Inácio, escritor e professor universitário, um homem assombrado pela memória e pelos fantasmas de um segredo familiar, abandona a mulher e a filha, as salas de aula e a literatura para voltar a Perdição, lugar onde nasceu e viveu até os 18 anos. Com essa idade foi expulso de casa pelo pai, um homem rude e autoritário que educou os filhos com rigor e frieza. Numa narrativa descontinuada e sinuosa, em que presente e passado se alternam e se misturam, Inácio narra a infância e a adolescência em Perdição, a vida em família, a relação difícil com o pai, o terno entendimento com a mãe, a obsessão pela tia louca, os medos noturnos, o primeiro e único amor, a paixão pelos livros.
Marilia Arnaud nasceu em Campina Grande, Paraíba. Escreveu quatro livros de contos, entre eles "O Livro dos Afetos" (7 Letras, 2005), e participou de várias coletâneas de contos publicadas por importantes editoras do país. Em 2012, publicou seu primeiro romance, "Suíte de Silêncios" (Rocco).
Quando Liturgia do Fim chegou, eu tinha uma pilha de livros em andamento e nenhuma intenção de começar mais uma leitura. Ao abrir o livro para folhear, me deparei com a informação de que a autora era minha conterrânea. Curiosa, pensei em ler os primeiros parágrafos para saber se valeria a pena lê-lo algum dia. Não consegui mais parar. Não dá pra parar. Não tem como parar.
Marilia Arnaud nos conta a história de Inácio, um professor e escritor apaixonado pelas palavras, que, expulso de casa aos 18 anos, vai viver na cidade grande, forma família, mas, sem conseguir se desligar do passado, retorna à casa trinta anos depois para ver como tudo está e o que sobrou de Perdição, lugar onde nasceu.
A primeira surpresa foi o fato de termos uma narrativa em primeira pessoa, com um personagem masculino, escrito por uma mulher. Isso nem sempre dá certo, mas, se comecei com a imagem da escritora na cabeça, poucas páginas depois ali só existia Inácio e ninguém mais. Muito convincente e verossímil.
A escrita da autora é a alma do livro. Marilia não tem a intenção de ser simplória, pelo contrário, usa e abusa do rico vocabulário da língua portuguesa. Sem medo, vale salientar. Usa regionalismos à vontade, sem, no entanto, cair no caricatural, acorda palavras adormecidas e traz outras tantas que eu nem imaginava que, de fato, existissem no dicionário. E o melhor, seu rebuscamento não soa pedante nem tira a fluidez da leitura.
Assim como seu personagem, a autora certamente é uma amante das letras. É notável o cuidado que teve em não repetir as palavras ao longo do livro. O resultado de tudo isso é um texto bonito, poético, de um lirismo que nos traz aquela vontade de ler em voz alta. E, confesso, li boa parte assim.
Outro ponto que gostei foi o fato de Marilia ter usado os diálogos “dentro” dos parágrafos, sem interrupções, sem formalidades, separados apenas por diferentes flexões verbais.
A história é um triste e duro retrato de um dos tipos de família sertaneja, daquela que gira em torno do patriarca machista, bruto, ignorante e intransigente. Revela em suas entrelinhas a esposa submissa, temente e sofrida; a mãe tensa e preocupada, que oculta do marido até as menores travessuras dos filhos para protegê-los; a doméstica que abdica de sua vida para tornar-se criada, para doar-se a uma família que não é a sua; os parentes “encostados”, sempre presentes; as crenças e os costumes regionais. Faz-nos questionar se realmente “o fruto não cai tão longe da árvore”.
Liturgia do Fim, além da boa forma, é de uma sensibilidade impressionante. É possível sentir a dor, a angústia e o desespero do personagem durante toda a leitura, que mais parece uma ferida aberta pulsando em nosso corpo. Impossível poupar elogios, impossível não recomendar.
Difícil não comparar com O Pássaro Secreto, também da autora, cujo lirismo é somado a um enredo psicológico mais compacto e impactante. É interessante ver uma mulher escrever sobre patriarcado (e sua decadência) do ponto de vista de um homem, expondo as formas com que machismo e trauma formam cicatrizes eternas. O cenário árido é sempre descrito na companhia de uma riqueza natural que servem de lindo parâmetro para a realidade interna do narrador.
Literatura brasileira de primeira qualidade, a autora merece ser melhor (re)conhecida. Livro potente, sutil, esculpido no uso fino da lingua portuguesa, o relato envolve e enreda até a última página. Excelente.
O lirismo de Marilia Arnaud certamente casa melhor com este narrador que com a Duína, de "Suíte de Silêncios". Sua linguagem, de apelo poético e telúrico, atinge seu ápice nos capítulos em que Inácio se vê em confronto com a figura plenipotente do pai - como bem observa Maria Valeria Rezende na orelha, com uma oportuna associação à obra de Raduan Nassar, o signo de um patriarcado em frangalhos, mas que deixou uma marca indelével em toda uma geração consecutiva. Apesar de o incesto, aqui, ser tratado com mais timidez, o fato de o personagem ser escritor (ou pelo menos estar escrevendo na fazenda Perdição) me pareça um tanto frouxo e os demais personagens não sejam tão bem construídos quanto Inácio e o patriarca dos Boaventura, a relação dos dois consegue se tensionar de uma forma tão poderosa que essa tensão basta para dar motor ao livro. Gosto das lacunas narrativas que aos poucos vão sendo supridas na hora certa, de certos saltos temporais, ora sutis, ora abruptos, na transição entre os capítulos, e gosto sobretudo desse pai, que quando se pronuncia é quase possível ouvir sua voz ribombando como trovão no céu. Arnaud molda o personagem com uma brutalidade palpável mas nem um pouco caricata, se permitindo até a momentos de alívio dramático como na passagem em que se descreve tão belamente sua lida como apicultor, um dos bons momentos desta novela.
que livro INCRÍVEL! poético, de fácil entendimento e que me despertou os sentimentos mais diversos enquanto li. com certeza se tornou um dos favoritos da vida
Muito bem escrito, texto intimista, história impactante e triste! A autora sabe expor as angústias humanas! Acho Pássaro secreto melhor, mas esse também é muito bom! É um livro com gatilhos!