O circuito dos afetos gostaria de fornecer a filosofia necessária para uma teoria política da transformação. Transformações políticas efetivas não são apenas modificações nos modelos de circulação de bens e de distribuição de riquezas. São modificações na estrutura dos sujeitos, em seus modos de determinação, nos regimes de suas economias psíquicas e nas dinâmicas de seus vínculos sociais. Pois uma transformação política não muda apenas o circuito dos bens. Modifica também o circuito dos afetos que produzem corpos políticos, individuais e coletivos. Por isto, se quisermos ver a força de transformação de acontecimentos que começam novamente a se fazer sentir, é necessário que deixemos afetar pelo que pode instaurar novas corporeidades e formas de ser.
O indivíduo que não luta para ser reconhecido fora do grupo familiar não atingirá uma personalidade. Essa ideia, transmitida por Hegel, acompanhou minha leitura de “O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo” como indicativo da ambivalência entre proteção e destruição nos laços sociais. A família é o sucedâneo do seio, e este, por sua vez, simboliza a proteção que foi perdida ou abandonada no desmame. Os primeiros laços afetivos surgem desses primeiros cuidados que um ser humano recebeu e caracterizam-se pela tensão entre dependência e independência. Daí o enigma do Outro, com maiúscula na grafia lacaniana: o que esse Outro, tão próximo e tão distante quer ou espera de mim? É esse laço incontornável que Vladimir Safatle analisa a partir da expressão circuito dos afetos, tomando O Processo de Kafka como metáfora para essa relação. Ao abrir os livros da lei, o personagem K. descobre que a arbitrariedade e a impessoalidade estão associadas, que a lei não está dirigida a ele. A disposição de humor do Outro não está ordenada, mas, como os acontecimentos, é exterioridade, independente de nossa vontade. Isso não nos impedirá de buscar um fio condutor, no só-depois, onde situar o desejo do Outro. Nesse sentido, podemos comparar o desejo a uma regressão ao infinito em busca de um motor primeiro, mas o que se encontra é um fundo inexistente. A partir da concepção lacaniana de Supereu como empuxo ao gozo, Safatle faz uma pertinente análise da insatisfação como mercadoria. A manipulação das formas do ser pela publicidade age como um espelho identificatório até na forma minimalista do slogan “just be”, que cria a ilusão de que cada um de nós poderá ser reconhecido em seu ser, conformando e confirmando o circuito dos afetos.
Incrível como uma série de coincidências me fez levar quase três anos pra terminar este livro (que, em si, não é grande a ponto de justificar uma demora dessas). O tempo que levei pra concluir (e as releituras que tive que fazer por causa disso) me fez gradualmente apreciar mais e mais este que é, talvez, um dos melhores livros do Safatle.
O objetivo de sua investigação é até fácil de delimitar: reconstruir a relação entre afetos e corporificação na política por meio de um afeto central e portador de negatividade ontológica - o desamparo. Mas o caminho trilhado para essa reconstrução é longo, denso, amplo, muito interessante, e não tenho a menor pretensão de resumi-lo. Várias das linhas de outros trabalhos anteriores a este convergiram-se num ponto só (e inclusive, ler o que Safatle lançou antes deste livro ajuda a apreciá-lo ainda mais), e diversos outros caminhos se abriram.
O Controle de Corpos Essa é uma obra que trata de diversos temas, dialoga com autores de formação distinta e, talvez por isso, pressuponha um leitor com um mínimo de domínio de conceitos básicos de filosofia, política e psicanálise. Isso, por um lado, torna a leitura difícil (foi difícil para mim), e, por outro, altamente recompensadora para aqueles que nela perseveram. A obra parte da postulação, e isso é dito logo na introdução, de que "... sociedades são, em seu nível mais fundamental, circuitos de afetos (...) compreender sociedades como circuitos de afetos implicaria partir dos modos de gestão social do medo, partir de sua produção e circulação enquanto estratégia fundamental de aquiescência à norma". Saflate expõe suas ideias sobre o tema numa escrita fluente, apresentando de forma clara as principais postulações dos autores com os quais dialoga (George Bataille, Georges Canguilhem, Jacques Lacan, dentre outros). O texto é extensivamente motivado e articula diversos autores, referidos com cuidado (as fontes bibliográficas são escrupulosamente indicadas) e submetidos à análise crítica do Autor. A obra procura encaminhar uma crítica à sociedade capitalista (ao mundo imaginado pelo capital/pelos capitalistas) e postula que um outro mundo é possível. Para tanto, vale-se de diversas metáforas para a descrição da sociedade, sendo aquela que refere ao organismo vivo uma das mais frutíferas. Leitura valiosa para todos aqueles que se interessam por filosofia política e por acompanhar as reflexões de Saflate.
Safatle nos explica de que maneira as sociedades podem ser interpretadas como circuitos de afetos que reproduzem as formas hegemônicas de vida. Entrelaçando filosofia política e sociologia dos afetos, o autor explica a coesão e as transformações sociais vinculadas aos afetos e o impacto que esses processos têm sobre a determinação das formas de vida.
A vida como a conhecemos, com conflitos, sofrimentos e desejos é uma produção do circuito de afetos e partindo dessa premissa Safatle discorre sobre os modos de gestão social do medo, trazendo uma reflexão que tira o medo da base intransponível – para a aquiescência às normas – e coloca o desamparo como afeto central, pois o desamparo pode ser tudo, inclusive medo.
Um livro incrível, com leitura fluida, muitos insights sobre outras disciplinas e essencialmente atual (especialmente no tratamento que o autor dá à relação de corporeidade e política).