Esta narrativa de João de Melo é uma crónica dos prodígios que fazem a história de uma comunidade rural perdida algures nos Açores. Narrativa mítica, sem cronologia, que começa in illo tempore (em português arcaizante) e prossegue seguindo o fio das ocorrências fantásticas (a chuva dos noventa e nove dias, o dia em que os animais choraram, o dia em que se viu a outra face do sol, a morte e ressurreição de João Lázaro) e das vidas de personagens excessivos e arquetípicos (um padre venal, um regedor hercúleo e despótico, um curandeiro e um santo) que povoam um lugar perdido nas brumas do tempo, no outro lado da ilha, progressivamente devolvido à comunicação com o mundo.
Nasceu na ilha de São Miguel (Açores) em 1949, onde completou a instrução primária, após o que prosseguiu os seus estudos no continente. Em 1967 passou a residir e a trabalhar em Lisboa. Depois de participar na guerra colonial em Angola entre 1971 e 1974 (tema de duas das suas obras mais significativas, a antologia “Os Anos da Guerra” e o romance “Autópsia de Um Mar de Ruínas”), trabalhou na vida sindical, foi editor de autores portugueses e crítico literário. Frequentou a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pela qual veio a licenciar-se em 1981 com o curso de Filologia Românica. Professor dos ensinos secundário e superior durante vários anos, foi convidado pelo governo português para o cargo de conselheiro cultural junto da embaixada de Portugal em Espanha (que desempenhou durante 9 anos, entre 2001 e 2010). Em 2003, em Madrid, criou a “Mostra Portuguesa” (de que realizou 7 edições), sendo o maior evento cultural português fora de fronteiras. Tem traduzidos para espanhol os seguintes livros da sua autoria: “Gente feliz con lágrimas”, “Antología del cuento portugués” (Alfaguara), “Cronica del principio y del agua y otros relatos”, “Mi mundo no es de este reino”, “Mar de Madrid” e “Autopsia de un mar de ruinas” (Linteo Ediciones).
É um vício, confesso, talvez dos piores. Quando estou em viagem, quer por férias quer por outros motivos, invento sempre tempo para ir perscrutar as livrarias da zona, em busca de literatura local. Foi assim que dei por mim perante as estantes da simpática livraria SolMar, em Ponta Delgada, folheando as propostas de autores açoreanos disponibilizadas.
Os lisboetas que eventualmente lerem este texto já estão a sorrir, bem sei, para nós Solmar é o nome de uma cervejaria clássica das Portas de Santo Antão, hoje em ruínas.
Folhear as páginas deste romance deixou-me intrigado, prometia ser um voo de realismo mágico sobre a paisagem e gentes açoreanas. Arrisquei a sua leitura, e mergulhei num imaginário ao mesmo tempo luminoso e negro, um retrato com recortes de memória pessoal e etnográfica cruzado com uma certa visão de fantástico, temperado por sentimentos de isolamento geográfico no meio da paisagem do nordeste da ilha de S. Miguel.
A linearidade do tempo desfaz-se ao longo deste livro, a narrativa segue, deliberada, por caminhos cronológicos convolutos. As ações não se sucedem em ordem cronológica, embora estejam interdependentes. Sabemos, por muitas pistas deixadas no livro, que estamos em pleno século XX, algures entre os anos 20 e 60, mas isso não nos é clarificado. E talvez nem importe a clarificação, deixa-nos com um sentimento de imutabilidade temporal misturada com a inexorável evolução dos tempos, porque no isolamento ilhéu, o tempo escorre de forma diferente.
Este romance leva-nos à fictícia aldeia do Rozário, que simboliza os povoados rústicos encavalitados nas fajãs rodeadas de falésias vulcânicas do nordeste da ilha de S. Miguel. Terras de vida difícil e pobreza endémica, de luta diária pela sobrevivência desde a sua fundação, refém dos humores do mar, da tempestade e do vulcão.
Conhecemos a terra pelo olhar de alguns personagens cuja intervenção será decisiva para o povoado. Notem, por decisiva não interpretem positiva, grande parte do romance fala da crueldade humana, da cupidez e ganância. O romance prometia ser de realismo mágico, e é-o, mas não é uma fantasia luminosa. Pelo contrário, é uma meditação negra sobre a alma humana.
O romance é determinado pelas ações de personagens chave. Temos o padre da terra, que chega a um local que mal se pode considerar aldeia, com igreja arruinada, e consegue reerguer o edifício enquanto espalha a palavra de deus aos ilhéus isolados. Mas, com o tempo, este padre torna-se criatura amarga, dogmática, alicerçando a fé através do medo e da acusação, e sendo sempre conivente com as personalidades mais asquerosas da terra. Um padre que prega o amor aos pobres, enquanto favorece os ricos.
E não há mais rico na terra do que o regedor, nomeado pelo padre nos tempos em que a aldeola mal se poderia considerar freguesia. Homem violento e avarento, faz largo uso do seu poder para enriquecimento pessoal, tratando com brutalidade todos os que se lhe atravessam à frente. Brutalidade que se estende à sua mulher, criatura apagada e escanzelada que sofre, todas as noites, as sevícias de um brutamontes que se compraz em provocar a desgraça alheia.
A população é servida por um curandeiro, homem de muita filosofia que aprendeu o seu mester a tratar das vacas e das cabras. Rodeado de amuletos, procura sempre novas mezinhas que aliviem os males dos habitantes, e correm rumores que a mera invocação do seu nome provoca curas. Será desafiado por alguém que lhe mostra que as suas mistelas e terapias são sintomas de obscurantismo.
O eixo narrativo move-se em redor da interação destes três personagens com os restantes aldeãos, raramente de forma positiva. Isso fica bem claro no envolvimento de um grupo de personagens, uma família que o regedor consegue espoliar das suas terras, cujo pai de família jura vingança, mas acabará por viver uma quase morte em vida. Tudo é contrabalançado por um estranho personagem, viandante das canadas, talvez profeta e curandeiro, que morre e ressuscita. E ao regressar da morte, traz consigo a promessa do futuro, de novas ideias e da emancipação dos oprimidos face aos opressores.
A violência idílica da geografia transmite-se às relações de poder, aos desmandos daqueles que usam a religião e a lei para oprimir. Mas o tempo vai passando, a terra cresce, os homens saem e regressam, o progresso vai-se fazendo sentir, lento, mas inexorável. E, no meio de tudo, há mistérios e prodígios, mortos que visitam os vivos, aldeões analfabetos que oram em latim perfeito, animais que choram, estranhas neblinas, eclipes e pestilências, superstições moldadas por uma natureza amoral e violenta, que os dogmas religiosos não conseguem debelar.
Saí da livraria com um livro riquíssimo, poético e implacável. Transporta-nos a uns Açores idealizados, onde a nostalgia pelas gentes e paisagens se cruza com uma visão negra do que o isolamento permite aos homens de mau coração.
Estes gajos tem meia dúzia de obras portuguesas. Não li este mas li "Gente feliz com lágrimas" do mesmo autor. Um livro para Portugueses conhecerem melhor um Portugal que já está pelas costas.
A book that describes the life of a poor community in S. Miguel Island, Azores. An intense picture about the different relationships between people, the dictatorship of the forces, the authority and the power of silence.