«Bisonte» procura acolher uma poética de largo espectro, orçando grandes espaços, ruminando o horizonte, tratando de grandes pinceladas rítmicas. Estilisticamente livre, coopta várias dimensões líricas, formalmente múltiplas, com um certo apetite por poemas longos e 'paisagistas', discursivos e de fundo fôlego. O poema mimetiza o grande quadrúpede e a sua estepe. Subitamente, o grande páramo é engolido no vórtice de uma miniatura, como a flor para o bisonte. É deste modo uma poética de escalas e, se aproximadamente interpretável, trataria do problema da anulação, de um tipo de olhar romântico, natural, pulverizado por blocos colectivos e grandes agremiações unitárias militando contra o individual. Se o poema é um animal não pode dizer nada e a poesia nada diz. E, contudo, é loquaz, um torrencial e irreprimível movimento altíssono condenado paradoxalmente a desaguar num mar tonitruante que estrangula o dito na sua câmara de gritos. Ameaçado de extinção, o poema é o bisonte. E a extinção é, de certo modo, a negação da história.
Daniel Jonas nasceu no Porto, em 1973. É Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade de Lisboa com uma dissertação sobre o poeta inglês John Milton, de que resultou a tradução de Paraíso Perdido (Cotovia, 2006).
Além da escrita para teatro, em que se estreou com Nenhures (Cotovia, 2008), publicou seis livros de poemas, entre os quais Nó (Assírio & Alvim, 2014) - vencendo o Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes (2015) - e, mais recentemente, Bisonte (Assírio & Alvim, 2016).
Dedica-se também à tradução, tendo vertido para português textos de Waugh, Huysmans, Pirandello, Auden, Shakespeare e Lowry, entre outros.
No intervalo de Beckett, esse mago que acelera e desacelera, abri este Bisonte sem expectativa. Minutos depois, a constatação óbvia de estar na presença de um poeta de excepção. Em abono da verdade, quantos ousam escrever (com sucesso) a História de uma genealogia num poema de nove palavras? [«Esta camisa / perfeitamente passada / pelas rugas / da minha mãe.»] Poucos, seguramente.
"Tudo te pensa e te pesa e te diz estás em toda a parte és meu centro e circunferência e mergulhas na terra como um texugo mergulha no mel e no vidro vibra brande o vento e és de repente todas as coisas que me sejam o vinho pernoitando no carvalho o lobo medindo o seu colmilho contra a lua
Se me faltasses pediria ao mundo a noite eterna o músculo atrofiando-me os braços a lenta tarde sobre as janelas o caldo solitário a mala ali parada ganhando o musgo de móvel líquenes descendo-me sobre os olhos e os ponteiros navalhas sobre o tempo a oxidação da faca embotada falhando resvalando sobre a laranja"
Excerto de "A Tua Memória É Uma Dor Constante" Daniel Jonas
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O "Oblívio" encantou-me, foi o livro que despontou esta sede de procurar mais referências do Daniel Jonas, e esta segunda descoberta fez nascer mais perguntas do que respostas. Tenho, no entanto, uma certeza, a de que vou continuar a ler, a explorar — alguns dos poemas incluídos neste "Bisonte" deixaram-me algo indiferente, diria até que nenhum se destacou especialmente (minto: "A Tua Memória É Uma Dor Constante" foi um poema que li e que reli várias vezes), porém assisti a um fenómeno que me agradou e que é raro, ao ponto de ser único (até ao momento): senti que muitos dos seus poemas começam de formas que me interessam pouco mas que, à medida que vão avançando, desabrocham por completo... era como assistir mesmo ao nascimento lento de algo desconhecido, de uma beleza invisível que rasgava por entre as palavras e que se manifestava nos últimos versos. Nunca senti nada de semelhante noutro poeta, e creio que é esta sensação que me manterá no caminho da descoberta.