Maria Judite de Carvalho foi a escritora da solidão e do silêncio das «palavras poupadas». Fez nas suas novelas e contos o retrato irónico e desencantado da pequena burguesia lisboeta, das frustrações e desistências das mulheres e dos velhos, de toda uma sociedade lentamente envenenada pela moral hipócrita do fascismo português. Aliando o humor à arte da concisão e da reticência, convidou o leitor a entrar nas suas histórias e a completá-las, a vivê-las de algum modo. Foi sem dúvida uma das maiores ficcionistas do século XX. Foi casada com Urbano Tavares Rodrigues
MARIA JUDITE DE CARVALHO nasceu em Lisboa a 18 de Setembro de 1921. Estreou-se com o livro de contos Tanta Gente, Mariana (1959) e foi galardoada com o Prémio Camilo Castelo Branco pela colectânea As Palavras Poupadas (1961). Além de contos, publicou romances e crónicas, cultivando também o jornalismo. Na sua obra reflecte-se o dramatismo da solidão do mundo urbano, onde há muita gente e pouca alma. Publicou Paisagem Sem Barcos (1965), Os Armários Vazios (1966), Flores ao Telefone (1968), Os Idólatras (1969), Tempo das Mercês (1973), A Janela Fingida (1975), O Homem no Arame (1976), Além do Quadro (1983), Seta Despedida (1995), A Flor que Havia na Água Parada (1998) e Havemos de Rir? (1998). Reuniu parte das suas crónicas em Este Tempo (1992) e Diário de Emília Bravo (2002, póstumo). Foi condecorada pela Presidência da República com o Grande-Oficialato da Ordem do Infante D. Henrique, em 1992 e recebeu, a título póstumo, o Prémio Vergílio Ferreira, pelo conjunto da sua obra, em 1998.
ESTE TEMPO 5★ SETA DESPEDIDA 4★ A FLOR QUE HAVIA NA ÁGUA PARADA 3★ HAVEMOS DE RIR! 3,5★
"TURISTAS Os turistas em grupo sempre me deslumbraram e me fizeram uma certa inveja. É que nunca percebi bem se eles são gente se são aves em migração estival. Tal como as aves, estão mais interessados nas estátuas e no milho do que nos seres humanos. Tal como elas, chegam, estão e partem em bando. São ainda lindamente coloridos e inexpressivos, iguais uns aos outros e, quando falam, é em grupo, e então palram e então piam, quem os entende? Nunca fiz uma viagem organizada e essa é uma das minhas frustrações. Estar num país sem entrar nele, aflorá-lo ao de leve, esvoaçá-lo, ver só o que foi combinado com antecedência por outros, apagar implacavelmente tudo o resto, apagar os seres humanos e todo o sofrimento dos seres humanos, que maravilha. Contentar-se com essa alegria em grupo que é igual em todo o mundo, desejá-la. Estar de passagem. Estar e já ter partido. Visitar os monumentos mas às vezes não ver os monumentos, nem isso. Porque às vezes não há tempo, almoça-se numa cidade, vai-se jantar a outra. E fotografa-se à pressa para ver depois. Olha-se para a máquina por falta de tempo para olhar a máquina e o monumento. E então prefere-se a máquina de viajar no passado. E mais tarde, já em casa, de pantufas, ou em reunião de amigos, mostram-se fotografias e slides e todos soltam muitas exclamações. Também há turistas isolados, uma tristeza. Aquele japonês, por exemplo, em Paris. Lá adiante a torre Eiffel, e ele com a sua bela máquina fotográfica japonesa, muito perfeita, muito complicada, muito cara decerto, no respetivo tripé. Retificou e voltou a retificar a posição da lente, depois foi pôr uma caixinha de fósforos no solo, um pouco adiante, perto da máquina, longe da torre, entre ambas. Levou um tempo ... Quando tudo ficou perfeito e até mais que perfeito, colocou-se no lugar da caixinha, pôs-se muito quieto, muito direito e depois, de repente, rasgou a boca num sorriso de total felicidade. Clique, disse a máquina na língua das máquinas. Ótimo, pensou decerto o japonês em japonês. Arrumou tudo cuidadosamente e foi-se embora. Talvez fosse sorrir junto de outro monumento, quem sabe se noutra cidade, noutro país. Sorrir para a eternidade dos álbuns de fotografia ou das máquinas de projeção." - O Jornal, 4-8-78
E o tempo foi passando, Seta despedida não volta ao arco.
Há um fio condutor que percorre a obra de MJC, desde o início ao fim: a solidão, a ausência, a tristeza. Todos estamos sozinhos, Mariana - bradava um pai no primeiro conto da primeira coletânea da sua obra - Sozinhos e muita gente à nossa volta. Tanta gente, Mariana! E ninguém vai fazer nada por nós. Ninguém pode. Ninguém queria, se pudesse. Nem uma esperança. Este desalento de estar só, só consigo mesmo, só no meio de tantos, perdura ao longo de toda uma cronologia do seu acervo (apenas guardei o volume que compreende os anos 1968-73 para ler mais tarde, mas não há necessidade de assumir que no espaço de tempo que vai de '68 a '73 a sua postura fosse qualquer coisa de muito diferente daquela que nos oferece a obra entre 1959 a 1998) e é nela que reside a verdadeira beleza de MJC.
Estamos todos sós no mundo, mais ou menos. Irremediavelmente, mais ou menos. Há pessoas que nunca deram por isso, Quanto às que deram, umas habituam-se, outras não.
Os mundos. Cada um tem o seu. Todos fechados, já reparaste? Às vezes uma pessoa vai até outro mundo de passeio, mas nunca se demora, é arriscado.
Ainda assim, este quinto volume é diferente de todos os outros, talvez por reunir estilos literários tão díspares como o são as crónicas, o conto, a poesia e a dramaturgia. Por isso também, é mais fácil gostar de umas fórmulas do que de outras. No meu caso, não fiquei particularmente impressionada com a poesia de MJC cujos temas são muito fiéis aos "princípios" da sua obra, mas cuja forma, demasiado simples - talvez apenas despretensiosa -, não me cativou; da mesma maneira, a sua peça Havemos de Rirpareceu-me demasiado obscura, muito artificial, muito estática, como obedecendo ao discurso que se espera numa narrativa e que, naquela que é a dinâmica do teatro, não funciona tão bem. Ainda assim, apreciei a mensagem e não tive dificuldades em transferir as suas cenas para a época contemporânea. Os personagens são magnéticos, disso não há dúvida, mas senti que alguma coisa ficou ainda por trabalhar.
Eu acredito em muitas coisas.(...) Estúpido, não acha? Estou sempre disposta a acreditar que as pessoas são amigas, sinceras, estupendas e que as pessoas não querem nada em troca. Às vezes, penso que sou mesmo estúpida.
Já com as crónicas, fiquei mais agradada do que esperava com o primeiro conjunto (Este Tempo) uma vez que, contrariamente a todas as outras crónicas que escreveu, MJC foca-se aqui em específico, e conforme o nome indica, ao tempo (aliás todo este volume está subordinado a esse tema): tempo que passa, tempo que deteriora, tempo que esquece, tempo que não se recupera, tempo inevitável. E esse tratamento que a autora foi fazendo ao longo da coletânea acertou exatamente naquelas que são as minhas "preocupações" filosóficas. Não deixa também de ser encantador ler nestes textos referências às políticas da época, ao desmistificar do mundo pelo avanço da ciência e da tecnologia (a tão temida chegada à lua nos anos 60!), aos costumes, às artes - e algumas dessas referências são tão suas contemporâneas que hoje já nos parecem, de certa forma, tolas ou ingénuas. Mas, subjacente a cada uma delas está um tema intemporal: a desumanização pela máquina - era uma preocupação para Chaplin, era-o para Maria Judite de Carvalho e é-o ainda hoje para nós.
(...) damos connosco já não gente (onde isso ficou!) mas peçazinha de máquina, parafuso, prego, roda dentada, sei lá, um desses pequenos objetos sem importância que ninguém vê. Subitamente fazemos parte de um todo e não podemos libertar-nos, voltar atrás, ao tempo de coisas simples, naturais e tranquilas que vivemos ou conhecemos de ouvir contar. É que não podemos fugir, estamos para todo o sempre presos na engrenagem.
Ainda assim, não sou, de todo, fã de crónicas. Nada a fazer: leio uma, leio duas e já tive a minha dose. Por isso mesmo, num volume cuja metade é ocupada pelas ditas, a minha vontade fica um pouco reduzida...além disso, fora o conto George que é uma das minhas mais queridas referências, mesmo a coletânea Seta Despedida não me atraiu como outras coletâneas de contos mais antigas da autora. No seu todo, não deixa de ser um volume sólido, mas a obra de maturidade de MJC não faz tanto o meu estilo como as suas primeiras obras - verdadeiramente disruptivas e revolucionárias. No final fica sobretudo aquela sensação de desalento, de solidão, de tristeza que é apanágio da sua caneta.
(...)julgo sempre que as pessoas mudam para melhor. E não é verdade, pois não? Ninguém muda para melhor, começando por mim. Quanto mais vivemos, mais a vida nos estraga. A própria esperança vai desaparecendo, não vai?
ESTE TEMPO ⭐⭐⭐ SETA DESPEDIDA ⭐⭐⭐ A FLOR QUE HAVIA NA ÁGUA PARADA ⭐⭐⭐ HAVEMOS DE RIR ⭐⭐⭐
Em "Este tempo" alcançamos a intemporalidade da escrita da Maria Judite de Carvalho. Como se nos abrisse portas para a Lisboa de outrora, com as mesmas vaidades e feridas que ainda vemos hoje.
O quinto volume das Obras Completas da Maria Judite de Carvalho dá-nos uma colectânia de crónicas que a autora escreveu para diversos jornais e revistas; uns pequenos contos; poemas e ainda uma peça de teatro.
Adorei as crónicas e os contos! Apesar de ter o desejo de ler mais contos ao estilo do "Tanta Gente, Mariana", a verdade é que as crónicas - principalmente - me prenderam muito. Maria Judite é uma expectadora exímia do quotidiano e das subtilezas que marcam a vida rotineira. O que mais me espantou e prendeu foi o facto de as crónicas serem dos anos 60, 70 e 80 e os problemas ali retratados serem ainda os mesmos: uma Lisboa que trata mal os lisboetas, a crise na habitação, a falta de árvores (!!!!) na cidade. A única coisa que mudou foi o facto de Lisboa se ter, pelo menos, aberto ao rio. Uma queixa que a nossa querida Maju tanto expressava, desconsolada.
Os pequenos contos também são bonitos de se ler. Os poemas, defeito meu, acabo sempre por ler e seguir em frente sem me sentir particularmente agarrada. Porém, o volume termina com a única peça de Teatro da autora, que gostei muito de ler! Conta uma historieta caricata bem no estilo trágico-cómico igualmente típico da autora.
Enfim, é sempre um deleite ler Maria Judite de Carvalho. Esta é uma coleção que vale a pena ter na biblioteca e que me orgulho de ter feito.
Maria Judite de Carvalho foi uma das maiores descobertas do meu ano e continuo fascinada com a sua escrita. A minha ideia era ler os volumes por ordem, mas não consegui resistir e avancei logo para este.
Há uma certa intemporalidade nas suas palavras, na forma como observa o mundo e constrói os seus pensamentos. Além disso, sinto que não tinha qualquer receio de se dedicar a géneros distintos, desde que isso lhe trouxesse satisfação (o que fica visível no parágrafo que antecede a peça de teatro).
Transitando entre crónicas, contos, poesia e texto dramático, este quinto volume é muito rico e sei que acabarei por o revisitar.