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288 pages, Paperback
First published October 1, 2016
Todas as personagens, geografias e situações descritas nesta narrativa são mera ficção e pura realidade.É com esta advertência que a autora nos apresenta este romance que parece ter uma forte vertente autobiográfica, sendo provavelmente imprecisa a linha que separa o biográfico do ficcionado. Tal como a escritora, a protagonista do romance, Maria Luísa, nasceu em Moçambique, filha de pais portugueses, tendo vindo para Portugal aquando da independência da então colónia portuguesa, era gorda e fez uma gastrectomia que lhe permitiu perder quarenta quilos. Maria Luísa era boa aluna, inteligente, tem um namorado, mas o facto de ser gorda acaba por lhe condicionar uma parte importante da sua vida.
Quarenta quilos é muito peso. Foram os que perdi após a gastrectomia: era um segundo corpo que transportava comigo. Ou seja, que arrastava. Foi como se os médicos me tivessem separado de um gémeo siamês que se suicidara de desgosto e me dissessem, no final, «fizemos o nosso trabalho, faça agora o seu e aguente-se. Aprenda a viver sozinha».
Eu era gorda, com alta miopia, barriga e mamas a sério. Eu era a subalterna. A boa e inteligente serviçal feia.
(…) a mamã cuidou do meu cabelo, lavou-me, vestiu-me, calçou-me, alimentou-me, repreendeu-me e censurou-me por «engordar muito», por «estar cada vez mais gorda».
«É que se não emagreces acabas como o teu pai», avisava.
«Não vás a minha casa. Os meus amigos gozam-me por tua causa.» E eu não ia. O meu corpo não servia ao David nem a ninguém. Não valia a pena ter ilusões sobre a forma como tudo o que nasce sobre a terra merece digno destino. Se eu não servia para o David não serviria para ninguém nesta vida. E se o meu corpo não servia, nada mais do que eu era poderia aproveitar-se, nem eu o permitiria; portanto restava afastar-me do que me repelia.
Tornei-me dura com ele. Implacável. Feria-o a cada oportunidade. Perguntava-lhe, «vens com a gorda ou preferes ir com pessoas normais?». Dizia-lhe, «vai andando; eu sigo atrás de ti para não sentires a vergonha de andar com uma gorda ao lado. Faz de conta que não nos conhecemos».
Ainda penso como gorda. Serei sempre uma gorda. Sei que o mundo das pessoas normais não é para mim. Continuo a ter o defeito, mas não se vê tanto; tornou-se menos grave.