«O Livro das Comunidades», publicado originalmente em 1977 pelas Edições Afrontamento, é visto pela própria Autora como «o livro-fonte» de toda a sua Obra. Com ele se inicia uma primeira trilogia - «Geografia de Rebeldes» - e um percurso que levaria Maria Gabriela Llansol a convocar para os seus livros, nessa primeira fase da sua Obra, um grande número de figuras que lhe permitiriam fazer uma leitura original e única da história da cultura europeia entre a Idade Média (místicos e beguinas, herejes e iconoclastas de vária proveniência) e o nosso próprio tempo (com a revisitação e reinterpretação de uma figura como a de Fernando Pessoa, objecto do último grande livro de inéditos saído na Assírio & Alvim em 2015, «O Azul Imperfeito»). O sentido inovador deste livro-chave é dado pela autora numa carta-entrevista de 1980, onde escreve: «Quando acabei "O Livro das Comunidades", reconheci a marca resultante desse encontro; o mesmo sucede quando abrimos as portas das sementes e a luz que sempre lá esteve nos indica a hora. Não se trata aqui de secretar mundo imaginário identificado com a irrealidade. A imaginação a que me refiro faz conhecer. É a criação de um tecido de singularidades». A reedição d'«O Livro das Comunidades» pretende trazer de volta essa singularidade e assinalar, em 2017, no âmbito de outras iniciativas que o Espaço Llansol levará a cabo, o início quase absoluto desta Obra. Para marcar a diferença na reedição deste livro simbólico de Maria Gabriela Llansol (que neste momento se encontra esgotado), prevê-se a inclusão de um extratexto com imagens alusivas ao universo das figuras principais da linhagem da «Geografia de Rebeldes»: João da Cruz e Ana de Peñalosa, o místico Mestre Eckhart, o «teólogo da revolução» Thomas Müntzer e Nietzsche, entre outras. João Barrento
MARIA GABRIELA LLANSOL nasceu a 24 de Novembro de 1931, em Lisboa. Licenciou-se em Direito e em Ciências Pedagógicas, tendo trabalhado em áreas relacionadas com problemas educacionais. Em 1965, abandonou Portugal para se fixar na Bélgica. Regressou há alguns anos a Portugal. É um caso ímpar na ficção contemporânea, de jorrante, inesperada e original criatividade. De estilo muito próprio, a sua forte personalidade afirmou-se desde 1957, com as narrativas de Os Pregos na Erva, consolidando-se com O Livro das Comunidades, 1978, e com todas as suas obras posteriores, de que poderemos salientar A Restante Vida, 1978, e Um Beijo Dado mais tarde, 1990, e Lisboaleipzig, 1994 e 1995. Aliando a subjectividade enunciativa a um forte pendor mítico de implicação lírica, que funda numa visão da vida e do mundo de tipo religioso herético, sensualista e naturalista, a sua ficção caracteriza-se por uma hibridez de registos e de convocação, temporal e espacial de entidades, que no entanto assume uma coesão que lhe é dada por uma marca discursiva persistente e inconfundível. Faleceu a 3 de Março de 2008, em Sintra.
(sobre a morte) ...Quando me sinto ser senão olhos (que não tenho mais limites), sinto que sou eu, e morta; posso então olhar o meu corpo como qualquer coisa caída no chão. O que não me perturba. Posso olhar cada parte do meu corpo como se estivesse no seu exterior; não me importo que o meu corpo se torne mineral; silício ou argila, todos os minerais (todas estas matérias) eram um pouco seres vivos onde existia uma cadeia de energia cósmica que passava. Tudo é extremamente simples, se for a mesma coisa. Nas ocasiões em que me sinto nada - a morte não é nada. Quando perco o mundo, aparece a terra... ... (sobre o amor) E o amor? O som amor...É preciso fazer a distinção entre amor e sentimento maternal, segurar. O que corresponde um pouco a uma etapa, a um momento de sobrevivência, até chegar o dia em que, tendo já passado pelo ventre de sua mãe, ele se torne Amor; para mim, o amor é a força que aquece aqueles que passam pelos teus domínios com o fim de lhes permitir atingir o estádio em que tu estás. Seja olhado com olhar terno: é a força, uma força. O mundo erótico é verdadeiramente estranho; e vejo que o meu corpo aí não está. É qualquer coisa de artificial, como se para atingir o orgasmo devesse ter imagens diante de si; é um instinto de morte, qualquer coisa de imaturo, como se houvesse necessidade de uma pena que passasse pelo corpo para poder; o campo do amor me vai formando como uma pessoa maternal; dantes, eu acariciava sem ter necessidade de acariciar, respondendo a um pedido; era alimentar um buraco. Estou convencida de que se um ser humano, sozinho, não pode ficar cheio, dificilmente também poderá passar a um outro plano. Se o tipo de pedido que te fazem é um pouco sádico, então nada podes fazer. As ideias...é na própria cabeça que se pensa. Senão é como pedir a uma criança que parta uma caixa já partida, e nada destrua. Na minha vida, só uma vez amei. Alguém que estava num espaço diferente, que era um espaço de energia. Então, a sedução desaparece.
Leitura "difícil" no sentido mais delicioso do termo: o entregar-se ao labirinto da linguagem, onde povoa uma comunidade de imagens regidas por um tempo espirilado, fuga da linearidade e da subordinação do texto à narrativa. Texto vivo, quente, pulsante.