«DE ONDE SAEM, OU COMO SE FORMAM OS SERES HUMANOS QUE VOAM?» Sem Otelo, aquele 25 de Abril de 1974 não teria existido. Ele foi o fermento que transformou a água e a farinha em pão. Sem Otelo, teríamos farinha, água e sal, mas não teríamos pão. Otelo foi e é a figura histórica que fez de um golpe de Estado uma revolução, que transformou em pão um biscoito ázimo, sem levedura, sem alma: uma heresia que o 25 de Novembro de 1975 excomungou.
Otelo foi o herege que, através da liberdade e da não‑repressão, permitiu que o poder popular desmontasse a falácia segundo a qual não há alternativa ao mercado para a vida em sociedade, nem à ordem de batalha dos partidos políticos para viver em democracia.
Trazer Otelo ao espaço público seria sempre uma heresia, maior ainda num tempo do politicamente correto, de fim da história. Otelo agiu há 50 anos como Zaratustra aconselhou, relativamente à destreza com que se deve manejar o martelo e à força para quebrar os ídolos. Para uns, Otelo não terá sido muito destro, nem terá utilizado muita força; para outros, terá sido excessivo. Deixou o essencial: a certeza de a violência ser inerente tanto à liberdade quanto ao exercício do poder. Escolheu o direito à violência pela liberdade de contestar o poder.
“Otelo e Che Guevara podiam ser ambos personagens de Cervantes e de Dom Quixote, tipos que não foram como deviam ser para exemplo dos vindouros, mas que foram como foram e que nunca pediram que os admirassem. Nem que os compreendessem, julgo. São anti-heróis. Vencidos.”
Carlos de Matos Gomes parte desta ideia e faz dela uma chave para reler não só Otelo Saraiva de Carvalho, mas a própria memória do PREC. O livro é menos uma biografia e mais uma travessia pelas múltiplas camadas de uma revolução que o tempo e a propaganda quiseram simplificar.
Entre as páginas, percebe-se que a história de Portugal do pós-25 de Abril nunca foi uma narrativa linear. Já antes da revolução, Henry Kissinger olhava para o país com atenção estratégica: o exercício Alcora, as conversas discretas com Marcello Caetano, os almoços pós-revolução com Spínola e Costa Gomes sobre o “excesso de influência” do PCP — tudo mostra como Portugal foi palco de um xadrez internacional mais intricado do que o que os manuais escolares deixam entrever.
Mas Matos Gomes lembra-nos sobretudo os esquecidos. A história foi injusta com os que estiveram onde deviam estar: Otelo, Salgueiro Maia — e tantos outros. Enquanto ex-pides se reintegraram serenamente, estes homens tornaram-se fantasmas. Desapareceram da paisagem cívica, como se o país os tivesse usado e depois varrido da memória.
O autor desmonta também o mito do COPCON e do PREC como período “pró-ditadura de esquerda”. Foi sob a chefia de Otelo que se autorizaram as manifestações da Fonte Luminosa e as eleições para a Assembleia Constituinte — ambas pacíficas. O tal “ano anárquico” coexistia com a normalidade de sempre: santos populares, campeonato de futebol, Semana Santa em Braga. E, ironicamente, ainda antes de 25 de Novembro, a própria URSS confirmava em Helsínquia que Portugal continuava no bloco da NATO.
Há também justiça feita a Ramalho Eanes, que conseguiu conter muitos “moderados” pouco democráticos — quando, a 27 de Novembro, Costa Gomes queria literalmente bombardear Tancos para “acabar com o MFA”.
No fim, o retrato que fica é o de um desalinhado. Um homem que acreditava que a revolução devia servir o povo, e que se perdeu no caldeirão contraditório do PREC. Mas Otelo cumpriu a sua missão: liderou o COPCON sem violência gratuita, com uma ética revolucionária rara.
“Otelo, o Herético” não tenta canonizar ninguém. Faz algo mais difícil — restitui complexidade a quem foi reduzido a caricatura. E, no processo, obriga-nos a olhar para a Revolução de Abril sem o conforto da lenda.