Três mulheres vivenciam o exílio e o abandono, num desencontro de línguas, lugares e experiências, neste potente romance de formação. Este romance polifônico gira em torno de três mulheres: Anna, uma aspirante a atriz, de origem humilde, que vê num cineasta alemão a possibilidade de ser levada a sério e ter fama e reconhecimento. Logo depois que o conhece, ela aceita mudar-se para a Alemanha, onde a realidade (agravada pelo desconhecimento do idioma) se apresenta bem diferente de suas expectativas; depois há também a melancólica Maike, uma jovem alemã que, sem razão aparente, resolve estudar português na universidade — para o desgosto dos pais, advogados — e descobre aos poucos que sua improvável ligação com a língua e o Brasil é cada vez mais forte. No curso, ela se apaixona por uma colega, que vai abrir seus olhos para muito do que estava reprimido em seu inconsciente; e ainda uma terceira personagem, sem nome, que aos catorze anos é obrigada pela mãe a deixar sua casa no interior de Minas para trabalhar como doméstica numa casa de família no Rio de Janeiro, onde relações bem complexas irão se desenvolver no convívio dela com os patrões. São três mulheres muito distintas, mas fortemente interligadas, que experimentam uma situação crescente de abandono e exílio — seja geográfico, seja emocional. A viagem, por assim dizer, que cada uma delas faz poderia ser um jeito de “voltar para casa”, na busca por desvendar sua verdadeira identidade.
Romancista e contista. Aos 3 anos de idade, muda-se com a família para o Brasil, fixando-se no Rio de Janeiro. Na infância e na adolescência estuda em um colégio alemão. Na década de 1990, após se formar em jornalismo na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ), transfere-se para a Europa, morando na Espanha, França e Alemanha, onde conclui mestrado em comunicação social. Trabalha como tradutora de alemão e espanhol. Publica seu primeiro livro em 2005, o volume de contos Do Lado de Fora. Entre 2005 e 2006, publica microcontos no blog Escritoras Suicidas. Seu romance Flores Azuis (2008) recebe o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), em 2008. (Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural)
Eu pretendia ler esse livro em 2 semanas, mas li em 3 dias, me envolvi sem nem perceber. Chorei como há muito não chorava em um romance. Lindíssima a forma que a autora nos leva a pensar sobre a ancestralidade e os ciclos que sempre nos atravessam.
A dissonância entre o desejar e o querer O quinto romance de Carola Saavedra começa de forma assertiva: “Sempre lhe pareceu que havia uma dissonância entre o que deseja e o que realmente queria.” Isso se refere a uma das protagonistas do livro, a atriz Anna Marianni, mas poderia ser a qualquer figura que habita COM ARMAS SONOLENTAS. As personagens (e a maioria são mulheres) estão presas numa fissura entre o que desejam de verdade e o que querem (o que talvez seja melhor para elas). Conseguir o que quer pode, paradoxalmente, não ser algo bom.
As pessoas dizem para Anna que ela é talentosa, mas falta-lhe sorte. Trabalha numa loja chique de roupas, faz pequenas participações em peças pequenas, e até uma ponta num filme (“a próxima Cacilda Becker”, diz seu agente e amigo). A sorte lhe sorri quando consegue entrar numa festa elegante de um festival de cinema no Rio, e conhece um cineasta alemão, com quem, pouco tempo depois está se casando e mudando apara a Alemanha, apesar de desconhecer o idioma. Na Europa, as frustrações se acumulam, até que uma maternidade inesperada é a gota d’água para a vida de Anna desabar.
Maternidade é o tema que atravessa a narrativa, e une as personagens num fio delicado de encontros e desencontros. A segunda parte é narrada do por Maike, jovem alemã, que no primeiro dia de faculdade decide repentinamente que irá estudar português. Ela não é feliz em sua vida burguesa, repleta de conforto e amor (um tanto frio e metódico) dos pais. A terceira personagem-central não tem nome, é uma moça de 14 anos que é mandada para o Rio de Janeiro pela mãe para ser empregada de uma família de classe-média em Copacabana.
Na medida em que as tramas avançam, não é muito difícil perceber o que unem essas mulheres. O suspense não é o propósito aqui, mas o que interessa a Saavedra é a investigação da causalidade e casualidade que aproximam e afastam as pessoas. Conforme o livro progride também, um forte elemento místico começa vir à tona. Nada soa gratuito, e dentro da lógica interna, tudo faz sentido. Alguns momentos, mais perto do final, lembram David Lynch. É preciso embarcar no delírio de Com armas sonolentas. Mas vale o esforço.
Na obra da escritora, o não pertencimento e laços inesperados são recorrentes. Desde seu romance de estreia, Toda Terça, até chegar aqui – que traz uma autora com maturidade e sofisticação. Outra elemento importante na obra de Saavedra: o registro como composição de uma memória. Mas, esta, é claro, é uma narrativa, e como tal é uma construção – seja consciente ou inconscientemente, escolhas são feitas, e coisas (às vezes importantes) são deixadas de fora. Aqui, um personagem compõe um livro – na verdade reescreve um outro que encontro. É um lance sutil de metaficção que não deixa passar batido o sobrenome que a escritora compartilha com Miguel de Cervantes (Saavedra).
Se há estranhamentos lynchianos, porém, uma outra força cinematográfica é muito mais presente aqui, para mim. Trata-se de Pedro Almodóvar – não o Almodóvar dos anos 80 e 90, louco, colorido, cínico; mas o Almodóvar dos últimos filmes, melancólico e profundo esmiuçando relações entre mães e filhas (penso mesmo em Volver e Julieta). Saavedra pergunta qual o papel da mulher no presente – na verdade, em diversos presentes. E nessa investigação a classe social e a raça são fatores que pesam. Isso resulta numa obra de profundo questionamento sobre o presente e os avanços e conquista das mulheres nas últimas décadas.
O título ver de um verso da sor Juana Inês de la Cruz, religiosa e poeta mexicano-espanhola, também considerada uma das primeiras feministas do continente. O verso “com as armas sonolentas” (do poema “Primeiro sueño”, de 1692) parece traduzir uma ideia de despertar, de um momento de início de luta – as armas ainda estão sonolentas, mas a guerra só está começando. E esse pode ser o destino das personagens aqui: lutar suas próprias guerras - mesmo que não desejem, nem queiram. Não há escapatória.
Há uma ambiguidade interessante no subtítulo deste "Com Armas Sonolentas: Um Romance de Formação". Se associamos o termo à tradição do "Bildungsroman", ele pode se referir à trajetória da personagem Maike, à busca pelo seu passado remoto e pela compreensão de sua identidade no mundo; se, por outro lado, o associamos a um viés estrutural, à metalinguagem tão presente em outras obras de Carola Saavedra (como o anterior "O Inventário das Coisas Ausentes"), pode-se dizer que o romance está em formação por ser construído a partir de breves novelas compostas das vozes dessas três mulheres: Anna, Maike e a Avó. Embora, a princípio, tenha me desagradado que a relação entre as três, vértices do triângulo temporal deste romance, fosse tratada abertamente na história - e não indiretamente, como ela fica ao fim da primeira sequência de narrações -, Saavedra consegue ainda assim surpreender o leitor com suas supostas certezas ao final do romance, retomando uma figura misteriosa que se insinua no universo de Maike e confere toda uma nova ordem a este universo. Ainda sobre a estrutura, é comum que romances assim, divididos em seções correspondentes a múltiplos focos narrativos, padeçam de problemas como a uniformidade das vozes ou mesmo uma heterogeneidade meio incômoda, como se os pedaços não dissessem respeito a uma mesma unidade. Nenhum destes casos corresponde ao de "Com Armas Sonolentas", que consegue individualizar a tríade de personagem que constitui a base da narração sem perder um fio condutor que atua numa crescente de fascínio e de drama.
Que excelente surpresa! Acho que esse não seria o tipo de livro que eu escolheria geralmente, mas ganhei de presente de um amigo e amei! Ganhar livros é sempre uma excelente oportunidade de conhecermos coisas novas, acho incrível! A escrita da autora é extremamente envolvente e desde o início fiquei vidrada na leitura. A história começa nos mostrando três mulheres que aparentemente pouco têm em comum, mas depois vamos vendo as diversas semelhanças entre elas. Histórias de abandono, de perda, de não pertencimento, de busca de raízes e de um lar (tanto físico quanto emocional). Eu teria apenas duas ressalvas. A primeira seria o final: embora ele seja bem condizente com o desenrolar da história, não gosto muito de finais tão abertos. E a segunda seria a intertextualidade com textos que não fazem parte do meu repertório nem de longe, então ficaram perdidas para mim.
“Com armas sonolentas” é um ótimo romance “polifônico” elaborado com esmero pela escritora nascida no Chile, naturalizada brasileira mas que vive na Alemanha, Carol Saavedra. São três as narradoras da história. Ana é uma jovem candidata a atriz que, aparentemente, tirou a “sorte grande” pois, num lance quase fortuito, ocorrido numa recepção de gala no Rio de Janeiro, despertou a atenção do consagrado diretor alemão Heiner Neumann que com ela se casa e a leva para a Alemanha. No entanto a frustração e a solidão logo se instalam em meio a um ilusório “conto de fadas”. Heiner viaja constantemente a trabalho deixando Ana sozinha. Com dificuldades de adaptação e com grandes dificuldades com o idioma Ana se vê em meio a uma dramática armadilha do destino. No Brasil uma criança de quatorze anos é forçada pela pobreza de sua família a abandonar a mãe, os irmãos e a adorada avó para ir morar e trabalhar numa casa de família no Rio de Janeiro. Em meio a um cotidiano de muita solidão e trabalho ela é engravidada pelo filho mais velho da família. Seus patrões decidem mandar o filho estudar no exterior e bancam a gravidez. Uma vez nascida a criança, a sua patroa apega-se cada vez mais à criança, “quase branca”, que passa a desprezar sua mãe biológica em prol de um nível de vida e de consumo que ela não poderia lhe dar. Então a sofrida personagem, chamada apenas de “avó” pela autora desespera-se com o distanciamento de sua filha e com uma solidão que lhe aperta cada vez mais o coração. Na Alemanha a jovem Maike, afastando-se dos desejos de sua família de que ela fizesse direito, dedica-se a estudos literários e decide fazer um curso de português, entre as várias disciplinas eletivas que a faculdade lhe oferecia. No curso ela conhece a jovem estudante mexicana Lupe que lhe mostra a razão de seu retraimento e de sua angústia. Maike era uma reprimida garota homossexual. Inicia-se então um tórrido romance entre as duas. No entanto Maike, a despeito de sua descoberta, sente-se ainda angustiada e não consegue atinar com a causa da angústia que lhe aperta o peito. À medida em que o romance se desenrola na dinâmica aparentemente “estanque” das três narrativas vamos estabelecendo interconexões entre as três personagens e o desfecho é surpreendente na medida em que ele realmente não existe. Este romance é uma agradável surpresa que prende a atenção e emociona na medida certa com direito, inclusive, a generosas doses de um “realismo onírico” presente nas aparições do “fantasma” (ou delírio) da avó da personagem “Avó”, a aparição de uma insólita e falante capivara em plena Alemanha num momento dramático da vida de Ana (seria uma espécie de “surto psicótico”?), os misteriosos vislumbres e elucubrações de Max, amigo de Maike. O macabro personagem (seria o Demônio em pessoa?) que conduz Maike a uma espécie de “festim diabólico” no Rio de Janeiro. Leia e tire as suas próprias conclusões. Excelente!
A partir do verso de Sor Juana Ines de la Cruz que lhe dá título, o romance de Carola Saavedra, publicado em 2018, joga um jogo de referências, aparências e identidades através das histórias cruzadas de três protagonistas que são realmente quatro: Anna, Maike e (avó), grafada desse jeito, em letra minúscula, entre parênteses, sem nome, e que é duas personagens ao mesmo tempo e a chave para compreender uma saga familiar com múltiplos atravesamentos.
As histórias de todas elas são caracterizadas por deslocamentos geográficos (do interior de Minas para o Rio, do Rio para uma pequena cidade do interior da Alemanha, de Berlin para Zurique e, depois, para o Rio de Janeiro de novo. Mas esses deslocamentos não são passeios turísticos, embora às vezes comecem assim. São migrações e transmutações profundas nas vidas das personagens, guiadas pelo sono, o sonho e o inconsciente.
Saavedra aprofunda-se, com as suas personagens, na critica às relações de opressão entre classes e etnias no Brasil , que se espelham nas relações desiguais entre o Brasil e a Europa. A forma desumanizada com que a burguesia carioca trata (avó), criança indígena explorada como empregada doméstica, tem continuidade na visão estereotipada que as personagens alemãs têm do Brasil, e da América Latina como um todo, e na frustrante experiência europeia de Anna.
O livro ganha perfis mais ricos e surpreendentes na segunda parte, em que a dimensão onírica se impõe sobre a narrativa linear, trazendo com mais força elementos do perspectivismo ameríndio e das epistemologias dos povos originários da América Latina.
Saavedra, brasileira de origem Chilena, e ela mesma protagonista de diversos deslocamentos geográficos e culturais, tem-se aprofundado na pesquisa acadêmica sobre pensamento indígena, segundo ela mesma, à procura do resgate da sua herança paterna mapuche.
Nesse sentido, o livro dialoga com O som do rugido da onça, na ficção, e com os trabalhos de Ailton Krenak, Sidarta Ribeiro e Davi Kopenawa, que trazem para o primeiro plano e para a responsabilidade coletiva o olhar da contribuição indigena na construção social não como um passado longínquo, mas como uma força do presente e para o futuro.
Excelente leitura, tão cheia de caminhos. Personagens bem elaborados, também eles cheios dos caminhos próprios. A narrativa abarca maternidade, ancestralidade, estupros, tomada de consciência, perdas de consciência. Sobre decisões erradas, decisões não respeitadas, decisões impostas e casualidades certeiras. Senti falta de um desfecho de alguns dos enredos porque me apeguei rs
Eu juro que esperava não gostar, quando comecei achei que não ia, demorei um tempo pra pegá-lo de novo e aí acabei não conseguindo largar, apesar de o desfecho parecer óbvio e muitas coisas já serem dadas ao longo da narrativa eu ainda assim queria continuar, menos por curiosidade de um final, uma reviravolta e mais porque a leitura tava muito boa mesmo.
Mais um livro que eu não consegui escrever uma review logo que terminei de ler porque ainda fiquei processando tudo que eu senti por mais um tempo! Nunca tinha lido algo escrito de forma tão autêntica e diferente como ele. O fato de cada história inicialmente ser tão única e aos poucos irem se entrelaçando, de uma forma não óbvia (ao meu ver), me deixou encantada. A bagunça do realismo e do surrealismo, a maneira que a narrativa te leva junto, as vezes mesmo com parágrafos enormes que ao olhar pra página parecem que vão te sufocar, mas não fazem porque flui naturalmente. E além disso tudo, o impacto que o livro já tem apenas pelo fato de a autora, e eu, sermos mulheres. A gente sabe porque sentimos na pele tudo o que ela fala, seja pelo medo ou pela experiência traumática por si própria. Não é um livro leve de ler, mas que vale muito a pena!
Acredito que Saavedra será reconhecida - para além do reconhecimento atual - como uma das grandes autoras da América Latina. Lendo-a senti o estilo de Gabriel Garcia Marquez - uma confusão realizadora - mesclado com uma emoção à Sylvia Plath em A Redoma de Vidro. Muito satisfeito, provavelmente procurarei ler todas as obras dela.
Livro belíssimo. Delicado, intenso e com uma das melhores narrativas que acompanhei nos últimos anos. Fluidez e sensibilidade dominam a escrita maravilhosa da autora.
Sinto que esse livro ficou na minha cabeça de uma forma viva. Faz já 7 meses que o finalizei e, vira e mexe, suas imagens aparecem na minha cabeça, ou penso em alguma de suas personagens.
Esse é um romance que carrega muitos livros em si mesmo. Não só porque as três personagens principais tem trajetórias distintas (não só umas das outras, mas também de si mesmas, apresentadas em dois momentos), mas porque a autora se utiliza de recursos literários bastante diversos. De certa forma, isso dá uma sensação de altos e baixos além de, imagino, poder ser pouco satisfatório para quem gosta de narrativas que se encaixam direitinho. A princípio, nada nesse livro me interessaria muito. As personagens não são particularmente novas, são mais arquétipos e, especialmente na primeira parte, achei a trama bastante previsível (com exceção de um ou outro detalhe), mas serviram de preparação para uma segunda parte mais interessante. Os pontos fortes, sem dúvida, são em como a autora se utiliza de certas imagens (capivaras, freiras) e como coloca algumas ideias interessantes como pontos de reflexão.
caramba….. ainda absorvendo o que se passou aqui escrita e narrativa envolventes. personagens bem construídos e história linda, dolorida e real. livro sobre abandono, luto e tristeza,mas também sobre raízes. potente e poderoso. não dou 5 porque em alguns momentos me senti um pouco perdida e porque não gosto de livros com finais tão abertos mas que leitura impressionante!
O que será que herdamos de nossos pais e passamos para nossos filhos? Será possível consertar o que há de errado e manter as coisas boas, sem fazer tudo igual ou totalmente diferente (tanto nas coisas boas quanto nas ruins)? Um livro sobre o que cada geração herda e deixa de herança. Saavedra ainda traz diversas referências filosóficas, antropológicas, e culturais, que vão desde a mente bicameral até ancestralidade indígena. Uma leitura muito introspectiva, onde as narrações e personagens se fundem com seus pensamentos. O único ponto fraco é o uso de clichês e estereótipos alemães, mas nada que estrague a experiência total. Um livro mágico.
"três mulheres vivenciam o exílio e o abandono, num desencontro de línguas, lugares e experiências." a busca por identidade e pertencimento permeia as histórias dessas mulheres, aparentemente desconectadas entre si, mas unidas, entre outras coisas, por tantas questões inerentes ao universo feminino, como maternidade, ancestralidade e as diversas violências a que estamos sujeitas. envolvente, sensível e intrigante, é o tipo de livro que parece nunca acabar, não pelo final aberto, mas pelas múltiplas camadas e simbolismos. a impressão que dá é que há uma infinidade de interpretações possíveis a serem descobertas e/ou processadas, e isso é maravilhoso!
"Depois, um primeiro olhar devolvido, o primeiro olhar, o único possível, e minha mãe dizendo em voz baixa, imperceptível, que só eu ouvia, minha mãe dizendo, mas por que eu devia?, eu sou apenas uma pessoa. E tirando a roupa, como se quisesse demonstrar o que afirmava, o corpo extremamente magro, o corpo escuro e magro dizia, mas eu só uma pessoa, e se há um mistério em mim, sim, porque há o mistério, e se há o mistério, ele não me pertence, ele acontece à minha revelia, porque eu, eu sou só isso que você vê. E eu fiquei ali observando fascinada e cheia de pavor a minha mãe se transformar, até que restasse somente um corpo, inerte, desabitado."
A ideia de escrever um romance de formação focado em gerações, embora não seja algo novo na literatura por si só, Com Armas Sonolentas inova por fazer com que os membros de todas essas gerações sejam mulheres, algo que eu, pelo menos, nunca vi na literatura. No entanto, embora o começo seja promissor, com o passar das páginas o livro vai ser perdendo para o surrealismo e as abstrações de modo que, assim como em muitos dos romances de Haruki Murakami, você passa a não fazer mais ideia do que está acontecendo. Tive que abandonar o livro lá pelas últimas páginas por sentir que eu estava imerso em um sonho febril, as palavras não querendo dizer mais nada. Enfim, assim como muito da literatura contemporânea, a autora perdeu a oportunidade de contar uma boa história (através de uma ideia, como disse anteriormente, inovadora) numa tentativa de "prosa poética" e de experimentos com a linguagem por meio de simbolismo excessivo.
Outra coisa que me incomodou foi o uso de várias referências (de modo que foram necessárias páginas inteiras de notas ao final do livro), sem nenhum propósito aparente (ao meu ver), o que para mim deu um ar de pretensiosismo. Temos um poema, não traduzido, na Língua Geral Amazônica só porque a antepassada das protagonistas era uma índia; trechos de um texto de Juana Inês de la Cruz, também não traduzidos, bem como várias alusões à poetisa e filósofa por razões que eu não compreendi (talvez por ela ser reconhecida como ícone proto-feminista?); dentre outros. Enfim, tudo isso me soou como academicismo, como aqueles trabalhos acadêmicos (especialmente os da área de humanidades) em que enchem o texto de citações vagamente relacionadas ao objeto de estudo apenas para dar mais "credibilidade" e por que a banca examinadora gosta.
Caso eu esteja sendo ignorante, caso eu não soube ler as entrelinhas, sintam-se livres para me apontar o que acabei perdendo durante a minha leitura.
Que livro, meu amigos. QUE L-I-V-R-O! Uma história pungente sobre identidade, maternidade e família. Alguns elementos fantásticos se misturam na narrativa com genialidade, ao ponto de parecer, em alguns momentos, realismo mágico. Participei de uma roda de conversa com a autora, o que acabou enriquecendo MUITO a leitura. Recomendo!
"satisfazer suas vontades era como um prenúncio de uma queda, cada vez mais célere, cada vez mais íngrime e assim, a cada sucesso, uma fagulha de infelicidade se ismicuía, lenta e perceptível” p. 13
O ponto alto do livro é a estética literária. A escrita é fluida e permite uma compreensão fora da lógica das cenas em questão. A temática é forte e ao mesmo tempo que é surreal é extremamente realista.
“Com Armas Sonolentas” de Carola Saavedra foi publicado em 2018 pela @companhiadasletras e li em março desse ano em conjunto com o @leiamulheresjundiai , que rendeu uma discussão maravilhosa sobre diversos temas abordados no livro. O livro é dividido em duas partes (o lado de fora | o lado de dentro), com três vozes narrativas diferentes: Anna, Maike e (Avó), e uma linha do tempo descontinuada. Para mim, a primeira parte do livro foi bem mais fluida, momento em que o leitor é apresentado para as personagens como quem as vê pelo lado de fora, ou recebe as impressões de como elas observam o mundo. Eu diria que é uma parte um tanto mais concreta se comparada com a segunda que carrega um clima mais onírico/fantástico, onde entramos nos pensamentos das personagens e as margens do real, alucinação, sonho, fantasia, deixam de ser bem delimitadas. Para aproveitar o máximo da leitura, aqui é preciso entrar de peito aberto e mente livre de amarras terrenas. Os momentos mais difíceis de leitura para mim estavam nas palavras da (avó), uma mulher que não é nomeada e carrega a ancestralidade de todo um gênero que sofreu - e ainda sofre - violências constantes e é silenciada repetidamente, diariamente. Os parágrafos maiores, a falta de espaço para respirar no meio do discurso, só aumentam a sensação de opressão. É preciso atenção, pois é ali que muitas cenas se conectam e provocam o leitor a pensar sobre os temas abordados e a forma como eles poderiam ser resolvidos dentre os caminhos possíveis que se colocam à frente das personagens. Essa foi uma leitura que me marcou, fez com que muitos questionamentos rondassem minha mente por dias e alguns deles ainda reverberam no peito.
📖 " (...) gostamos de imaginar que somos livres, completamente livres, mas isso não passa de ilusão, somos a nossa herança, uma herança gravada nas palavras de nossos ancestrais (...)"
Já havia conhecido a escrita da Carola Saavedra quando li "O inventário das coisas ausentes". Decidi baixar "Com armas sonolentas" depois de ter escutado algumas amigas comentarem sobre a narrativa e foi como um chamado, no tempo certo.
A obra intercala a história de três mulheres: Anna, Maike e uma mulher sem nome. As três possuem origens e características muito distintas, suas histórias parecem distantes, entretanto, conforme conhecemos mais sobre suas vidas, percebemos conexões e mistérios profundos entre elas.
A autora varia a linguagem e a estrutura do texto, o que ajuda na formação das imagens que o leitor cria sobre a personalidade das três. As reflexões que as personagens fazem mostram a complexidade e fortalecem a perspectiva do abandono na narrativa. O desconhecido é evidenciado de forma muito exata, pois as mulheres encaram o estrangeiro, estão em trânsito constante, sendo ele geográfico ou não, apresentando-se diante de uma sensação de não pertencimento que acompanha o livro até seu desfecho.
Além de questões ligadas à ancestralidade, tendo em vista que as relações maternas são postas como forma de busca por uma identidade, percebe-se certa surrealidade e espiritualidade no texto. Enfim, é uma obra complexa de se explicar, sobretudo porque me tocou profundamente e virou um dos meus livros favoritos.
este livro da carola é um daqueles livros que você lê e precisa tirar algumas horas ou dias ou até meses para digerir tudo o que foi narrado. é um daqueles livros que te deixa embasbacado, sem conseguir expressar exatamente em palavras aquilo que você sentiu enquanto o estava lendo. após algumas semanas da leitura, ainda me sinto como que flutuando num mar de sensações que não consigo expressar muito bem. o livro aborda temas muito sensíveis de uma forma honesta e direta ao ponto. as questões envolvendo maternidade compulsória, abandono parental, abuso, exílio e, sobretudo, ancestralidade, são alguns temas que permeiam o romance. carola conseguiu com maestria colocar no papel algumas questões que são centrais na vida de uma parcela significativa de mulheres, retratando de uma forma estupenda os sentimentos, os pensamentos e os desejos das protagonistas de seu romance, criando um ambiente que coloca na mesa e discute temas que ainda são invisibilizados e pouco debatidos. ao longo do livro, somos introduzidos a três personagens cujas vivências acabam se complementando, apesar de seus contextos e realidades distoantes, e cujas narrativas são divididas em duas partes, o lado de fora, onde acompanhamos seus respectivos percursos em momentos chave de suas vidas, e o lado de dentro, onde somos introduzidos aos seus inconscientes, presenciando um momento de realismo fantástico no qual carola brilha através de sua escrita. os conflitos internos das personagens e suas buscas por algo que nenhuma sabe muito bem o que é, acabam envolvendo o leitor em uma situação de angústia e compreensão. afinal, estamos todos a procura de um sentido, de uma identidade, a qual muitas vezes não conseguimos alcançar.
Faz algum tempo que não escrevo uma avaliação. Não escrevo pra ninguém em particular, acho que só pra mim. Sei do que gostei e do que não gostei.
Não gostei do nhengatu ser apresentado como a Língua Amazônica, quando era muito mais que isso. Era uma resposta ao colonizador, era a língua que mais se aproximava do ser brasileiro. Reduz-se o ser indígena a uma figura mística, totêmica, que fala nhnengatu. Se fala muito do "não parecer" e do parecer, mas se deixa pra lá as mais de 300 povos que vivem no Brasil e a mostra de que todos nós falávamos nhengatu, até ser proibido pelas reformas pombalinas, todos somos indígenas: Saavedra, Clotilde e eu. As diferenças e semelhanças somos nós que criamos.
Gostei das gerações que são de três mulheres, gostei que a avó foi a mãe e que ela não deixaria que um detalhe, como a biologia, ou a morte, impedissem ela de ser a mãe.
Odiei o Brasil resumido a um Rio de Janeiro com Amazônia. Entendo o onírico, mas eu sou amazonida, onde eu estava ali? Moveu-se a Amazônia para o Rio e se despejou a mata Atlântica e tudo bem.
Adorei o Carnaval, a freira (Inês) que falava o ininteligível e o demônio (fantasiado?) Com veborragia límpida (ele escrever poesia foi de um charme e sutilezas únicos).
Não gostei do final, é confuso e desorientador.
Gostei do final, não se preocupa com a ditatura da razão e te dá várias direções.
Com essa leitura, finalizo o décimo livro desse ano e completo 1/4 do meu desafio literário para 2023. Posso dizer que até aqui tive uma vivência ampla, vasta e completamente nova das minhas experiências literárias. Venho tendo contato com culturas e formas de ver a vida muito diferentes em relação às quais eu estava acostumada.
Esse livro foi um retrato do que é novo, de várias formas. A ideia de relacionar a Alemanha com o Brasil, e com um certo misticismo religioso que tem um quê de matriz africana foi genial. A narrativa desse livro consegue impactar o nosso coração trazendo sentimentos profundos de forma tão crua, que parece que encostam uma faca em nosso coração. Gostei demais do fato de a autora ter nascido no Chile, se mudado para o Brasil aos três anos e por isso se identificar como brasileira. De fato, adoro ver o Brasil como pano de fundo para histórias tão interessantes.
O que dizer do final? Não entendi nada. Talvez a autora inovou demais, colocou fantasia demais sem explicar realmente a resolução desse enigma. A história já seria importante demais pelas questões feministas que levanta, mas o mistério me deixou ainda mais intrigada e me fez querer conhecer mais da autora.
Gatilhos: estupro, espancamento, violência doméstica e misoginia, gravidez, abandono de infantil.