Bem vindos à revista Trasgo, uma revista de contos de ficção científica e fantasia. Queremos trazer os melhores contos em língua portuguesa, de autores novos e consagrados.
Por que Trasgo? Trasgo é uma criatura do folclore português, confundidos com duendes ou trolls. Mas também pode ser o nome de um planetóide distante, lar de um único ser vivo. Uma maldição que sai de sua caverna escura à noite, ou uma pequena nave mineradora com tripulantes suspeitos.
Índice de conteúdos: Editorial Rendição do Serviço de Guarda - Gerson Lodi-Ribeiro Vivo. Morto. X. - Érica Bombardi Isaac - Ademir Pascale Estive assombrando seus sonhos - Mary. C. Muller Arca dos Sonhos - Fred Oliveira No Labirinto - Jessica Borges Galeria: Edmar Nunes de Almeida Entrevista: Edmar Nunes de Almeida Entrevista: Gerson Lodi-Ribeiro Entrevista: Érica Bombardi Entrevista: Ademir Pascale Entrevista: Mary C. Muller Entrevista: Fred Oliveira Entrevista: Jessica Borges Créditos da Edição
Rodrigo van Kampen é escritor, editor da Revista Trasgo, redator publicitário e foge de moto nos fins de semana. Já publicou em coletâneas da Aquário, Draco e em publicações independentes. Mora em Campinas com sua esposa e uma vira-lata, escreve em viverdaescrita.com.br e pode ser encontrado no Twitter como @rodrigovk.
1 - Rendição do Serviço da Guarda (Gerson Lodi-Ribeiro) - 3 (de 3) corujas
Algumas das melhores histórias de ficção científica são aquelas que conseguem fazer o leitor acreditar que aquilo que está sendo especulado é verossímil. Quando o autor te convence de que aquilo é possível. Gerson Lodi-Ribeiro nos mostra uma raça alienígena chamada makene que está em luta há milênios contra os carnívoros. Krestzul percebe na humanidade uma possibilidade de luta diferente contra estes alienígenas impiedosos. E é aí que veremos Krestzul contando ao novo guardião da Terra, um humano chamado Eddie, como ele interferiu na história da humanidade sutilmente para que chegássemos aonde estamos hoje.
Eu adoro este tipo de história. Ainda mais quando o autor consegue torná-la completamente possível. Ao mesmo tempo estas são as mais difíceis de serem escritas porque exigem um alto grau de pesquisas. Minúcias históricas podem prejudicar todo o planejamento do autor com algo que nunca existiu ou cuja ação não se encaixa em uma linha temporal. Mas, Gerson consegue fazer isso muito bem aqui. Por ser uma novella, ele consegue desenvolver a sua história a contento e realizar a construção de mundo do jeito que ele gosta. Quando chegamos à segunda metade da história, já acreditamos em todas as possibilidades expostas pelo autor.
Temos dois grandes temas girando na história. O primeiro deles, é claro, é o da solidão. Krestzul é um alienígena que está a anos-luz de seu povo e em um planeta muito diferente do seu. Sendo imortal o tempo não é sua preocupação. Mas, ele expõe uma fragilidade de seu povo já que muitos desistem de viver após muitos milênios de existência. Por incrível que pareça, a guerra feita contra os carnívoros é o que os mantém ativos. Os esforços de guerra, a necessidade de combatê-los e defender a Liga de Planetas é o combustível para a sua vida. Mas, vamos ver que a convivência na Terra vai se revelando problemática. Krestzul não pode se ligar emocionalmente aos humanos por conta de seu tempo de vida longo. Vemos ele relatando como foram algumas de suas experiências neste sentido e sentimos a dor pungente de perder uma pessoa amada sem nada poder fazer a respeito.
Outro tema debatido é como, mesmo gozando da dita "civilização", ainda somos animais selvagens em nossa essência. Os makene são pacifistas em sua natureza. Eles tentam resolver a guerra contra os carnívoros através de subterfúgios, poder tecnológico superior (mas, sem o extermínio em massa) ou até a negociação. Mas, a violência da raça humana coloca um novo nível ao jogo que talvez nem os inimigos esperam. E isso assusta Krestzul. No sentido de que ele percebe que está criando um monstro que pode vir a se tornar formidável no futuro. O que o autor trabalha aqui é o próprio caráter humano.
Ou seja, Rendição do Serviço de Guarda é uma novella fascinante de um autor extremamente prolífico que vocês deveriam conhecer. Ele nos mostra um nível de pesquisa incrível em uma história profunda e repleta de camadas. É ficção científica com uma pegada clássica, mas muito atual.
2 - Vivo. Morto. X (Erica Bombardi) - 2 (de 3) corujas
O quanto nossas escolhas afetam as vidas daqueles que nos cercam? Esse é o tema tratado por Erica Bombardi em um conto absolutamente arrepiante. Nele somos colocados diante de um skatista que por conta de seus problemas com motoristas imprudentes acaba causando ele mesmo um acidente indiretamente. Uma estranha menina chamada Ana lhe dá uma escolha terrível.
A narrativa é feita de uma maneira bem simples e direta colocando o personagem na cena onde a situação se passa. A autora não gasta muito tempo aprofundando as motivações e objetivos do mesmo (até porque não precisa). E eu acho que dentro do espaço que ela propôs a si mesma, a narrativa até que se desenvolve de forma competente. O encadeamento das frases é bom e a gente realmente acredita que os personagens dialogam daquela forma. Outro elemento no qual a autora é muito boa é nas descrições visuais. Somos capazes de imaginar a cena com bastante tranquilidade. Ela nem é muito específica e nem muito genérica: dá espaço para o leitor criar a cena em sua mente.
Juro que Ana me lembrou muito a personagem Morte criada por Neil Gaiman para os quadrinhos de Sandman. Mas, claro, as semelhanças acabam aqui. Ana é uma personagem sádica e cruel que no topo de sua estranha existência gosta de torturar os seres humanos. A escolha na qual ela coloca o protagonista é impossível. E, nos dias de hoje, acho muito difícil ele ter feito uma escolha diferente da que ele fez. Vivemos uma época em que nós somos mais importantes para nós mesmos do que o outro. É triste, mas é algo imposto pela nossa sociedade.
O conto não me conquistou completamente porque esse é um tema que eu já vi ser trabalhado em outros trabalhos (claro, de formas bem distintas). A ideia do pacto faustiano e de como o homem reage a isso é sempre um tema que rende boas histórias. Quero muito ver algo mais longo da autora para poder entender melhor o que ela pensa e como ela escreve.
3 - Isaac (Ademir Pascale) - 3 (de 3) corujas
Distopias onde os homens acabam se tornando selvagens são sempre interessantes de serem observadas porque acaba nos revelando como a nossa sociedade se coloca diante de situações extremas. Agora, o que eu curti mais nessa história é como o autor nos apresenta um protagonista incrível que representa o repositório de todo o conhecimento humano e como este se porta diante de uma sociedade que precisa reaver tudo o que ela deixou para trás.
O tom apocalíptico de Ademir Pascale está presente logo nas primeiras linhas. Somos apresentados a um mundo devastado por um desastre terrível que levou os homens a voltarem a seu estágio primitivo. A narrativa é feita em primeira pessoa pelo robô humanóide Isaac que se tornou o detentor de todo o conhecimento humano anterior ao desastre. Cabe a ele devolver esse conhecimento para restaurar a civilização. Mas, nada é tão simples quanto parece: Isaac precisa decidir como repassar adequadamente esse conhecimento para que se possa construir uma sociedade melhor. E ele sente que os homens precisam de um guia para fazê-los tomar escolhas melhores.
Sim, é isso que você leu!! O robô sente. Ademir Pascale nos coloca diante de um robô sentimental que inicia o conto nos colocando em uma situação absurda em que um grupo de fanáticos religiosos adorando uma estátua pagã realizam um ritual em que uma criança de 12 anos é devorada por seus semelhantes. A cena é de uma violência primal que te coloca no espírito daquilo que o autor nos quer passar. Em alguns momentos eu senti até um certo tom de western na história. Mas, não se deixem enganar: o tom de decadência está ali na esquina logo quando você virar a página.
Gostei da maneira como o autor aborda o fanatismo religioso e como os homens reagem diante do inexplicável. Isaac quer encontrar a maneira mais adequada de passar o seu conhecimento para um pequeno grupo de homens que ele encontra em uma planície. Após muito ponderar ele chega a uma resposta bem lógica. E a solução é tão simples e impactante que nos causa aquele momento de "caraaca". Como eu queria ver mais histórias nesse universo. Extremamente interessante e impactante aonde importa. Convido vocês a conhecer a escrita de Ademir Pascale.
4 - Estive Assombrando seus Sonhos (Mary C. Muller) - 1 (de 3) corujas
As histórias de fantasmas possuem temas muito comuns como coisas deixadas para trás ou temas de vingança. Nesse conto curto, Mary C. Muller nos apresenta Felipe, um menino de 10 anos capaz de enxergar aquilo que não é tão visível aos seres humanos: fantasmas, vampiros, lobisomens. Um determinado dia, ele se depara com uma fantasma diferente de todos os que ele havia se deparado. Ele vai até seu amigo vampiro o qual ele deixa ocupar a casa da piscina e descobrem que esta é uma fantasma que precisa encontrar o seu corpo. A partir daí se inicia uma busca para ajudar esta fantasma e tentar entender como ela morreu.
Senti que essa história parece ser o pontapé inicial para algo maior. A autora cria uma série de detalhes e situações que levam o leitor a entender algo mais ou menos nesses termos. Talvez se trate do recorte de uma história ou algum subplot que se passa no universo que ela criou. Provavelmente o objetivo fosse interessar o leitor em continuar a saber mais sobre este mundo. Ela deixa várias pontas soltas como de onde vem a amizade de Felipe com as criaturas sobrenaturais, o funcionamento de certas coisas neste mundo, como Felipe faz para esconder suas habilidades de seus pais, etc.
A autora rompe um pouco com algumas convenções deste gênero ao introduzir um garoto de dez anos na história. Normalmente emprega-se alguém entre 15 e 18 anos que vai sendo introduzido ao mundo paranormal pouco a pouco. Fiquei em dúvida sobre qual é o público pretendido pela autora: é infanto-juvenil ou YA? Como estamos diante de um conto curto não dá para dizer ao certo qual é o público-alvo. Certamente não é adulto porque ela diminui bastante o tom da história. Havia várias formas diferentes de dar um tom gore na narrativa que ela não fez. Portanto, não é para esse lado que ela deseja ir. A narrativa é feita em terceira pessoa de uma maneira bastante tradicional. Diálogos simples e tranquilos de serem entendidos, ou seja, a história não apresenta uma curva de compreensão muito larga. Em duas ou três páginas já é possível se assentar na história.
Não foi um conto que me chamou a atenção. Em vários momentos senti que a minha atenção dispersava e eu acabava querendo acabar de ler o conto logo. Não é bom porque significa que eu não empatizei com os personagens ou com o que eles estavam buscando. Dessa edição da Trasgo, esse conto é o mais fraco. Gostaria de ler algo mais da autora para poder tirar uma conclusão diferente.
5 - Arca dos Sonhos (Fred Oliveira) - 3 (de 3) corujas
A exploração da galáxia e a busca de novos mundos sempre foi uma obsessão da humanidade. Em um mundo cada vez mais apertado para os homens, as viagens interplanetárias ou até intergaláticas se tornaram um tema recorrente na ficção científica. Lembrando que este gênero quase sempre reflete os problemas do tempo em que a história foi escrita. Fred Oliveira nos conta a jornada de um capitão em uma viagem longa e solitária por galáxias em busca de um novo planeta para os milhares de seres humanos que se encontram criogenados aguardando a chegada. O Capitão reflete sobre sua missão ao mesmo tempo em que observa o espaço tentando lidar com a responsabilidade e a solidão.
A escrita do autor é belíssima. Muito descritiva e poética, somos presenteados com páginas e mais páginas do que há de melhor na ficção científica. Adoro quando o gênero é usado para falar do próprio ser humano. Diante dos perigos de um vasto universo, o ser humano é apenas um pequeno grão de areia. As maravilhas espalhadas por toda a parte podem representar uma beleza infinita ou um perigo mortal. Ao mesmo tempo outras raças alienígenas entendem o homem como um invasor. E eles farão tudo ao alcance deles para impedir que nos espalhemos por outras galáxias.
A narrativa é feita em terceira pessoa sem nenhum diálogo presente em todo o conto. Já aviso àqueles que não gostam de histórias mais descritivas que essa não é uma história para você. Arca dos Sonhos é aquele tipo de história para ser degustada, lida com calma e paciência, absorvendo todos os detalhes apresentados pelo autor. Aliás, a construção de mundo é bem simples. Não é uma ficção científica hard, ou seja,o leitor vai entender todos os detalhes tecnológicos e se situar na narrativa bem rapidamente. O personagem também é tratado profundamente. Podemos ver como a missão refletiu em sua psiquê, deixando-o mais fragilizado.O final é de surpreender e somos presenteados com uma pequena batalha espacial (bem rápida). Recomendo muito este conto para todos os fãs do gênero.
6 - No Labirinto (Jessica Borges) - 1 (de 3) corujas
Labirinto é um filme clássico da década de 1980. Um dos melhores trabalhos de David Bowie como ator e algo que fez parte da infância de muitos de nós, inclusive da minha. Jessica Borges pega essa inspiração para construir uma história de uma mulher atraída para um mundo fantástico por um homem encantador e precisa decidir se ela quer ser mais uma de suas esposas imortais em um mundo de fantasia ou se deseja voltar ao mundo real e se casar com um homem simples para viver uma vida modesta.
O tom da história é bem mais sério do que o filme. Enquanto que Labirinto tinha uma coisa mais fantasiosa e otimista, aqui Rodriel é um cara egoísta e que deseja Sarah, a protagonista, para si. Ele vai usar de chantagem e de todo um jogo psicológico para convencê-la a permanecer a seu lado. E o que vemos é que Rodriel não a ama de verdade, mas deseja possui-la para seus caprichos. Sarah é uma mulher em uma encruzilhada; Rodriel usa de um truque sujo para mostrar um pouco do que sua vida pode vir a ser e almeja mudar a opinião da personagem quanto a ir ou permanecer.
Um ponto negativo nesta história é que ela vai ser melhor assimilada por quem é fã do filme. Muito fica por explicar em No Labirinto. Existe uma menção muito rápida a como entrar no mundo. Quem não pesca logo de cara, não compreende depois como funciona. Eu sei porque já assisti Labirinto inúmeras vezes. Mas, um leitor não familiarizado com este universo vai sentir essa lacuna. Acho que a autora poderia ter dado um pouco mais de atenção a simplesmente explicar determinadas coisas, a apresentar a "física da fantasia". Uma ou duas páginas teria sido suficiente para colocar o leitor comum em sintonia com o que estava sendo apresentado.
Entretanto a reflexão moral é muito válida. Aí vai da interpretação de cada leitor frente ao que é apresentado pela Jessica. Eu entendi o quanto uma vida comum e mundana é importante para a personagem. Viver nesse universo fantástico e imortal só tem valor até certo ponto. A felicidade verdadeira pode ser obtida muitas vezes na simplicidade, no dia-a-dia. O fantástico pode ser fantástico, mas estar ao lado de quem amamos compartilhando momentos felizes pode ser ainda melhor. Acho que a tática de Rodriel apenas reforçou o que Sarah realmente gostaria. Ela estava mais confusa no começo da história.
Por outro lado, não consegui sentir empatia com a personagem. Acho que a autora criou várias pequenas cenas enquanto ela poderia ter criado poucas grandes cenas. As vignettes da vida de Sarah acabam não criando a conexão necessária para o leitor. Pelo menos, para mim não funcionou. Entretanto, destaco a habilidade da autora de usar várias pequenas inspirações criando easter eggs para o leitor buscar ao longo da história. Vale a pena a leitura e é uma escrita que flui muito bem.
A quarta edição da Trasgo traz 6 contos de fantasia e ficção científica. Infelizmente, acabei não gostando muito de alguns deles, e só bastante apenas de dois. Como sempre, avaliei cada um deles separadamente:
RENDIÇÃO DO SERVIÇO DE GUARDA (GERSON LODI-RIBEIRO)
O conto traz alguns temas interessantes, como a dominação do espaço, a interação de diferentes espécies do sistema solar e a imortalidade. São temas interessantes e que dão margem a enredos bem interessantes. No entanto, este conto não me agradou, e o principal motivo foi a narrativa.
Grande parte do conto se destina a explicar (em forma de relatos) como estourou a chamada Guerra Natural, que acontece há milênios e envolve sete espécies Carnívoras (como são chamadas) contra as demais espécies humanóides que habitam o sistema solar. Há ainda uma parte dedicada ao background de um personagem, que afinal não se mostrou tão importante. Assim, durante a maior parte do conto eu me senti como se estivesse lendo um livro de fatos históricos. E, mesmo nos momentos em que o enredo propriamente dito se desenrolava, eu não conseguia entrar na cena: as coisas são contadas, em vez de mostradas.
Além disso, os personagens têm pouca caracterização: em nenhum momento mostram como é sua personalidade (mesmo no caso daquele que teve seu background apresentado: sabemos sua história, mas não o conhecemos de verdade, não sabemos como ele reagiu a essa história). Isso acabou me impedindo de me conectar com os personagens, o que diminuiu ainda mais a minha empolgação com a leitura. Ademais, a história caiu em um clichê que eu não gosto: a maioria das espécies apresentadas parece ser monocultural, e ainda bem parecidas em pensamento entre si.
Avaliação: ★ ★ ☆ ☆ ☆
VIVO. MORTO. X. (ÉRICA BOMBARDI)
O conto é curto e tem um enredo bem simples, então é um pouco difícil detalhar a premissa sem entregar spoilers. Em resumo, é sobre um jovem que sofreu um acidente de moto, acabou com um problema no joelho e, apesar da terapia, é bastante frustrado. Ele anda de skate para tentar arejar a mente, e em um desses passeios, topou com uma garota sentada em um banco da praça. Obviamente, não é um encontro comum, e a trama se desenvolve a partir daí.
A escrita é em primeira pessoa e me arrebatou: a voz do personagem foi muito bem utilizada. Os diálogos também me agradaram. O enredo me prendeu aos poucos, fazendo meu interesse pelo que podia ser uma cena simples aumentar gradativamente. Foi para um caminho que eu não esperava, e o final me agradou bastante.
Avaliação: ★ ★ ★ ★ ★
ISAAC (ADEMIR PASCALE)
O conto é ambientado no nordeste brasileiro futurista, em que a humanidade colapsou, e os poucos remanescentes se organizaram em uma sociedade selvagem e canibal, que idolatra um deus com cabeça de bode. Isaac é, até onde se sabe, o único que manteve a lucidez, o mais próximo que se pode encontrar nesse mundo de algo que entendemos como humano.
Infelizmente, acabei não gostando da execução, tanto da parte narrativa quando do enredo em si. A narrativa conta demais, e por isso acabou não me prendendo; não consegui me sentir dentro da história. O enredo, por sua vez, tem por trás uma ideia interessante, por se tratar de conflitos religiosos, mas no fim acabei não gostando da forma como foi executado. O clímax foi fraco: em nenhum momento consegui me convencer de que as coisas estavam difíceis para o protagonista, ou que havia muito a perder; ou seja: foi uma resolução fácil, ainda que no começo a narrativa afirmasse que a missão era difícil e requeria muita preparação.
Avaliação: ★ ☆ ☆ ☆ ☆
ESTIVE ASSOMBRANDO SEUS SONHOS (MARY C. MÜLLER)
O conto começa instigante, contando a história de Felipe, um garoto que vê e fala com fantasmas (e por isso incompreendido pelos pais e pelos colegas na escola). Certo dia, ele se depara com um fantasma diferente de todos os outros, uma mulher que aparece suja e desgrenhada e fica reencenando sua morte por afogamento. Sem saber como ajudá-la, Felipe procura Sonny, seu amigo vampiro, um dos poucos que o compreende e o ensina a lidar com os fantasmas.
Na maior parte do tempo, a narrativa me agradou. Ela conta um pouco aqui e ali, mas, no geral, conseguiu me prender e me manter interessada na história. Mas o enredo, que tinha tudo para render uma boa história de fantasma, daquelas cheias de mistério, acabou me decepcionando. No clímax, acabou faltando um pouco de conflito, algo que se interpusesse entre os personagens e seus objetivos. Quanto ao mistério, achei que eles o desvendaram com facilidade demais, ao mesmo tempo em que senti falta de aprofundamento na história da fantasma. O que é uma pena, pois o universo em que se passa o conto parece ser bem interessante, com menções não somente a vampiros, fantasmas e lobisomens, mas também a criaturas do folclore brasileiro.
Avaliação: ★ ★ ✭ ☆ ☆
ARCA DOS SONHOS (FRED OLIVEIRA)
O conto apresenta o leitor à Arca, a maior nave já feita pelos seres humanos, que tem como objetivo alcançar o Fluxo Escuro, descoberto pelos cientistas há algum tempo, embora ninguém pareça ter certeza de que se trata. Em meio a essa viagem de milhares de anos, somos apresentados ao Capitão que, sentado em sua Poltrona (que parece capaz de alongar sua vida), deve manter a nave no caminho certo e defendê-la de quaisquer ameaças.
Gostei bastante da ideia por trás do conto, mas a narrativa (ela, mais uma vez) me decepcionou. Não que o conto seja mal escrito: algumas passagens são belas e bem construídas. O problema foi que ela não conseguiu me prender, eu não consegui ser arrebatada pela história. Durante todo o tempo senti que estava observando de longe, porque a narrativa não me convidou a mergulhar nos medos e anseios do personagem. Talvez essa tenha sido a intenção do autor, já que o Capitão é um personagem anônimo, apenas um entre as inúmeras pessoas que o antecederam e o sucederão no comando da Arca, uma única pessoa em comparação a uma missão monumental. Mas, infelizmente, não funcionou comigo.
Avaliação: ★ ★ ★ ☆ ☆
NO LABIRINTO (JESSICA BORGES)
Sarah é uma pessoa comum, que vive uma rotina rígida e até monótona. Só há uma peculiaridade em sua vida: todos os dias à meia-noite, há seis meses, ela é levada a um mundo paralelo, habitado por criaturas imortais, que todas as noites festejam e banqueteiam. Sarah também tem a oportunidade de viver nesse mundo e ser imortal — mas, para isso, precisa abandonar sua própria vida: seus pais, sua carreira, o noivo e o futuro que poderia ter com ele. É isso que Rodriel, que é rei nesse mundo, deseja que ela faça — e está disposto a muita coisa para convencê-la.
Esse conto, felizmente, me enredou desde o início. A narrativa é leve, sem exagerar nas descrições, e conseguiu fazer com que eu me sentisse dentro da história. O enredo também me agradou bastante, especialmente pelo tema, que trata das expectativas para o futuro de forma bastante interessante. Gostei da resolução: não foi algo totalmente inesperado, mas foi bastante crível dentro das habilidades de uma pessoa comum que pode viajar para um universo fantástico. E, apesar de o conto ser focado em Sarah, conseguiu dar certo desenvolvimento a uma das personagens secundárias.
Um bom volume da Trasgo, talvez o mais consistente até agora.
Rendição do Serviço de Guarda, do veterano Gerson Lodi-Ribeiro, é meu preferido, um pouco por ser o mais longo e ter mais tempo para desenvolver seus conceitos, mas principalmente pelas ideias em si. Achei muito bem estruturado o background e me interessei de verdade pelos personagens. Leria um romance completo.
Vivo. Morto. X., da Érica Bombardi, traz uma alegoria interessante sobre morte e destino.
Por sua vez, Isaac, de Ademir Pascale, apresenta conceitos promissores, mas poderia tê-los desenvolvido melhor.
Estive assombrando seus sonhos, da Mary. C. Muller, traz um background que me soa familiar ao universo dos mangás sobrenaturais, trocando as terminologias pelas ocidentais. Bem escrito e divertido, mas me soou um pouco bobo em certos momentos. Talvez o público-alvo seja mais jovem.
Em Arca dos Sonhos, o escritor Fred Oliveira concebe um background muito promissor, de uma nave singrando o cosmos até o infinito, me deixando com desejo de saber mais. Porém, o pouco que ele decide contar não foi tão atrativo. Mas tem potencial.
Por fim, No Labirinto, da Jessica Borges, reconceitua o filme Labirinto. Traz ideias interessantes e diversão, embora eu sinta falta de algo mais profundo. Ficou um pouco superficial.
Sempre percebo na Trasgo uma variação na qualidade dos contos, entre o regular e o excelente. Todas as histórias ultrapassam a fronteira da boa escrita. Nenhum texto faz feio. Mas aquele algo mais, que torna a leitura marcante, só alguns autores conseguem alcançar. Das sete edições da Trasgo que li até agora, essa n°4 foi a menos empolgante. Destaco o conto Arca dos Sonhos, de Fred Toscano. É uma envolvente space opera, na qual acompanhamos as aventuras de uma nave pelo espaço profundo. O autor contraria a regra mais fundamental dos manuais de escrita: mostre, não conte. Arca dos Sonhos é prova de que nem sempre a regra deve ser obedecida. O autor conta de maneira sedutora, vigorosa e consistente (a pesquisa mostra a que veio) o cotidiano do Capitão da nau, que enfrenta perigos e contempla belezas. O texto tem momentos de poesia e de ação. O conto se passa no espaço, mas tem o sabor de narrativas épicas, como A Odisseia.
Rendição do Serviço de Guarda Não gostei muito não...
Vivo. Morto. X. Ótimo conto sobre escolhas.
Isaac Com esse nome bíblico, a gente meio que sabe o que esperar. O cenário meio apocalíptico foi bem escrito, e a reescrita histórica, ou recomeço, foi uma boa ideia, mas o conto não me pegou tanto.
Estive assombrando seus sonhos Fantasmas, vampiros, lobisomens, criaturas folclóricas! Muito bom por tudo isso, mas talvez curto demais; deveria ser mais desenvolvido.
Arca dos Sonhos Naves espaciais, viagens em rumo ao desconhecido! Bom conto, mas também não me pegou muito.
No Labirinto Gostei muito desse! Me lembrou das cenas no mundo das fadas do Jonathan Strange & Mr Norrell. Muito bom!