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176 pages, Paperback
First published February 10, 2014
Pero los estímulos desasosegantes de un cuerpo con imperfecciones evidentes se diluyeron cuando ella misma terminó por desprenderse del sujetador, en cuyo cierre mis dedos habían forcejeado con heroísmo paralímpico.
Minha proposta era um parque para adultos. Um espaço externo urbano, simples e realista. Com bancos de leitura em que alguém pudesse parar para descansar durante alguns minutos roubados do trabalho. A principal novidade era que ele continha um bosque de ampulhetas, de escala humana, que ao serem viradas davam ao usuário um tempo de abstração.
Podia servir como aviso e como meio para quantificar o tempo, mas também como meio de evasão. É disso que gosto nas ampulhetas: elas reformulam a ideia de ansiedade ante a passagem do tempo, transformando esse processo inevitável em algo visual.
Eu estava sentado no balcão, meus dedos roçavam a bandeja verde de plástico em que o pedido pousava enquanto um cozinheiro atarefado o embalsamava em papel-alumínio. Senti o celular vibrando no bolso. Não tenho nenhum toque designado para ligações ou mensagens que chegam. Campainhas me incomodam, o modo como começam a tocar de repente. Nem campainha de porta eu toco; quando possível, dou apenas umas batidinhas.
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Estávamos competindo na categoria Perspectivas de Futuro, o que, em alemão — Zukunftsperspektiven — soava bem menos vazio e com mais estrutura metálica.
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Marta ria de mim, achava graça até do meu trabalho, jardineiro, dizia ela. A risada de Marta era uma recompensa. Mas ultimamente Marta ria menos comigo, e também transávamos menos. Meu amigo Carlos me dizia isso é normal, para todos os efeitos vocês estão casados, convivem há mais de quatro anos já, e quem é casado transa pouco. Não se transa toda hora com a pessoa com quem você convive dessa forma, assim como não se lava do mesmo jeito a xícara de café que só você usa todas as manhãs.
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Helga mudava de seu idioma para o inglês com uma fluidez muito natural ao nos apresentar para o diretor do congresso, um alemão meio excêntrico, com os óculos pendurados por uma cordinha e levemente corcunda, parecendo um vilão do cinema expressionista.
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A mensagem de Marta era dirigida a seu antigo namorado. Tinham voltado a se ver alguns meses antes e a relação renasceu sem que eu suspeitasse de nada. Na semana anterior à viagem a Munique, o novo disco dele nas prateleiras da Fnac me chamara atenção por um segundo. Na hora, nunca teria imaginado que sua música voltaria a ressoar em minha vida de maneira tão retumbante. Sempre tive ciúmes retrospectivos daquele sujeito, ciúmes de quem esteve com Marta antes que eu a conhecesse, assim como sentia ciúmes de seu primeiro amor, um colega de turma na escola de balé. O único bailarino heterossexual de toda Madri acaba justamente na sua turma, eu dizia, fingindo me indignar com esse enorme acaso, e ela rua de minha estupidez. Não me consideraria alguém ciumento e desconfiado, e sim um amante feliz que detestava os anos perdidos antes de encontrar a amada, os anos em que outros gozavam de sua proximidade e eu ainda não sabia de sua existência.
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Quando saímos para a rua, Marta continuava chorando, mas caminhar sem ter o outro à frente tornou a conversa mais fácil. Sempre gostei, nos filmes do iraniano Abbas Kiarostami, daquelas longas conversas nos carros, com planos do caminho ou da estrada através do vidro, porque as viagens, com essa disposição dos falantes — não frente a frente, e sim ambos voltados para o caminho adiante — são propícias para confissões sinceras. Meu amigo Carlos não gostava dos filmes iranianos, fazia piada deles e tinha-os transformado num gênero à parte. Não se coloque num plano de filme iraniano, brincava. Marta concedia, às vezes são chatos mesmo, mas compreendia meu gosto por aqueles filmes, por seu tempo lento, trabalhoso, morto até. Inúmeras vezes expliquei a ela que a agitação era apenas uma forma de preencher o verdadeiro vazio.
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O mediador do evento repreendeu minha atitude com palavras duras, que em alemão soavam como uma britadeira.
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Deve ter sido muito bonita quando jovem, e esse pensamento me pareceu insultante. Bonita quando jovem é uma expressão infeliz, um professor de faculdade me corrigiu uma vez, numa conversa informal. Quando se é jovem se é jovem, a beleza anda em paralelo. Ou deveria andar em paralelo, explicou.
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Quando consegui baixar seu vestido, deparei-me com a calcinha de alguém que não havia se preparado conscientemente para aquele exercício de desnudamento. Mas os estímulos inquietantes de um corpo com evidentes imperfeições se desfizeram quando ela finalmente desatou o próprio sutiã, cujo fecho meus dedos haviam forçado com um heroísmo paraolímpico. Surgiram dois seios brancos e livres, como frutas tiradas da árvore.
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Nas estantes havia vários livros de arte, bem ordenados demais por não serem usados. Também havia romances com as lombadas arqueadas. Quase tudo em alemão, salvo uns volumes de Goya e Velázquez cujo lado acariciei com cumplicidade patriótica.
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Caminhei até o hotel e recuperei minha mala sob o olhar suspeito do recepcionista. Olhar que se converteu em advertência incômoda quando me viu tentar abrir a porta da sala de negócios, onde pretendia checar meus e-mails e talvez navegar na internet até encontrar uma passagem barata de avião. É só para clientes, disse, num inglês estrangeiro como o meu, mas cuja solidariedade havia sido perdida em troca de um paletó azul e um crachazinho com seu nome. Senti-me expulso do paraíso que o hotel representava. Meus planos se mostraram catastróficos quando me vi na rua, com a mala de rodinhas, o telefone sem bateria, totalmente desorientado. Não podia nem mais pedir que guardassem novamente minha bagagem por algumas horas. Um ciclista quase me atropelou quando sem querer invadi a faixa exclusiva, mas me brindou com um insulto tão bem-dito em alemão que dava vontade de ter gravado.
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Às vezes olhava uma foto da esplanada em frente ao Palácio Real que havia feito com meu celular durante um fim de tarde, antes de sair de Madri. A luz era alaranjada e recortava o edifício, fazendo com que parecesse ter sido inserido numa montagem. Tentava me sentir parte, tentava sentir uma nostalgia particular. Mas Madri versus Barcelona acabou sendo uma discussão indiferente para mim, um jogo de rivalidade extrema num esporte que não me interessava nem um pouco.
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Achava curioso que, tanto em espanhol quanto em alemão, a expressão usada para ampulhetas — reloj de arena e Sanduhr — fizesse referência ao conteúdo, ao material interno. Por outro lado, a palavra em inglês fala do recipiente, o vidro transparente. Hourglass poderia ser traduzido por hora de vidro, uma expressão fascinante. Para os italianos e para os gregos continua valendo a expressão clepsidra, que remonta aos relógios d’água. Em uma enciclopédia encontrei a primeira representação de uma ampulheta, datada da metade do século XIV, num afresco de Ambrogio Lorenzetti. Uma rainha imaculada com sua coroa sustenta com a mão uma ampulheta, exemplo da virtude da moderação. Reunia esses dados em minha cabeça para associá-los de algum jeito numa apresentação comercial, algo tão degradante quanto festejar a chuva porque ela lavaria o carro.
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Fui passar uns dias em Madri durante as festas de fim de ano. Na noite de Natal ceei com Carlos e Sonia e conheci a filha recém-adotada do casal. Tinha cinco anos e era muito ativa e rebelde, embora ambos os adjetivos, que seus pais usaram para descrevê-la, soassem como eufemismos diante da realidade. Quebrava os objetos mais variados da casa, chorava aos berros quando repreendida e só se acalmava na frente da tevê. […] Era maltratada no orfanato, uma psicóloga havia explicado a eles, e eles, por sua vez, se viram obrigados a explicar o mesmo a mim. Claro, e agora ela iria maltratá-los de volta, pensei, miseravelmente, presenciando a desagradável atitude ditatorial da menina e sua violência incontrolável. Nunca vi pessoas tão agradecidas pela invenção do sedativo que é a televisão como aqueles pais.
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A sombra de Marta continuava a me perseguir, e num dia das festas de fim de ano, na Fnac de Callao, eu a vira de longe com seu namorado cantor uruguaio e tive certeza de que estava grávida. Carlos disse que era uma obsessão minha, mas eu notei em seu modo de andar um gesto de proteção. Fugi dali sem cumprimentá-los, o que me fez sentir como um estudante que foge da prova porque não se preparou bem.
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Saí bastante bêbado do almoço e fui caminhando sem rumo pela cidade até chegar às ramblas. Gosto das ramblas, apesar da presença massiva de turistas. Um dia, alguém estava se queixando do grande afluxo de turistas no mercado da Boqueria e levou uma bronca de um vendedor de frutas. Por mim todos os nativos de Barcelona podem ir tomar no cu, assim só ficam os turistas, que são quem realmente deixa dinheiro e gasta aqui. Achei essa análise interessante, ajudou-me a nunca olhar para os turistas com desprezo.