cinzas à minha casa, por sua vez, ocupa-se da sua tomada de ação e do seu posicionamento político perante a escalada de violência dos últimos três anos.
No tempo em que trabalhámos juntas, nunca conseguimos determinar se estávamos ou não sob escuta. Meio ano antes, tinham instalado uma pequena câmara no escritório. Todos os meses aparecia um indivíduo silencioso, sem traços que pudessem ser memorizados, mexia em alguma coisa na câmara e saía sem responder a qualquer pergunta. A câmara tornou-se mais uma das nossas meninas: tratávamo-la como se fosse um ser vivo, mas era uma colega pouco agradável, na presença da qual era melhor não tocar em alguns assuntos.
Inicialmente empregada pela máquina estatal, primeiro numa biblioteca e depois numa galeria de arte estatal, Dária toma consciência do absurdo a que se sujeitam aqueles que ficam para viver num sistema opressivo. Limitadas pela burocracia e subjugadas pela vigilância, as "meninas" organizam-se de modo a sobreviver num sistema que apaga a identidade individual em prol da unidade social:
Era raro as meninas serem identificadas em separado. As pessoas, claro, podiam lembrar-se de quem era a Natália ou de quem era a Dária, mas não faziam a menor ideia daquilo que nos distinguia umas das outras. No pico do trabalho, às vezes nem nós sabíamos dizer a quem pertencia tal mão ou tal perna. Havia alturas em que tínhamos a impressão de que o estômago também se tornara comum, por isso cada uma de nós começou a trazer comida que se coadunava com o que as outras meninas comiam. Era vantajoso. Substituíamo-nos umas às outras nos encontros e nas reuniões, falávamos com os chefes com as mesmas vozes neutras que não alcançavam os ouvidos deles, escutávamos educadamente os visitantes irritados que ora prometiam derrubar o regime vigente, ora sacar nesse instante uma metralhadora dos seus cestos de maçãs e fuzilar-nos a todas à queima-roupa.
Assediadas, menosprezadas e ignoradas por uma hierarquia paternalista, as funcionárias (as mulheres) podem escolher um de dois caminhos: submissão ou revolta. Para Dária a escolha foi óbvia.
Qualquer emprego se transforma num emprego para a ordem vigente, porque a ordem já está derramada pelo ar, interiorizada pela respiração e pelos batimentos cardíacos, segregada conjuntamente pelas nossas lágrimas e suor.
Meninas e instituições nasce da sua participação e da sua cisão com o poder vigente. Em 2019, pouco antes da invasão da Ucrânia, a participação de Dária em protestos anti-guerra levará ao seu efetivo afastamento da função pública.
(...) numa instituição, enviaram para o departamento denúncias anónimas contra mim; noutra, o sindicato difundiu entre os funcionários um vídeo sobre mim - estou em casa, a tomar um copo de vinho, e praguejo comicamente como exemplo de conduta indevida (tive, inclusive, de proferir um pedido de desculpas público na assembleia geral); na terceira, fui repreendida devido a uma fotografia em sutiã; na quarta e na quinta, fui expulsa por activismo e participação nos protestos de 2019.
Não muito depois, em 2022, numa sessão de autógrafos, Dária Serenko é presa numa cena muito típica dos modelos fascistas:
(...) dois indivíduos irromperam pelo café um minuto depois de eu ter autografado um exemplar do meu livro Meninas e Instituições para o meu amigo Piotr. A dedicatória dizia: «A Rússia será livre e nós estaremos cá para festejar esse dia.» Empacotaram-me com o livro. Ao que parece, a Rússia não será livre nos próximos quinze dias.
Desejo cinzas à minha casa, iniciado nos quinze dias de prisão da autora, é um documento sentido, nascido da dor de estar do lado errado da história e de amar uma pátria que escolhe ferir; do medo de ver apagar os crimes de um possível vencedor, do medo dessa vitória e do mundo depois dela:
Depois do jantar, pensei que deveria haver sempre o maior número possível de testemunhos, porque poucos textos chegarão ao futuro. Aqui, a questão não se prende com reconhecimento, mas com o facto de cada texto sobre o terror ser uma flecha disparada, fina e frágil, que na maioria dos casos erra o alvo ou é interceptada em pleno voo. Poucos textos acertam no alvo, poucos textos chegarão a mãos alheias - isso é sempre uma questão de sorte e da cadeia de circunstâncias. As nossas tentativas são uma aposta para aumentar as probabilidades de todos.
Cru e simultaneamente poético, este segundo texto é um grito de compaixão de uma mulher russa por um mundo que se afoga na violência e oblitera os valores pelos quais tantos homens e mulheres se sacrificaram. Visceral na forma como expõe as contradições do patriotismo, resulta num documento profundamente humano:
as bandeiras em chamas drapejando lentamente; as únicas bandeiras que aceito são as tricolores em chamas a transformar-se em cinzas: desejo cinzas à minha casa.
oh, como eu desejo cinzas à minha casa.
Daria Serenko tem apenas 32 anos, e numa altura em que o ativismo anda nas bocas do mundo, é mais uma daquelas mulheres corajosas que impera conhecer e reconhecer. A coragem de enfrentar não só um sistema opressivo, mas toda uma cultura moldada pela intransigência perante a diferença e o desrespeito pelo outro, fazem de Dária uma ativista-artista verdadeiramente única.
(..) temos os olhos da violência, as suas feições, a sua respiração, a sua expressão facial. Fundimo-nos com ela para a travar. Convertemo-nos nela para lhe fazer frente. Somos compatriotas na violência.