«O Caderno de Memórias Coloniais relata a história de uma menina a caminho da adolescência, que viveu essa fase da vida no período tumultuoso do final do Império colonial português. O cenário é a cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo, espaço no qual se movem as duas personagens em luta: pai e filha.» Isabela Figueiredo, in «Palavras prévias»
«Nenhum livro restitui, melhor do que este, a verdade nua e brutal do colonialismo português em Moçambique. Até porque, como a autora refere, ele aparece envolvido pelo mito da sua mansuetude - sobretudo quando comparado, como era sempre, com o apartheid sul-africano. Mito tão interiorizado pelos próprios colonos que através dele, como por uma lente, percepcionavam a realidade de que constituíam um elemento decisivo - como considerar-se a si mesmos violentos e prepotentes no tratamento que davam aos negros? A verdade escondia-se sob a boa consciência necessária à regularidade quotidiana da vida «paradisíaca» dos brancos. Para a desenterrar era preciso ir procura-la nas sensações infinitamente vibráteis e virgens de uma menina, filha de colonos, que vivia à flor da pele o sentido mais profundo de tudo o que acontecia.» José Gil, in «Sobre Caderno de Memórias Coloniais»
Isabela Figueiredo nasceu em Lourenço Marques, Moçambique, hoje Maputo, em 1963. Após a independência de Moçambique, em 1975, rumou a Portugal, incorporando o contingente de retornados. Foi jornalista no Diário de Notícias e é professora de Português. Estudou Línguas e Literaturas Lusófonas, Sociologia das Religiões e Questões de Género. Publicou os seus primeiros textos no extinto suplemento DN Jovem, do Diário de Notícias, em 1983. É autora de Conto É Como Quem Diz (Odivelas: Europress, 1988), novela que recebeu o primeiro prémio da Mostra Portuguesa de Artes e Ideias, em 1988, e de Caderno de Memórias Coloniais, cuja primeira edição data de 2009. Escreve regularmente no blogue Novo Mundo. Desenvolve workshops de escrita criativa e participa em seminários e conferências sobre as suas principais áreas de interesse: estratégias de poder, de exclusão/inclusão, colonialismo dos territórios, géneros, corpo, culturas e espécies.
Para muitas pessoas, a vida em África, nas antigas colónias portuguesas, no pré 25 de Abril, terá sido um idílio e deixou-lhes uma marca profunda no sangue e uma vontade de lá voltarem um dia.
Este testemunho revela que não foi tudo um mar de rosas, principalmente para os negros colonizados. Mostra um lado do colonialismo que muitos nunca terão aceitado e que até negarão ter existido, mas que também aconteceu.
“Moçambique é essa imagem parada da menina ao sol, com as tranças louras impecavelmente penteadas, perante a criança negra empoeirada, quase nua, esfomeada, num silêncio em que nenhum sabe o que dizer, mirando-se do mesmo lado e dos lados opostos da justiça, do bem e do mal, da sobrevivência.”
Um retrato autobiográfico, onde a autora relata as suas vivências num país que não tem a sua cor e que um dia, sem contemplações, a devolveu a Portugal. Conhecemos os seus tempos idos em Moçambique, onde a figura do pai, muito presente neste livro, se destaca, como homem e colono branco. Não é um livro só sobre colonialismo,fala-nos também sobre o racismo visto aos olhos vivos de uma criança e da sua voz, muitas vezes quieta, sumida ou silenciada. Excelente leitura!
Foi uma leitura desgastante, mas não a trocaria por outra. Admiro ainda mais a autora que já conhecia da obra A gorda. Admiro a sua frontalidade, a sua valentia e a sua vontade de contar a verdade, a sua verdade, mas que acaba por ser a verdade de muitos outros. Tenho consciência de que deve ter sido horrível a luta que travou consigo mesma quando iniciou este projeto que escancara as portas da sua vida e dos seus familiares a quem queira entrar nelas. Por isso, como leitora, tenho apenas que lhe agradecer (e muito), pois nunca soube de perto como terá sido a fuga de uma colónia, muitas vezes apenas com a roupa do corpo e pouco mais, e lendo o seu Caderno consegui compreendê-lo melhor, aprender e crescer como pessoa. Obrigada mesmo, Isabela! Caderno de Memórias Coloniais foi reeditado pela Editorial Caminho em 2015 e merece que o leiam, pois não se vão arrepender! Eu recomendo-o vivamente!
NOTA – 09/10 (na minha opinião, os 5 posts que compõem a segunda parte da obra são dispensáveis, pois pouco ou nada têm a ver com a temática colonial…)
Duro, cru, honesto - tão honesto. De leitura obrigatória para afincar a empatia e compreender um pouco mais um passado tão recente. “Uma vida tem várias vidas”.
"Sentia-me uma pessoa. Sentia-me uma mulher. A sua alma-gémea. Ninguém me resgatou, me quebrou, me deu vida só por existir, só por estar ali, sorrir-me, dar-me valor. Dar-me a mão. Pegar em mim. Escutar-me. Só ele a quem traí." Pág. 124
Dou os meus mais profundos parabéns à coragem de Isabela em transpor e partilhar este caderno de memórias.
Este livro lê-se com fúria, com revolta, com vergonha, da verdade nua e brutal do colonialismo português em Moçambique.
Este livro veio confirmar o que eu há muito depreendia dos discursos de pessoas que lá tinham vivido e que, não obstante, não assimilavam o quão racistas eram (são).
Este livro veio comprovar que as minhas suspeitas sempre estiveram certas na repugnância que sentia ao ouvir a verdade nas mentiras.
Este livro é muito mais do que eu alguma vez poderei dizer sobre ele.
E é de uma autora portuguesa; que orgulho escrever assim!
"Moçambique é essa imagem parada da menina ao sol, com as traças louras impecavelmente penteadas, perante a criança negra empoeirada, quase nua, esfomeada, num silêncio em que nenhum sabe o que dizer, mirando-se do mesmo lado e dos lados opostos da justiça, do bem e do mal, da sobrevivência." pág. 214
É intenso, é cru, é um apelidar as coisas pelo que são, sem subterfúgios, sem contemplações, sem o politicamente correcto.
Provavelmente não será do agrado de muitos, provavelmente será um exorcizar de memórias de outros, mas com toda a certeza será uma obra impactante, com a sua escrita muito própria, que não deixará ninguém indiferente.
"Nesse momento houve um vácuo de tempo em que não fomos pessoas, não tivemos culpas nem prazeres; nada humano – só nós; senti ao longe o odor da sua carne transpirada, ácida e doce, que era a minha vida, dos seus ombros e rosto, um abraço que não pudemos desapertar nunca; e ainda não, e em nenhum lugar, nunca, porque não era apenas um abraço, mas a aliança invisível, muda, que mantínhamos, à qual fui fiel mesmo quando traí." Pág. 164
Filha de um colonizador, Isabela nasceu em Moçambique em 1963 e lá viveu até 1970 quando se mudou para Portugal por conta do processo de descolonização. O livro me surpreendeu demais por ter me dado conta de como a história (escrita pelos brancos) que nos é trazida chega sempre distorcida e do quanto temos que ter um filtro ao receber as informações. A impressão que tenho é que praticamente tudo que estudamos na escola é pura balela, temos acesso apenas a uma versão dos fatos, não existe a voz do oprimido. E quanta diferença entre a descolonização de Moçambique e o nosso processo de libertação! Fiquei muito curiosa em conhecer a situação social, política e econômica da atual Moçambique e outros países africanos que passaram pelo mesmo processo, especialmente o lugar ocupado pelos negros. Se alguém quiser indicar alguma coisa, agradeço.
Histórico de leitura 11/09/2018
"Os desterrados são pessoas que não puderam regressar ao local onde nasceram, que com eles cortaram os vínculos legais, não os afetivos. São indesejados nas terras onde nasceram, porque a sua presença traz más recordações. Na terra onde nasci seria a filha do colono. Pesaria em mim essa mancha. Mas a terra onde nasci existe em mim como uma nódoa de caju, impossível de disfarçar."
"A História era a dos reinados anteriores a Gungunhana, essa etnia e as outras, que eram muitas. E das guerras que travavam. Os bantus, os shona, os do Monomotapa. Os nguni, depois os zulus. (Com a expulsão dos colonizadores, em Moçambique, passaram a estudar nas escolas seu passado, sua História!."
"O olhar dos negros nunca foi, para os colonos, inocente: olhar um branco, de frente, era provocação; baixar os olhos, admissão de culpa. Se um negro corria, tinha acabado de roubar; se caminhava devagar, procurava o que roubar."
"Disse alto, com voz forte e jovial, muito perto da minha cabeça: -Olá! Era um olá grande, impositivo, ao qual me seria impossível não responder."
O colonialismo português permanece, ainda hoje, como tema pouco abordado. Trata-se de um período recente da nossa história, estando ainda vivos muitos dos que nasceram nas ex-colónias e que foram forçados a regressar.
Quando eu era uma miúda lembro-me de ouvir falar nos "retornados", às vezes de forma um pouco depreciativa. E lembro-me também de alguns "retornados", primos mais ou menos afastados, que pontualmente se mostravam saudosistas relativamente ao tempo passado em África.
Na escola, nos anos 80, o programa de história nunca chegava ao 25 de Abril. Foi muito mais tarde, já adulta, que procurei saber mais sobre esse período. Por esse motivo, tenho lido alguns livros que me têm mostrado as diferentes perspectivas. Em nenhuma delas a imagem do colonizador é favorável.
Isabela Figueiredo nasceu em 1963, em Lourenço Marques, actual Maputo, e em 1975 veio para a metrópole. Este livro conta as suas memórias de infância e adolescência.
De uma forma muito honesta, directa, crua e bastante visual, a autora relata a sua vida em Moçambique e descreve o ambiente que a rodeava. A superioridade do branco colonizador sobre o preto preguiçoso e que precisava de quem o obrigasse a trabalhar, os abusos sexuais e morais, a caridadezinha. Também o machismo da sociedade da época, em que as mulheres não tinham voz e apenas existiam para servir o marido. Isabela, recorda tudo o que viveu e sentiu como criança que era, não contaminada pelos preconceitos, muitas vezes sem perceber o porquê das diferenças e da separação que existia entre as raças. É particularmente interessante a forma como a autora integra o amor e a admiração que tinha pelo seu pai, com a noção que, já tinha nessa época, do racismo e machismo deste. Como adorar o seu pai e pensar pela sua própria cabeça?
É possível que este livro não agrade a todos. As memórias de quem lá viveu não serão todas iguais. As memórias de Isabela captam também o lado do colonizado e não apenas o lado do colonizador.
"Moçambique é essa imagem parada da menina ao sol, com as tranças louras impecavelmente penteadas, perante a criança negra empoeirada, quase nua, esfomeada, num silêncio em que nenhum sabe o que dizer, mirando-se do mesmo lado e dos lados opostos da justiça, do bem e do mal, da sobrevivência."
Que excelente leitura! Tão bem escrito, tão duro, tão cru! Isabela Figueiredo põe-se a nu e põe a nu tanto do que é a história recente do nosso país! A brutalidade da colonização está tão bem descrita neste seu caderno! É um livrinho pequenino mas muito enriquecedor! Recomendo!
Isabela Figueiredo nasceu um ano depois de mim e saiu de Moçambique um ano antes de mim, por isso suponho que a sua memória colonial e a sua relação com essas memórias da infância, são qualquer coisa que me é familiar, com que me posso relacionar. Há um aspecto do livro, contudo, em que não me revejo, que é numa identificação que a autora faz entre essa memória colonial e a figura paterna.
O que mais gostei no livro foi do modo desabrido como a autora se refere à situação que se vivia no Moçambique colonial, sobretudo ao nível da mentalidade do colono. A autora é muito crua ao falar nos assuntos, no racismo, no estilo de vida dos brancos, nas suas aspirações, e, depois, no confronto entre os retornados e os seus familiares da ‘metrópole’. Faz bem confrontarmo-nos que todo um conjunto de problemas que foram comuns a muita gente, e que, na maior parte dos casos, foram resolvidos na intimidade das famílias um pouco à maneira do don’t ask don’t tell, assuntos que se resolveram (em muitos casos mal) por si, sem serem confrontados.
Também gostei muito do facto de o texto do livro, sendo autobiográfico, e apesar do nível de intimidade que por vezes é exposta, nunca ser de carácter confessional, nunca é um desabafo. É sempre um texto mediado pela distância literária, é, se quisermos, uma memória tratada com distanciamento literário, e isso é bom porque nos obriga a ser mais exigentes e racionais, mesmo quando a tendência de identificação com aquilo que é relatado, é maior.
Por tudo isto o livro soube-me a ajuste de contas, à necessidade de confrontar problemas que trazemos, uma herança interior, e, se não resolvê-la, pelo menos dar-lhe uma forma, torná-la um objecto exterior, para o qual possamos olhar com um mínimo de frieza, e até crueza, quando não mesmo crueldade.
Isabela Figueiredo escreve em "Caderno de Memórias Coloniais" (2009) com uma frontalidade rara. O capítulo 14, onde recorda a bofetada dada a uma colega mulata na infância, é talvez o momento mais brutal e simbólico do livro: um gesto premeditado, consciente, que encarna o colonialismo em miniatura: um corpo branco contra um corpo mulato, um ato de violência sustentado pela certeza da impunidade.
A força do livro está no estilo depurado, direto, sem ornamentos. Cada frase é um murro, cada memória uma ferida exposta. Isabela não se refugia na desculpa nem na metáfora: escreve contra si mesma, como expiação. O resultado é uma literatura ao mesmo tempo bruta e bela, onde a violência íntima se confunde com a violência de um país.
Después de dos libros empezados y dejados por aburrimiento, este libro consiguió engancharme en la historia hasta llegar a la última página en dos sentadas.
Conocí el título por el grupo de lectura alrededor del mundo, lo vi en la biblioteca y lo cogí, imaginándome que esta lectura me transmitiría el recuerdo nostálgico de una niña por su pasado colonial.
La primera palabra del libro, la primera página me sacaron completamente de mi error. Estas memorias son una crítica implacable, descarnada, provocativa (a veces sin venir a cuento) y todos los adjetivos que queramos ponerle sobre los colonos portugueses de Mozambique, encarnados en la figura de su padre, a quien la autora quiere pero sin privarse de contarnos sus miserias. Personalmente me genera un poco de malestar cuando alguien destapa en público las intimidades de un familiar… Y aquí la hija se despacha a gusto.
Con el devenir de las escenas vemos el final, interesantísimo, de la vida de unos portugueses que se aferraban a un estilo de vida del que se creían plenamente merecedores. La niña que era la autora de entonces hilvana recuerdos con opiniones que a mí me parece que son de ella como adulta, todo ello escrito con una prosa claramente literaria, que a mí me ha llevado a una grata lectura corta de domingo. Y también ha suscitado mi interés por conocer más sobre la colonización portuguesa en esta tierra africana.
São as memórias da autora do tempo em que morava em Maputo quando Moçambique ainda era colônia de Portugal e da relação que ela constrói entre Portugal, a então Metrópole, e seu pai, sem romantismo algum. Excelente.
Livro escolhido para um grupo de leitura online em cuja reunião final tivemos o prazer de contar com a presença da autora que nos elucidou sobre algumas questões colocadas pelos participantes.
São memórias da autora que nasceu em Moçambique, Lourenço Marques, actual Maputo, e que, após alguns confrontos e tumultos marcantes, é enviada pelos pais em 1975 para Lisboa, para casa de sua avó paterna.
O antes e o depois da descolonização sobre os olhos de alguém que viveu enquanto criança em Maputo e "retornou" a Portugal passando por toda uma oposição social aos retornados, que a excluiam e a marcaram também. Estrangeira em Portugal, foi isso que sentiu aquando do seu crescimento cá.
Escrita crua, visual e marcante. Uma crítica aguçada ao colonialismo com os seus aspectos negativos e racistas. Um despojar de recordações, uma catarse dos seus sentimentos para com a sua família, um amor/ódio face ao pai, já falecido.
Gostei bastante da leitura mas as suas "memórias" divergem um pouco das minhas que nasci em Angola. Esse tempo significou para mim, que nasci no mesmo ano da autora, um tempo de liberdade e de muitas amizades que ficaram para a vida. Senti que para a autora esse foi um período de uma certa prisão, talvez imposta pela própria família.
Sábado, 13 de janeiro de 2024 Tudo apontava para não ir: o frio, a chuva, o atravessar a ponte, o depósito da gasolina que precisava de atenção, o cartão multibanco que ficou em casa, o volta para trás e acima de tudo o sentido de dever por cumprir que invalidava disponibilidade para lazer. Fui.
E foi o melhor que fiz.
A conversa entre @isabelafigueiredo_____ e a @os_livros_da_lena na @bibliotecasmunicipaisdeloures valeu cada quilómetro percorrido.
Quando regressei a casa voltei com Isabela no meu pensamento. Trouxe a sua voz comigo, que me inebriou em todas as suas partilhas, pautadas pela transparência e sinceridade. Precisei de continuar aquela conversa e nada melhor que isso do que pegar nas suas memórias.
Desengane-se aquele que pensar que ler Caderno de Memórias Coloniais é uma compilação de pontuadas recordações cinzentas de um tempo longínquo. Estas memórias têm cor: são brancas, são negras, têm a cor do ódio e do amor, são vermelhas como a cor da terra, são memórias vivas e de contraste.
Vivi ao lado da Isabela durante todo o tempo de leitura. Consegui sentir todas as suas questões, curiosidades, experiências, sensações. A sua escrita já me tinha conquistado em “Um cão no meio do caminho” e sem desmerecer a minha incrível professora de português, senti que gostaria de ter sido sua aluna.
Lourenço Marques foi o palco principal das memórias partilhadas. A cidade é só por si uma personagem, de vibração única vivida de tantas formas diferentes por tantas personagens que por lá passaram. O roteiro é diferente para cada uma delas. O roteiro de Isabela enviou-a para longe, mas a sua alma , como a própria afirmou, um dia regressará.
Maputo também me soa familiar, não porque tenha lá ido mas porque parte de mim também lá viveu, porém num tempo que é o de hoje e que não ouso comparar.
Recomendo tanto esta leitura! Ficou em mim e atrevo-me a dizer que deveria ser leitura obrigatória nas escolas. Enquanto aluna senti que este e tantos outros períodos da nossa história são ensinados de forma supérflua. Aprendemos mais com as experiência vividas do que memorização de espaço, tempo, nomes. Em Caderno de Memórias Coloniais vivemos noutro espaço/tempo.
Os negros não usavam nada que os apertasse, a não ser o trabalho do branco."
Neste livro encontramos um conjunto de crónicas onde Isabela Figueiredo recorda os tempos em que viveu em Moçambique. Mostra-nos a inocência de ser criança, mostra-nos Lourenço Marques visto pelos olhos de uma criança branca, que vê muitas situações que não percebe, e que tinha medo do poder do pai, mas que não deixou que as ideias colonialistas do pai a contaminasse.
Nestas memórias, conhecemos o bom Manjacaze, o porteiro do prédio onde Isabela vivia com a família e que a "ajudou a acreditar na espécie humana, nos que apesar de humilhados na hierarquia, mantinham a dignidade sobre todas as coisas".
Ao domingo à tarde, os negros eram felizes com o seu vinho de caju. "Ao domingo à tarde, os negros não eram negros, eram nada; eram como os patrões brancos, felizes, e podiam rir e foder, cantar, cair e dormir. Aos domingos à tarde os negros eram quase brancos entre si. E tudo acabava à segunda, antes do raiar do sol."
Isabela gostava de subir pelo limoeiro velho para fugir à mãe, para falar sozinha, para brincar com os gatos e imaginar mundos novos, um outro mundo. Fala-nos numa crónica da tarde, em que a caminho de Lourenço Marques, descobriu que sabia ler e de como essas palavras misteriosas a "desenfeitiçaram", tornando-a mais livre. "Foi quando, devagar, comecei a tornar-me a pior inimiga do meu pai. A inimiga lá dentro, calada. Que vê e escuta e nem pediu autorização. Foi quando comecei a tornar-me a toupeira."
"As pessoas não mudam. Um branco que viveu o colonialismo será um branco que viveu o colonialismo até ao dia da morte. E toda a minha verdade é para eles uma traição. Uma afronta à memória do meu pai, mas com a memória do meu pai podemos bem os dois."
"Um desterrado como eu é também uma estátua de culpa. E a culpa, a culpa que deixamos crescer e enrolar-se por dentro de nós como uma trepadeira incolor, ata-nos ao silêncio, à solidão, ao insolúvel desterro."
Impossível parar a leitura deste livro comecei ontem à noite e acabei de madrugada, e comecei logo a seguir a ter terminado o Retorno. Angola vs Moçambique Ficção vs diário. Mas ambos escritos por quem viveu na pele o deixar tudo. Mas este livro não precisa de comparações É o 3º livro que leio da autora e novamente demolidor, a ressaca já surge na angústia que sinto, da coragem da escrita, na coragem do tema, li a edição da Caminho que percebo que tem 2 prefácios extra às primeiras edições. Um da própria Isabela , de como o livro foi recebido e o outro da Pauline Chiziane. Ajudou a compreender, mas nada ao fim destes anos todos me preparou para o que li. Acho que A gorda me ajudou a perceber muita coisa e muito deste livro me fez perceber coisas n' A gorda. A escrita é muito boa, mas a riqueza do livro está na coragem, na frontalidade, na própria simplicidade e sem dúvida no tema que aborda. As ex-colónias, o deixar tudo para trás, o choque, o recomeço, o testemunho, o sobreviver, a mágoa e as memórias. As memórias que se vão diluindo, transformando, umas ganham imprinting, outras ficam perdidas, os cheiros, as passadas, o calor e o frio, aquilo que nos fica colado na pele.
Um caderno de memórias da infância da autora, nascida em Moçambique em 1963, onde viveu até 1975 e continua com o relato do seu regresso à metrópole como retornada. Um livro que se lê de enfiada, com capítulos quase todos pequeníssimos, e que nos coloca na cabeça de uma criança que, como ela própria diz, antes de ser branca, rica ou pobre, era de carne e estava na terra. É um relato polémico (porque contraria o saudosismo) sobre a vida nas colónias antes e depois da independência, o papel do homem e da mulher numa sociedade colonialista, patriarcal, em que o homem branco está habituado a tratar os outros com prepotência, como seres que precisam de ser educados, civilizados. O livro é como uma carta de amor da filha ao seu pai, que personifica aqui o homem branco daquele tempo, racista e também violento, mas que era na verdade uma alma gémea desta filha resistente e autónoma.
El nacionalismo portugués tiene tendencia al lloriqueo y el victimismo. Lo que tuvo que ser este libro cuando salió allí en 2009 debió de tener un gran impacto social (tipo "Soldados de Salamina" o la biografía de Franco de Paul Preston, por hablar de trapos sucios españoles//lo que describe este libro es muy franquista para entendernos). He marcado varias partes.
Empieza fuertecito, no os asustéis. Las negras tenían el coño grande, a mí padre le gustaba follar, las negras se permitían gemir y relajarse, las blancas follaban por obligación, a ningún blanco le gustaba que le sirviera otro blanco si para eso hay negros que te llaman "patrón", si un negro corría era porque acababa de robar algo, etc. Habrá otras maneras de contarlo pero se expresa de maravilla, y si el contenido es duro, pues la forma no me va a ofender.
Sigo empalmando lecturas sobre procesos descolonizadores en plena Guerra Fría. Lo del Imperio Portugués fue buena chapuza también. Leí sobre Angola "Un día más con vida" de Kapuscinski sobre la que se monta cuando se van los blancos. Como gatos dentro de un saco madre de dios. Este librito de aquí es la historia de una niña blanca portuguesa y la relación con su padre, buen hombre y colono estándar pero en Mozambique. Y la que se lía. Y el bullying al volver a Portugal, donde la autora nunca había vivido, como "retornada".
Estoy tumbado y no llego al libro, pero quisiera transcribir algunas partes. No sé, pillároslo u os lo dejo. Me parece muy recondable, conciso, y un interesante ejercicio a nivel de estilo y moralidad por parte de la autora al exponerse así. Brava señora Figueiredo.
Pd: nada que ver con lo que cuenta Isabela, pero estoy pensando en la chapuza del Sahara Occidental.
Cru, direto, sem "paninhos quentes". O colonialismo foi o que foi, não é a versão heróica que nos contam na escola e trouxe mais vítimas do que aquelas que os manuais escolares descrevem. A vida tal como ela é! E dizer a verdade só é uma traição para quem tem algo a esconder...
4,5 Gostei genericamente do livro. Sobre o retorno, na primeira pessoa, assunto que me interessa, mas de que sei pouco. A impressão que transmite é a de ser um relato profundamente autêntico, sem eufemismos e sem pudores. Isso pode chocar ou pode agradar. Pela minha parte, agrada-me. Há um ou outro pequeno capítulo que achei supérfluo, mas genericamente gostei imenso do cru relato ali contido.
«A minha terra havia de ser uma história, uma língua, um corpo enterrado na esperança, uma ideia miscigenada de qualquer coisa de cultura e memória, um não pertencer a nada nem a ninguém por muito tempo, e ao mesmo tempo poder ser tudo, e de todos […].».
«Ou se era colono ou se era colonizado, não se podia ser qualquer coisa de transição, sem um preço, a loucura no horizonte.».
foram várias as vezes que ouvi falar dos livros da Isabela Figueiredo. no entanto, era sempre o «caderno de memórias coloniais» que despertava a minha atenção. talvez pela maioria das opiniões referirem as mesmas coisas: coragem, frontalidade, o tipo de escrita não tão habitual numa mulher e os temas abordados pela mesma. considerados proibidos quase.
na feira do livro de 2024 optei por não entrar num consumismo desenfreado e comprei 3 livros que já procurava há muito. no último fim de semana visitei-a com o meu pai, que me ofereceu 3 livros. as escolhas tinham de ser certeiras. tinham de assentar nesse chamamento. um deles acabou por ser o caderno de memórias coloniais.
a vontade de o ler foi crescendo e certa noite senti um ímpeto incontrolável para pegar nele. na manhã seguinte decidi terminá-lo. não deu para parar.
se há algo que se aprende com histórias de carochinha é que estas têm sempre algo de confortável para nos aquecer o coração. senti este livro como se me tirassem uma venda dos olhos. o colonialismo português é ensinado como uma epopeia grandiosa, cheio de descobertas e boas intenções. nós fomos os aventureiros, os fofinhos! como assim imaginar uma realidade em que não cabe esta história da carochinha?
isabela não se reprime e expõe as suas memórias de infância passadas em maputo (antiga lourenço marques) como elas realmente foram. não há qualquer tentativa de suavizar a podridão da realidade. não há uma nostalgia doce, não há desculpas para o racismo e violência que sustentavam os comportamentos e a vivência nas colónias. a sua escrita foi tudo o que me prometeram: visceral, brutal e direta, sem papas na língua.
e o país “de brandos costumes”? nem foi capaz de aceitar as pessoas que tiveram de deixar tudo e regressar a uma pátria que os julgava e olhava com desconfiança.
ler sobre o nosso feio passado é desconfortável. mas, honestamente? é o tipo de desconforto de que precisamos.
Há tempos tinha lido "A gorda", da autora. Li com satisfação, mais do que com prazer. Gostei. Gostei da forma desabrida de escrever, gostei daquele personagem feminino tão forte. Voltei agora a Isabela Figueiredo porque me interessava o contexto moçambicano. Desta vez gostei menos. Há uma ideologização do discurso desta menina, uma visão obviamente construída e reconstruída a posteriori, com outras experiências, conhecimentos e pontos de vista, que não me atraiu. Posso imaginar as reacções extremadas, contra e a favor, de quem viveu e regressou de Moçambique. Entendo a importância atribuída ao livro em vários contextos. Para mim, que leio porque não posso estar sem ler, que não tenho nem procuro nenhuma agenda, não me impressionou. Percebi, terminada a leitura, que o livro terá sido o resultado de posts autónomos, escritos ao longo do tempo, no blogue da autora, e isso explicará muita coisa. Gosto da frescura da linguagem feminista, irreverente e irredenta da autora, e isso tem muito valor.
Amei a descrição de Lourenço Marques nas memórias coloniais da Isabela. Como ex morador de Luanda, essas memórias me tocaram profundamente e me deixaram com uma saudades absurda de Angola. Infelizmente, nas minhas andanças por África, não pude ir até Maputo. Mas estou ainda com mais vontade de ir buscar a cidade de Isabela e sentir os cheiros, aromas, sabores e ouvir o cantar da língua portuguesa na fala de seus conterrâneos! Salve Moçambique! Salve África!
No sé por dónde empezar. Este libro me ha afectado de formas que no esperaba. Tras años viviendo en África, nunca había encontrado una obra tan honesta sobre la colonización, el racismo y la independencia. Isabela Figueiredo desnuda la crudeza del pasado colonial portugués sin concesiones, y su relato golpea al lector con una sinceridad brutal que desarma y conmueve.
“Nos habíamos quedado hasta el final. Mi padre creía que se trastocaría la situación en una África blanca en la cual los negros se asimilarían, usarían calzado, irían a la escuela y trabajarían.
Los negros debían sonreírnos, siempre, y agradecer lo que habíamos hecho por su tierra, quiero decir, por nuestra tierra, y servirnos, evidentemente, porque eran negros, y nosotros blancos, y ese era el orden natural de las cosas.”
Esta é a história da pequena Isabela e do colonialismo entretanto desaparecido. Trata de relações de gênero, racismo e do nacionalismo. Memórias de um tempo recente. Não me surpreendeu, mas de tão profundamente honesto pode chocar. Sem filtro e sem rodeios. Direto ao âmago.
"Precisamos de tempo para compreender. Para matar. Para poder olhá-los de novo na cara com o mesmo amor. Para perdoar. "
Isabela escreve sem desperdício. Tudo dito e em poucas palavras. E é extraordinário. E muito corajoso. Obrigatório ler.
Coragem. São várias as palavras que me assaltam ao longo da leitura deste “Caderno de Memórias Coloniais”, mas nenhuma parece impor-se com tanta força, com tanta intensidade, como esta: Coragem. Coragem, pela partilha de histórias e memórias que, explicitamente e sem rodeios, desmontam o discurso colonialista reinante e a sua inaceitável visão unilateral. Coragem, pela forma como, sem pudor e sem mágoa, mergulha no seu mais íntimo, dele extraindo consciência, transparência e verdade. Coragem, pelo saber ser e resistir na descoberta de si e do seu mundo, aproximando-se e distanciando-se da figura paterna para melhor destrinçar o que é amor e o que é ódio.
Levada pelo curso da História a viver os estertores do colonialismo português, Isabela Figueiredo “regressa” à Lourenço Marques das décadas de 60 e 70 do século passado. Olha a sua cidade natal e vê nela um “largo campo de concentração com odor a caril”. Não percebe o porquê de não poder andar descalça na rua, de a proibirem de vender mangas na soleira da porta, de brincar com os meninos negros da vizinhança ou de se sentar numa esplanada e ver os brancos a saborear o melhor uísque com soda e gelo e a debicar camarões, enquanto os criados negros aguardam uma gorjeta que apenas surgirá “se tivessem mostrado os dentes, sido rápidos no serviço e chamado patrão.” É esta criança a caminho da adolescência que vai tomando consciência das diferenças que a cor da pele induz, ao mesmo tempo que vê agigantar-se, de um lado, a prepotência e a impunidade do branco e, do outro, a raiva surda no olhar amarelo e nos punhos cerrados do negro.
Tal como em “A Gorda”, Isabela Figueiredo demonstra não ter papas na língua na altura de arrumar dentro de si um passado onde abundam mentiras e contradições. Um passado cuja dor não se esgota no deixar para trás uma África de todas as cores, antes se agrava nos tons cinza que a esperam à chegada ao rectângulo, retornada sem o ser. “Andaste a roubar os pretos e julgas que havemos de te servir camarão num prato de ouro!”, escuta, ao mesmo tempo que lhe põem à frente um prato de bofe com arroz. Então diz-nos que todos os lados possuem uma verdade indesmentível e que “nenhum admitirá a mentira que edificou para caminhar sem culpa, para conseguir dormir, acordar, comer, trabalhar.” Mostra-nos como as diferenças nascem e crescem, se acentuam, se agudizam, se confrontam. Diz-nos que é preciso tempo até cuspirmos no dever e na honra e na fidelidade e assim saldarmos as dívidas que pensámos dever. A bem ou mal!
A autora recupera a linguagem crua (e ofensiva) usada pelos colonos para se referirem aos colonizados, moçambicanos, neste caso. E é através dela que a a autora nos conta a sua infância e adolescência, e sobretudo, a história do seu amor pelo pai, um colono racista, como os outros. Entre um profundo amor e admiração pelo pai, surge a revolta, a desilusão, e a traição. Carne da mesma carne, mas pensamentos e ideologias diversas, contrárias. Como reconhecer todos esses defeitos no pai mas continuar a amá-lo tão profundamente? Como aceitar essa desilusão? Como fazer as pazes com esse passado, perdoar?
"Sentia-me uma pessoa. Sentia-me uma mulher. A sua alma-gémea. Ninguém me resgatou, me quebrou, me deu vida só por existir, só por estar ali, sorrir-me, dar-me valor. Dar-me a mão. Pegar em mim. Escutar-me. Só ele a quem traí." (p. 124)