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148 pages, Paperback
First published January 1, 1964
Antigamente, há muitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria, São Pedro, muitos outros santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas pessoas que tinham morrido e ido para o céu, fizeram uma reunião e resolveram fazer pretos. Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram-no em moldes usados e para cozer o barro das criaturas levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e não houvesse lugar nenhum ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo, fumo, fumo e aí os tens escurinhos como carvões. E tu agora queres saber por que é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se eles tivessem de se agarrar enquanto o barro deles cozia?!
Nesse mesmo dia, o Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes ter-se ido embora, e disse-me que tudo o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma grandessíssima peta [mentira]. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era o que ele sabia: que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banho num lago no céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como eram feitos de madrugada e a essa hora a água do lago estivesse muito fria, só tinham molhado as palmas das mãos e as plantas dos pés, antes de se vestirem e virem para o mundo.
Mas eu li num livro, que por acaso falava nisso, que os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Virgínia e de mais não sei onde. Já se vê que a Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos deles desbotarem à força de tão lavadas.
Essencialmente prática, a rola sacrifica no seu voo a graça de uma pirueta e a amplitude de uma curva à necessidade de chegar mais depressa. Ninguém se lembra de ter visto uma rola a deixar-se embriagar pela carícia do vento, como frequentemente acontece à andorinha; ninguém pode jurar que, como o abutre, a rola se entregue no seu voo ao prazer sensual de deslizar contra o azul pastoso do espaço, com as asas todas desfraldadas; por certo também ninguém ouviu dizer que uma rola tenha passado uma manhã inteira a catar piolhos no ventre, a estufar o peito e a alisar a penugem, como faz a preguiçosa sécua.
Com os olhitos negros sempre vigilantes, a rola viaja na esteira dos grãos e volta pontualmente todos os anos, semanas antes do início das colheitas. Reproduz-se enquanto vai e volta e engorda calmamente com o tempo. Engorda e enegrece.
O seu cantar, que não tem tempo de ser musical, é imediatamente triste; é uma espécie de refilanço [reação, resistência, segundo a nota de rodapé] rouco e agreste. Às vezes, sendo monótono, é descritivo e nostálgico. Nunca porém poético ou divagante: é sempre horrivelmente direto.
Cantando, a rola não lamenta, como fazem muitos outros pássaros, acusa. Entristece o vale. Torna despropositado o verde dos campos e insípido o azul intenso do céu.