«O trabalho de Andreia C. Faria está entre os mais urgentes, magníficos, da poesia contemporânea. A sua profundidade, uma contenção que não a impede da frontalidade, o enunciado terrivelmente irónico, o rasgo inesperado de cada verso, fazem do seu texto uma novidade por classificar, demarcando-a inclusive do colectivo de mulheres poetas que hoje escrevem também em força e bastante esplendor.
Admiro a sua atmosfera desarmante construindo grande intimidade, sem se tornar obscena e sem fazer cedências. Há uma bravura férrea que nos parece sugerir que a intimidade está posta no poema como matéria responsável, animal ciente que se analisa numa medicina rica, eficaz. São poemas da “difícil cria”, pessoa improvável, consciência improvável, como desigual, desajustada, que profere para saber de si mas, sobretudo, para desmascarar. O poema está para a perplexidade mas está igualmente para a constatação de que adiantará muito pouco perante o estrago elementar existencial.»
Andreia C. Faria nasceu no Porto, em 1984. Publicou em 2008 o seu primeiro livro de poemas, De haver relento (Cosmorama Edições). Seguiram-se Flúor (Textura Edições, 2013), Um pouco acima do lugar onde melhor se escuta o coração (Edições Artefacto, 2015) e Tão Bela Como Qualquer Rapaz (Língua Morta, 2017), que recebeu o Prémio SPA 2017 para Melhor Livro de Poesia.
"A primeira vez que a fotografaram ela teve a impressão de assistir ao disparo, ao preciso instante em que a bala entra na carne. O seu rosto papoila desfeita, atingida nas pétalas por um golpe de vento, magoada e expansiva como boca suja de baton. Achou-se frágil. Tocada, como se diz na fruta ainda viva, imprópria para comer. Achou-se bela e diminuída pela evidência. E com o tempo uma mulher chega a apreciar a serena violência que lhe habita o rosto. A mancha provocada pela obturação da lente assinala para cada um dos seus empreendimentos, para cada gesto e alegria, um pequeno luto."
Excerto de "Sais de Prata"
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"Diz-se: há fantasmas na máquina, gente sem sombra, mas graus profundos de obscuridade. Diz-se: é a mais pura solidão,
boas horas de açúcar e vinho derramado, e que se acorda com a boca em sangue como guelra sabiamente dedilhada.
Diz-se: é um fogo que se anima contra a áspera superfície do teu corpo - um caule que sustém a tua fronte entre os cabelos longos das flores que quando morrem deixam o ar velado de uma só combustão.
O filme, um florescer de muitas águas onde o polvo é uma imagem parada que medita. Uma mulher floresce em muitas águas onde a carne aniquilada vem pensar e remexer baixios."
Excerto de "O filme, um florescer de muitas águas"
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Há uns meses decidi comprar alguns livros da colecção "elogio da sombra": mesmo que soubesse pouco ou muito pouco sobre os autores, na altura guiei-me pelas pesquisas que fiz. Recordo-me nitidamente que no caso da Andreia C. Faria, mais do que poemas dispersos que fui encontrando, o que me marcou foi uma entrevista que li e que me deixou intrigada e muito curiosa em relação à sua poesia. A leitura deste livro, no entanto, foi pontuada por alguns dissabores: comecei a perceber que algumas pessoas - que até têm gostos semelhantes aos meus - adoravam a escrita desta poeta mas, dentro de mim, pouco ou nada se agitava no decorrer da leitura. E é evidente que, por mais que os meus gostos sejam compatíveis com os de outros leitores, há, e haverá sempre, espaço para divergências, mas não conseguia mesmo entender os elogios que lhe teciam... e confesso que os primeiros livros me deixaram na mais pura indiferença, raros foram os poemas que me interessaram: a mudança - vertiginosa, posso afiançar - deu-se quando pisei o "Tão Bela Como Qualquer Rapaz"... fiquei deliciada com a poesia dela e passei a recomendar vivamente este livro em particular (embora tenha adorado, também, "As Ervas Altas e os Pulsos").
"Estou entre a idade de Cristo e a idade com que Simone Weil morreu. Tendo, como eles, a ampliar fenómenos, os mitos ou o próprio mar encabeçado por um touro, a minha roupa ao fim de um dia de uso arrastando a areia de um qualquer abismo. Mas se resisto às tentações é porque não as sinto. Não as conto entre os tentáculos do dia, a registadora máquina, a trituradora de papel. Seriam anestésico de prazos ou da dor ciática - logo eu que acredito em anjos, suas asas de veludo esconjurado pelo vinho, logo eu que não separo o coração da violência couraçada de um tambor, não sinto.
O pecado, o fogo astral, a aliança entre vizinhos - nada disto em mim figura, nenhum gatilho primordial. Gostaria de ingressar nesse negro domínio, o entreunhas, a carne grega, romana ou raiana dos homens, o lugarejo, o logro que colora à nascença e destrói o amor.
Quase-trinta-e-quatro, corpo-luva em ecléctico quarto, e não sinto. A baia espúria da fé tanto não cobre as frias veias da razão como aparta a visão do esterco, o sono fixo de cavalos, operários ou amantes."
“Com que destreza crescem na pele as arestas, nódoas negras como lagos em tardia superfície Com que cadência a paisagem fere - a altitude do sono a dobra do lençol intacta e na boca a fina lâmina do pó desabitando-te
Com que saber a pele se quebra com que constância as linhas recuam como se amar interrompesse como se fosse indistinto desastre ou criação e avançasse em metonímia - da água corrente a presença da mordedura o animal da vertigem a carne que floresce para a morte”
Estava com saudades de ler poesia e a da Andreia C. Faria chegou no momento certo. Neste exemplar, que compila as suas obras anteriores, temos acesso direto a planos dicotómicos, porque há poemas de extrema felicidade e outros de pura melancolia; há sedução, medo, memórias e uma viagem encantadora de metamorfose. Sinto que, à medida que fui avançando, fui descobrindo uma voz menos metafórica, como se se fosse libertando do pudor de se mostrar vulnerável e se apresentasse mais confiante para nos mostrar as suas vivências e as suas inseguranças. Além disso, há uma noção de finitude e uma vontade imensa de continuar a explorar o mundo