Há um escritor. E uma família onde vive a sua memória. Morreu. E o pai, a mãe, o irmão, a avó lembram o seu sorriso e a saudade. Mas numa família nem tudo é o que parece. E neste romance doméstico, existirão surpresas mesmo quando todos fazemos, todos os dias, os mesmos gestos.
Jorge Reis-Sá nasceu em 1977 em Vila Nova de Famalicão. Frequentou, entre 1994 e 2000, os cursos de Astronomia e Biologia na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e estagiou no Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto onde estudou genética populacional, interrompendo a formação académica para se tornar editor.
Editou seis livros de poemas, os últimos dos quais Biologia do Homem, Livro de Estimação e Vou para Casa e cinco de narrativa, entre os quais a memória Por Ser Preciso, vencedor do Prémio Manuel Maria Barbosa du Bocage desse mesmo ano, o romance Todos os Dias, os contos Terra e o divertimento O Dom. Organizou diversas antologias, entre as quais Anos 90 e Agora - Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa e colabora frequentemente com a imprensa.
"Todos os Dias" caiu como uma luva, num momento em que eu estava pensando e sentindo várias das coisas expressas aqui. Leitura de uma sentada só, uma vez que desde cedo fica claro que há mistérios a serem revelados, pelo tom da narrativa, pelo jeito como fatos são encobertos e postergados. Impressiona muito como retrato da mente de um escritor, mesmo que ausente: o Augusto, filho morto desta família central. Todos os detalhes de sua vivência, dados a partir de outras vozes, são belos e precisos nesse retrato. Sobraram António e Justina, o irmão Fernando, e o espírito da vó Cidinha, os quatro narradores oficiais da trama. O delineamento dessas personalidades e o modo como a prosa se modifica minimamente de uma para a outra traz uma força de luto coletivo, de narrativa épica a essa trama que, em tese, descreve apenas um dia na vida dessa família. Toca em mim, sobretudo, o ressentimento de Fernando, o filho mais novo que teve de crescer à sombra do mais simpático, mais divertido e mais brilhante Augusto (a mãe Justina, em algum momento, se culpa por gostar que a morte de Augusto represente, de algum modo, a vitória do filho que sobrevive). Vindo na corrente de "Boyhood" do Coetzee, e com a memória ainda fresca da estrutura similar usada em "Desesterro" da Smanioto, me parece que "Todos os Dias" encontra um lugar ideal entre a descrição e a melancolia, um sentimento que é tudo menos descritivo. Duas surpresas incríveis ao final, onde vários fios da prosa se reúnem finalmente, garantem uma sensação de inédito neste livraço.
Um trecho memorável:
"E conheço as badaladas com que a igreja chama os seus mortos para os enterrar no cemitério. Conheço-as porque me diziam - Foi sicrano, foi beltrano quem morreu. e eu ouvia. Ouvia o sino e a minha mãe repetindo os nomes de quem partira ao meu pai sempre que na freguesia existia um corpo a menos para encher, aos domingos, a igreja. E as badaladas com que enterrei o meu filho. O passo apressado com que o meu António foi à casa do padre, dizendo-lhe - Morreu, senhor padre Horácio, o meu filho Augusto morreu. ou o passo já mais sereno, já mais habituado, com que se deslocou quando lhe foi dizer - Morreu, senhor padre Horácio, a senhora minha mãe morreu. e o padre, intuindo as palavras, chamando o sacristão. E eu vejo os braços do sacristão, os seus braços fortes pelos anos de manejo das cordas, a tocarem com força o sino. Duas badaladas e duas carreiras quando é mulher. Assim quando morreu a Cidinha, quando o António a matou à entrada da casa do padre dizendo - Morreu, senhor padre Horácio, a senhora minha mãe morreu. mais vezes quando o fez pelo meu filho Augusto. Quando é homem tocam três badaladas e três carreiras para dizer que partiu quem dava sustento à casa. E o Augusto dava à casa o sustento de que ela, na altura, parecia não precisar. Só quando faltou, como acontece sempre, é que se notou a importância das coisas que pareciam tão insignificantes: um sorriso, o arrastar sereno do roupão pelo corredor, outro sorriso, os papéis que trazia sempre com ele, como fazendo com ele um corpo só: a companhia que nos oferecia sem exigir nada em troca. Mas não foi pelas vezes que ouvi o sino, enquanto o meu filho jazia na cama com a sua pele já fria, que o senti mais alto. Foi pela dor lancinante quando tocou para mim. Não era sicrano ou beltrano quem morrera, como dizia a minha mãe. Era o meu filho. E, se para as outras pessoas era apenas uma morte a mais, para mim era a única. A única morte que me poderia um dia fazer entender o sino como se fosse uma fala antiga que me entrou quando nasci."
Não minto, custou-me a ler. Um livro que escreve sobre uma família e os dias de todos os dias. Que carrega a vida depois da perda de alguém querido, as várias fases do luto; carrega a espera pela morte, carrega a vida que se deixa nos que estão vivos e a saudade. Doloroso, e tão belo.