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Tornar-se Negro

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Tornar-se Negro, escrito pela psiquiatra, psicanalista e escritora negra Neusa Santos Souza, é obra de referência no estudo da questão racial no Brasil. e  apresenta o estudo teórico e vivencial da autora sobre a vida emocional dos negros. Na obra, Neusa mostra a auto rejeição do negro por seu aspecto exterior e explica que é necessário um raro grau de consciência para que esse quadro se inverta, mas quando isso acontece, a cor e o corpo do negro são sentidos como valor de beleza. Com um texto direto objetivo e recheado de depoimentos, a obra foi publicada inicialmente em 2008 e relançada agora pela LeBooks Editora em função de sua abordagem pioneira e da importância do assunto tratado.

108 pages, Kindle Edition

First published January 1, 1990

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Neusa Santos Souza

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Displaying 1 - 30 of 38 reviews
Profile Image for marina.
8 reviews
August 31, 2020
Em experiência similar à que tive lendo Fanon pela primeira vez, encontrei-me desnorteada e desafiada. A Psicanálise segue sendo um campo complexo para mim. Todavia, através de leituras como essa, cultivo curiosidade e sinto ir conseguindo desvelá-la. Apesar de ainda precisar conferir os escritos de Bicudo, sinto que conheci através da obra de Souza o que chamaria de o início glorioso dos estudos sobre a subjetividade negra na Psicologia brasileira, mais especificamente a experiência vivida pelos negros em ascensão social de sua época. Ela consegue demonstrar veementemente o imbricamento entre o mito da democracia racial, a ideologia da mobilidade social ascendente e a constituição do processo de racialização, em estudo o caso do negro: hipotetiza sobre uma "identidade calcada em emblemas brancos", por vezes bastante aproximável às máscaras brancas fanonianas. Só fiquei me perguntando sobre a instrumentalização da teoria edípica para suas análises... Pois bem. Neusa Santos Souza é indiscutivelmente a base para qualquer estudo psicanalítico que busque compreender a experiência vivida por um brasileiro, seja ele branco ou negro; ao menos estudo esse que se diga coerente e descolonizado. Em dados momentos, pude sentir o fervor revolucionário que certamente urgia ser transmitido em seu momento histórico; imagino como deva ter sido ser uma militante do Movimento Negro, psicanalista e pesquisadora em 1983. Recomendo a leitura aos que se interessam por uma Psicologia de fato revolucionária; além de ser importantíssimo, a escrita é bem estruturada e curta. O posfácio do Baremblitt me surpreendeu, mas foi bom de ler tb. Bjs de luz.
Profile Image for Lucas.
163 reviews31 followers
July 23, 2020
Achei muito bom o livro. Principalmente porque a obra resume bem a dimensão do racismo que julgo ser a mais difícil para uma pessoa não-negra enxergar.

Tragicamente, a autora se suicidou em 2008, jogando-se de um prédio. O episódio e o tema do livro forçam a analogia óbvia com Ismália, mas também a dramatização simbólica de um ponto fundamental da obra: o problema apresentado pela autora possivelmente não tem solução a nível individual.

Neusa argumenta que todos nós temos um Ego Ideal, um ser que serve de norte para a construção do nosso ego. Ocorre que a construção desse Ego Ideal é fortemente influenciado pela cultura em que vivemos, assim, no Brasil esse Ego Ideal é, em geral, branco. Como todo mundo, o negro no Brasil dedica sua vida a alcançar e se transformar nesse Ego Ideal, mas , a diferença dos demais, para o negro o alcance desse ideal é por definição impossível. Por óbvio, ninguém pode se tornar branco.

Contudo, o negro só percebe isso depois de se desvencilhar das amarras materiais que ele julgava serem os únicos obstáculos para que fosse tratatado com respeito, dignidade e humanidade. A limitação das possibilidades de ascensão social do negro só se tornam evidentes para ele depois de muito sofrimento pessoal, mas tornar-se negro não traz nenhuma solução. Pelo contrário. Desse ponto em diante só fica mais evidente a distância entre o Ego e o Ego Ideal e a consequente melancolia que isso gera.

Existe possibilidade de superar esse imbróglio? A autora não explora muito, mas parece acreditar que seria possível reverter a ideologia dominante – o que, ao meu ver, não resolveria o problema do indivíduo que já fora criado na ideologia branca.

Pode-se discutir a validade do modelo teórico apresentado por Neusa Santos, mas ele explica alguns fenômenos que observamos na realidade. Em particular, parece-me que a abordagem da autora explica como ninguém o fenômeno do auto-ódio, amplamente relatado por negros brasileiros e típico de minorias étnicas em outros contextos sociais (ver self-hating jew). Sobre o assunto, recomendo em particular o episódio de podcast que me levou a ler esse livro (clique aqui).

Os pontos negativos para mim foram os seguintes. Em primeiro lugar, acho que esse livro tem uma redação desnecessariamente rebuscada e outros problemas de forma. Mereceria uma edição mais cuidadosa.

Um segundo problema é que, na parte de revisão teórica, Neusa se baseia muito no trabalho de Florestan. Acho que não tinha muita escapatória na época, mas o trabalho de Florestan tem muitos problemas como comentei aqui. Além disso, essa "revisão teórica" não acrescente nada ao trabalho de Neusa, exceto demérito.
Profile Image for Marcos Henrique Amaral.
125 reviews10 followers
February 23, 2020
A expressão que dá título a esta obra ― “tornar-se negro” ― se presta à desessencialização da categoria “raça” e, por conseguinte, do fato de “ser negro”. Com isso, Neusa Santos Souza consegue ― além de desvelar a trama de violência simbólica que se desenrola a partir de uma dimensão supergóica que busca negar a possibilidade do belo e do absoluto aos corpos negros ― indicar a dinâmica psíquico-afetiva, em interface com a trama sócio-racial, a partir da qual um indivíduo negro consegue afirmar-se sem o estigma da “sujeira” informado por uma lógica sistêmica de que não faz parte; ou melhor, postular a possibilidade de consecução do belo a partir da ênfase conferida à questão identitária.
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Para tanto, o processo de “tornar-se negro” demandaria o deslocamento das proposições identitárias informadas pelo Outro branco, à maneira de um “mito negro”, em direção a uma autoafirmação com origem no Mesmo.
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Como se ocupa em demonstrar a autora, à naturalização de características como a “sensibilidade”, a “musicalidade” e a “ritmicidade”, conquanto estas pareçam elogiosas, subjaz a formulação de um “mito negro” que reproduz hierarquias raciais históricas e impõe a marca do diferente/exótico. Em outros termos, mesmo quando se vestem de significação aparentemente positiva, os estereótipos que constituem essa mitologia negra tendem a reproduzir os dualismos que cindem inexoravelmente brancos/racionalidade/mente e negros/irracionalidade/corpo, porque assentados em uma perspectiva tão biologizante quanto as teorias raciais de matriz evolucionista. Nas palavras de Souza (2019, l. 547, paginação irregular), “quando se fala na emocionalidade do negro é quase sempre para lhe contrapor a capacidade de raciocínio”, convertendo competências como a ritmicidade e a dança em símbolos de uma inferioridade intelectual.
Profile Image for Sillas.
13 reviews1 follower
January 21, 2022
Apresentando dez depoimentos de indivíduos que aceitaram participar de sua pesquisa, a psicanalista defende argumentos em relação aos problemas emocionais dos negros que passaram a se inserir nas camadas médias e médias-altas da ordem social brasileira da segunda metade do século XX.

O livro ainda demonstra um esforço de diálogo com o materialismo histórico dialético de Marx e Engels. Em algum momento do livro, diz-se que é na ideologia que a psicanálise se aproxima do materialismo histórico, na medida em que a primeira observa os impactos subjetivos e emocionais da ideologia no indivíduo, ao passo que o materialismo a explica de maneira sociológica.

Aprendi muito com essa leitura e sou grato pelo trabalho de pesquisa realizado por Neusa Santos Souza. O capítulo escrito pelo orientador também me agradou bastante.

Recomendo a leitura a todo mundo!

Profile Image for paulinha .
71 reviews2 followers
August 17, 2023
uma leitura tão importante pra mim em tantos âmbitos. academicamente, me traz de volta todo sentido do que eu escolhi estudar. me faz lembrar por que eu gosto de psicologia. pessoalmente, é um terceiro olho um pouco difícil de abrir, mas extremamente necessário no meu processo de entender minha identidade. quero ainda falar muito sobre esse livro, sobre uma psicologia racializada, sobre Neusa Santos, sobre tornar-se parda/indígena…muitos trechos grifados no livro, muitos pensamentos na cabecinha.
Profile Image for Mariana Ramos.
Author 2 books3 followers
April 10, 2021
Um livro muito forte e importante, fruto de uma série de entrevistas com pessoas negras em ascensão no Brasil. A linguagem adotada por Neusa é de fácil entendimento e o conteúdo é bastante rico em referências. Achei os capítulos “Apresentação” e “Digressões Metodológicas de um Colaborador”, os quais foram escritos por outras pessoas, com uma linguagem mais complexa e a leitura menos fluida do que o restante do livro. No mais, uma bela obra.
Profile Image for Giovana Cristina.
40 reviews
November 25, 2024
Um pouco desatualizado, de 83 pra cá muita mudança em curso e criamos todos os dias novas formas de estar na miséria. Mas ainda dói. Não sei se a minha psicóloga (quem me recomendou) me odeia pessoalmente ou se ela só faz o trabalho dela muito bem - penso ainda se ela sabe dos pontos em que me identifico com a Luísa.
Profile Image for Leonardo Longo.
187 reviews16 followers
January 21, 2021
Excelente livro de Neusa Santos Souza, que aborda a ascensão social do negro brasileiro, no que tange aos conflitos emocionais daí decorrentes. Tal ascensão foi analisada neste livro utilizando-se o método do estudo de caso e a técnica de história-de-vida, partindo da hipótese de que o negro tem dificuldade de conquistar uma identidade egossintônica que o integre ao seu grupo de origem e que o instrumentalize para a conquista da ascensão social.
Profile Image for Lorrany.
447 reviews60 followers
January 26, 2023
Desde que comecei a pesquisar mais sobre raça e me entender como mulher negra, tenho este livro na minha TBR. Ao mesmo tempo que eu tinha uma vontade muito grande de lê-lo, eu tinha receio do conteúdo de Tornar-se Negro ser muito "complexo" para mim. Sinto que, futuramente, terei de refazer essa leitura, já que conheço bem pouco de Psicanálise e preciso aprimorar meu conhecimento na área para absorver tudo do texto de Neusa Santos Souza. De qualquer forma, conhecer o pensamento dessa grande intelectual brasileira e ler os relatos de pessoas negras em ascensão social na época presentes no livro já é suficiente para entender minimamente que a democracia racial no Brasil não passa de um mito. Para quem vive isso diariamente, é meio óbvio. Mesmo não tendo o conhecimento necessário para entender a parte teórica (no que se refere à Psicanálise), consegui atingir uma leitura que considero satisfatória, pois a autora escreve de forma objetiva e traz relatos de entrevistados, que auxiliam na compreensão do conteúdo. Gostei dos últimos capítulos, descrevem um pouco da vida da autora e apresentam o último texto dela antes de sua morte (não sabia que ela tinha morrido dessa forma, fiquei muito triste). Uma obra de referência!
50 reviews
October 14, 2022
Texto bem escrito. Aborda racismo nas suas particularidades. Contudo, a abordagem pseudocientífica da psicanálise me impede de avaliar diferentemente esse livro.
Precisamos de abordagens científicas para avaliar o racismo estrutural da nossa sociedade.
Infelizmente, por causa dessa ausência, o livro serve como uma grande anedota. Não deve ser menosprezado por isso, mas perde a credibilidade científica-acadêmica fora da bolha-fálica-machista de freudianos.
2 reviews
May 24, 2025
"no lugar de pensarmos o mundo, pensamos o racismo."
o livro é essencial pra entender as questões específicas da população negra brasileira sobre sua identidade, autoestima e construção enquanto indivíduo de si. o fato de trazer relatos verdadeiros torna o livro ainda mais forte e mais sensível, também.
Profile Image for Maíra Araújo.
22 reviews3 followers
May 21, 2023
De início, pensei que seria uma leitura bastante densa, mas me surpreendi com a fluidez. Apesar de ter vários conceitos de psicanálise que não tenho domínio, a linguagem é bem direta.
Leitura muito importante para nós pessoas negras.
Profile Image for Ryudi1998.
87 reviews
November 2, 2024
Tenho um seminário em grupo para apresentar, meu plano era ler "The autobiography of Malcolm X", que já estava na minha to-read, mas o grupo achou melhor focar no contexto brasileiro e da Psicologia e fazia sentido. Ainda devo terminar de ler aquele antes das férias.
Achei que falaria das coisas "óbvias" do racismo, só que acabei me surpreendendo e foi bem interessante até.
O negro, na sua busca de ascensão social, acaba tendo o seu Ideal de Ego o branco, algo impossível de acontecer, levando a uma série de problemas (basicamente).
Ainda preciso fazer minhas anotações próprias e não só usar os highlights do Kindle... um dia.

Minhas anotações:
“destruir a identidade do sujeito negro” (p.9)

“Hipnotizado pelo fetiche do branco, ele está condenado a negar tudo aquilo que contradiga o mito da brancura.” (p.11)

“O racismo esconde assim seu verdadeiro rosto. Pela repressão ou persuasão, leva o sujeito negro a desejar, invejar e projetar um futuro identificatório antagônico em relação à realidade de seu corpo e de sua história étnica e pessoal. Todo ideal identificatório do negro converte-se, desta maneira, num ideal de retorno ao passado, onde ele poderia ter sido branco, ou na projeção de um futuro, onde seu corpo e identidade negros deverão desaparecer.
Não é difícil imaginar o ciclo entrópico, a direção mortífera imprimida a este ideal. O negro, no desejo de embranquecer, deseja, nada mais, nada menos, que a própria extinção. Seu projeto é o de, no futuro, deixar de existir; sua aspiração é a de não ser ou não ter sido. (p.12) - Prefácio

“Em outros casos, mais dramáticos, a distorção é bem maior e mais radical. Um depoente dizia: “Eu estava crescendo como artista e então ia sendo aceito. Aí eu já não era negro. Perdi a cor. O racismo continuava. Eu era aceito sem cor, mas eu ia vivendo”.
Perder a cor, significa para o indivíduo, uma sujeição completa ao imperativo racista. Aqui, pelo menos dois processos psíquicos de alteração do pensamento devem ser assinalados.” (p.21) - Prefácio

“Deixando de ser negro para ser artista, o sujeito troca o atributo desprezado por um outro, apreciado e valorizado pelo branco.” (p.21) - Prefácio

Piera Aulagnier chamou de “estado de alienação”.
Acreditamos que este último fenômeno descreve satisfatoriamente o que acontece com o pensamento do negro que “perde a cor” e a identidade negras, para ganhar a “alma branca” (artística, folclórica"), também definida pelo branco. Visando evitar a dor, o negro desiste de defender sua “verdade” contra a “verdade” da palavra branca. Expurga de seu pensamento os itens relativos à questão da identidade que ele poderia criar e outorga ao discurso do branco, o arbitrário poder de definir o que ele pode ou deve pensar sobre si mesmo.
Todavia, os entraves ao livre exercício do pensar podem ir mais além. O sujeito, na tentativa de desfazer-se da identidade negra, dissocia a percepção de sua representação psíquica. Cria no sistema do pensamento um ponto cego, ativamente encarregado de dissipar os traços das imagens e ideias constitutivas desta identidade. - (p.23) - Prefácio

Tendo que livrar-se da concepção tradicionalista que o definia econômica, política e socialmente como inferior e submisso, e não possuindo uma outra concepção positiva de si mesmo, o negro viu-se obrigado a tomar o branco como modelo de identidade, ao estruturar e levar a cabo a estratégia de ascensão social. (p.29) - Capítulo II

Assim, o negro que conseguia romper com todas estas barreiras e ascender, tomava-se exceção. é “a condição “sine qua non ” para a ‘pessoa de cor’ contar como exceção ainda é a identificação ostensiva com os interesses, os valores e os modelos de organização da personalidade do ‘branco’. Mesmo o negro e o mulato que não queiram ‘passar por branco’ precisam corresponder aparentemente a esse requisito, onde e quando aspirem a ser aceitos e a serem tratados de acordo com as prerrogativas de sua posição social”. 15

Enquanto exceção, “confirmava a regra”, já que seu êxito não trazia como consequência uma reavaliação das condições de possibilidade do negro enquanto grupo, nem uma mudança de sua posição na ordem social vigente. Como exceção, perdia a cor: “deixa de ser ‘preto’ ou ‘mulato’ para muitos efeitos sociais, sendo encarado como ‘uma figura importante’, ou ‘um grande homem’...Vê-se, assim, compelido a desfigurar-se material e moralmente. Tem de submeter-se, previamente, ao ‘figurino do branco’. E, se isso não bastasse, precisa conformar-se' aos papéis sociais ambíguos do ‘cavalheiro por exceção’, em todas, as circunstâncias, sujeito a dar provas ultra convincentes de sua capacidade de ser, de pensar e de agir como equivalente moral do ‘branco’. Em suma, condena-se a negar-se duplamente, como indivíduo e como parte de um estoque racial, para poder afirmar-se socialmente”. 16

A história da ascensão social do negro brasileiro é, assim, a história de sua assimilação aos padrões brancos de relações sociais. É a história da submissão ideológica de um estoque racial em presença de outro que se lhe faz hegemônico. É a história de uma identidade renunciada, em atenção às circunstâncias que estipulam o preço do reconhecimento ao negro com base na intensidade de sua negação. - (p.33) - Capítulo II


Assim é que para afirmar-se ou para negar-se, o negro toma o branco como marco referencial. A espontaneidade lhe é um direito negado, não lhe cabe simplesmente ser — há que estar alerta. Não tanto para agir, mas sobretudo para evitar situações em que seja obrigado a fazê-lo abertamente.
“Estou cansada de me impor. O negro não pode entrar num restaurante, por exemplo, naturalmente. Tem que entrar se impondo.” (Sonia)
Há que estar sempre em guarda. Defendido. “Se impor” é colocar-se de modo a evitar ser atacado, violentado, discriminado, É fazer-se perceber como detentor dos valores de pessoa, digno de respeito, portanto. - (p.37) - Capítulo III

“Minha avó, ela diz que quer se casar de novo: Casar com um francês pra clarear a família’. Quando a gente (as netas) está namorando, ela pergunta se é preto ou branco. Diz que tem que clarear a família. O clarear não é só a questão da pele, porque o negro é o símbolo de miséria, de fome. De repente, clarear é também a ascensão econômica e social. Se for um cara negro que tenha condição econômica e social boa, tudo bem. Tem um lance de cor, mas no sentido de que cor (preta) lembra miséria.” (Carmem) - (p.39) - Capítulo III

O “privilégio da sensibilidade” que se materializa na musicalidade e ritmicidade do negro, a singular resistência física e extraordinária potência e desempenho sexuais, são atributos que revelam um falso reconhecimento de uma suposta superioridade negra. Todos estes “dons” estão associados à “irracionalidade” e “primitivismo” do negro em oposição à “racionalidade” e “refinamento” do branco. - (p.41) - Capítulo III

O negro de quem estamos falando é aquele cujo Ideal de Ego é branco. O negro que ora tematizamos é aquele que nasce e sobrevive imerso numa ideologia que lhe é imposta pelo branco como ideal a ser atingido e que endossa a luta para realizar este modelo.
(...)
O figurino é branco, em seus diversos matizes. Aqui branco quer dizer aristocrata, elitista, letrado, bem-sucedido. Noutro momento, branco é rico, inteligente, poderoso. Sob quaisquer nuances, em qualquer circunstância, branco é o modelo a ser escolhido. - (p.44-45) - Capítulo IV

“Minha avó, ela diz que quer se casar de novo. ‘Casar com um francês pra clarear a família’. Quando a gente (as netas) está namorando, ela pergunta se é preto ou branco. Diz que tem que clarear a família. O clarear não é só a questão da pele, porque o negro é símbolo da miséria, de fome. De repente, clarear é também a ascensão econômica e social. Se for um cara negro que tenha condição econômica e social boa, tudo bem. Tem um lance de cor, mas no sentido de que a cor (preta), lembra miséria. O preto (para ser aceito como possível integrante da família) tem que ter curso superior. Se for um branco, não precisa. Principalmente em relação a nós — filhos do único filho dela que ascendeu — tem muita expectativa. Nós somos os filhos do PROFESSOR...” (Carmem) - (p.47) - Capítulo IV

Para o negro, entretanto, ser o melhor, a despeito de tudo, não lhe garante o êxito, a consecução do Ideal. É que o Ideal do Ego do negro, que é em grande parte constituído pelos ideais dominantes, é branco. E ser branco lhe é impossível.
Dilacerante, crua, cruenta descoberta…
Diante da experiência do inverossímil, frente à constatação dramática da impossibilidade de realizar o Ideal, o negro vislumbra duas alternativas genéricas: sucumbir às punições do Superego ou lutar, lutar ainda mais, buscando encontrar novas saídas.
A primeira alternativa genérica — sucumbir às punições do Superego — é representada pela Melancolia, em seus diferentes matizes e gradações. Aqui, o sentimento de perda da autoestima é o dado constante que nos permite unificar numa mesma categoria — Melancolia — as diferentes feições desta condição psicopatológica que denuncia a falência do Ego. “Uma parte da autoestima é primária — o resíduo do narcisismo infantil; 31 outra parte decorre da onipotência que é corroborada pela experiência (a realização do Ideal do Ego), enquanto uma terceira parte provém da satisfação da libido objetal.” - (p.53-54) - Capítulo IV

Autodesvalorização e conformismo, atitude fóbica, submissa e contemporizadora são experiências vividas por nossos entrevistados, humilhados, intimidados e decepcionados consigo próprios por não responderem às expectativas que se impõem a si mesmos, por não possuírem um Ideal realizável pelo Ego. - (p.55) - Capítulo IV

Mas existe uma segunda alternativa: lutar, lutar mais ainda por encontrar novos caminhos. Um deles passa pela busca do objeto amoroso. Um objeto que, por suas características, possa ser o substituto do Ideal irrealizável. Um parceiro branco com quem o negro — através da intimidade da relação afetivo sexual — possa se identificar e realizar o Ideal de Ego inatingível. “Em muitas formas de escolha amorosa, é fato evidente que o objeto serve de sucedâneo para algum inatingido Ideal do Ego de nós mesmos. Nós o amamos por causa das perfeições que nos esforçamos por conseguir para o nosso próprio ego e que agora gostaríamos de adquirir dessa maneira indireta como meio de satisfazer nosso narcisismo.” É assim que se troca a impossibilidade de cumprir o Ideal pela inviabilidade de experimentar o amor autêntico. Ama-se a brancura, como diz Fanon. - (p.56) - Capítulo IV

Alguns temas ocuparam um lugar privilegiado no discurso dos entrevistados e na minha escuta. Eles falam da representação que o negro tem de si, das estratégias e do preço da ascensão social.
Este tripé constitui a temática que irá homogeneizar — a despeito da heterogeneidade — as histórias de vida dos entrevistados, caracterizando-as como histórias de negros brasileiros em ascensão social.
Aqui, de viva voz, eles se autodefinem, falam de suas fantasias sexuais e do significado da condição de mulato(a), contam o que é preciso fazer para “chegar lá” e para manter as posições conquistadas.
Estes depoimentos que são objeto deste capítulo, sofrem aqui os limites da transmissão escrita, que transforma em letra morta a experiência pessoal, direta, libidinalmente viva. - (p.78) - Capítulo VI

“Tem que casar com um branco pra limpar o útero.” (Luísa) - (p.79) - Capítulo VI

“A cor mais visada como suspeito é a cor negra. Há uma tese na Polícia de que a maioria dos negros são assaltantes. Meus colegas, na maior parte das vezes, só identificavam negro.” (Natanael) - (p.79)

— ”..fomos morar em Copacabana, num edifício onde éramos os únicos negros. Tudo de ruim caía em cima de nós. Minha mãe ficava revoltada quando vinha uma queixa — a gente tinha que ser perfeito. A gente dizia: ah! mãe, todo mundo faz... Ela, então dizia: ‘mas vocês são pretos...’ Em Cascadura era uma vida mais solta, de rua, de moleque. Na Zona Sul, os limites: como se comportar, como deixar de se comportar. Ter que se comportar melhor que os outros...” (Carmem) - (p.85)

A partir do contato por telefone criou-se, em quase todos os entrevistados, uma expectativa: a de que eu fosse branca. Alguns disseram-me isto com palavras. Outros, com atitudes. A ideia que perpassava e fundava tal expectativa era a de que “negro que sobe não fala de negro” ou, em outras palavras: faz parte das estratégias de ascensão aceitar a mistificação constitutiva da ideologia da democracia racial: somos uma democracia racial, não existe problema negro, não há porque falar nisto. - (p.91) - Capítulo VII

Ser negro é tomar posse desta consciência e criar uma consciência que reassegure o respeito às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração. - (p.96) - Conclusão

No dia 20 de dezembro de 2008, um sábado, a psiquiatra, psicanalista e escritora Neusa Santos Souza, então com cerca de 60 anos de idade, suicidou-se sem antes jamais ter dado sinais de depressão ou de que pudesse um dia recorrer ao gesto extremo de tirar a própria vida.
Qual Ismália , lançou-se de alto de uma construção, um imponente edifício na Rua General Glicério, Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Ela deixou apenas uma pequena mensagem pedindo desculpas aos poucos amigos do peito por sua decisão radical. Não era casada, não tinha filhos. Sua riqueza material – uma coleção de artes plásticas e uma inspiradora vida de luta cotidiana contra o racismo. - (p.107) - O último texto de Neusa
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9 reviews
June 9, 2022
Um dos livros mais dolorosos que já li porque nos convida a revisitar nossas vivências desde a infância até a vida adulta.
O prefácio de Jurandir é um presente porque permitiu sistematizar muito do que a autora trabalha no livro a partir dos relatos e possibilita enxergar que todo negro no Brasil sofreu racismo, ainda que não seja aquele direto. Através dessa leitura fica claro que todos nós vivenciamos o racismo diluído, desde muito cedo, na formação da nossa identidade.
Profile Image for Marta D'Agord.
226 reviews16 followers
June 8, 2020
A pesquisa de mestrado de Neusa Santos Souza (1938-2008), foi publicada em 1983. O prefácio é de Jurandir Freire Costa, com um texto acadêmico que resume os conceitos psicanalíticos freudianos de ideal do eu e eu ideal, narcisismo e identidade como matriz psicológica para pensar o efeito despersonalizante do racismo no Brasil. Neusa diz: “Este livro representa meu anseio e tentativa de elaborar um gênero de conhecimento que viabilize a construção de um discurso do negro sobre o negro”. A pesquisa reuniu e analisou depoimentos de pessoas negras que ascenderam socialmente. Essas pessoas precisaram romper com a barreira racista e a herança escravagista brasileira. A própria autora viveu isso: “Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas”. Fanon e sua interpretação da dialética hegeliana não são desconhecidos de Neusa quando que ela afirma que há um saber que somente os negros podem revelar, por isso ela escolheu a metodologia da história de vida. Ao final do livro, G. Baremblitt participa com reflexões sobre estratégias para mudar formas históricas alienadas. Em 1982, a tríade Real, Simbólico e Imaginário, que Lacan trabalhara, era ainda pouco difundida no Brasil. Se viva fosse a autora, poderíamos esperar que ela estivesse usando hoje esses conceitos. Pois é o lugar simbólico de fala que ela reivindica para dissolver o imaginário da alienação a um discurso hegemônico que é localizado no ser branco. Este como uma idealização que encobre outros níveis de opressão.
Profile Image for Felipe Costa.
15 reviews
August 1, 2024
Ensaio relativamente curto, mas preciso no que se propõe. É preciso muita maturidade e consciência pra poder compreender de fato a magnitude desta obra, fundamental para compreender como, mesmo quarenta anos depois, muitos dos estigmas que perseguem a vivência do negro na sociedade brasileira permanecem. O chocante e repentino falecimento da autora só reacende a necessidade de trazer mais visibilidade para sua obra e reforçar o quão importante ela é ainda hoje.
Profile Image for Gui.
14 reviews
July 12, 2020
só preciso dizer uma coisa: o último texto me fez chorar até desidratar.
Profile Image for Raphael Donaire.
Author 2 books36 followers
December 8, 2024
"Tornar-se Negro" de Neusa Santos Souza é um marco na literatura psicanalítica e um tratado essencial sobre o racismo na sociedade brasileira. Originado como dissertação de mestrado e publicado pela primeira vez em 1983, o livro aborda a construção da identidade negra em uma sociedade que privilegia os valores brancos. Neusa, psiquiatra e psicanalista, investiga como a sociedade impõe ao negro o "branco" como ideal de beleza, inteligência e comportamento, promovendo uma assimilação que pode causar profundos conflitos narcísicos.

A obra é inovadora ao tratar de racismo com uma abordagem psicanalítica, valorizando a fala do negro e ressaltando o lugar de enunciação dos participantes. A indiferença inicial do meio psicanalítico não diminuiu a importância do livro que, resgatado pela militância e ações afirmativas, se mantém relevante. Neusa articula a psicanálise com a política, propondo a rejeição do ideal do eu branco e o fortalecimento de uma identidade negra através da militância.

"Tornar-se Negro" é estruturado em torno da ideia de que ser negro não é uma essencialidade imutável, mas um processo contínuo de tornar-se, influenciado tanto por fatores internos quanto pelo contexto social e político. O livro destaca a necessidade de compreender o racismo não apenas como uma questão de preconceito individual, mas como um problema estrutural enraizado nas instituições sociais e culturais.

Citações marcantes do livro incluem:
-"Ser negro demanda então, segundo a autora, uma construção política que considere necessariamente aspectos sócio-históricos."

- "O negro que ora tematizamos é aquele que nasce e sobrevive imerso numa ideologia que lhe é imposta pelo branco como ideal a ser atingido."

- "A possibilidade de construir uma identidade negra – tarefa eminentemente política – exige como condição imprescindível a contestação do modelo advindo das figuras primeiras."

Essencial para entender a complexidade da experiência negra no Brasil, "Tornar-se Negro" convida o leitor a refletir sobre a influência do racismo na construção da autoimagem e no desenvolvimento pessoal e social dos negros no país. A obra de Neusa Santos Souza permanece um texto crucial para todos aqueles interessados em psicanálise, estudos culturais e justiça social.
Profile Image for jasper.
9 reviews
October 19, 2022
"É que, no Brasil, nascer com a pele preta e/ou outros caracteres do tipo negroide e compartilhar de uma mesma história de desenraizamento, escravidão e discriminação racial, não organiza, por si só, uma identidade negra.
Ser negro é, além disto, tomar consciência do processo ideológico que, através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece. Ser negro é tomar posse desta consciência e criar uma consciência que reassegure o respeito às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração."

meu deus. meu Deus. muito bom ler um livro que explica palavra por palavra a maior crise de identidade da sua vida. completamente louco lembrar que por muito tempo eu não conseguia me ver na minha cabeça com a minha cor e traços de verdade, embranqueci memórias e fotos de criança, e ler que aparentemente essa dissociação da própria imagem é muito comum.
Profile Image for nathália.
145 reviews3 followers
July 17, 2023
"Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades."

leitura muito importante!!! os relatos são... nossa, me falta palavras pra descrever.
apesar da leitura ser fluída, apresenta bastante conceitos da psicanálise e a apresentação escrita por Jurandir é bem densa, isso pode fazer o leitor não persistir na leitura.
Profile Image for Bruno Peçanha.
Author 1 book1 follower
March 31, 2024
"Tornar-se Negro", da autora Neusa Santos Souza, é um livro basilar para a compreensão de uma das dimensões mais importantes do conceito "raça" no contexto brasileiro: a forma como se associa com a classe social dos indivíduos negros e suas possibilidades de ascensão social.
Tendo uma abordagem psicanalítica que deriva da formação da autora, o livro traça um panorama interessante sobre a percepção social do indivíduo negro ante a si mesmo e aos seus pares em relação ao local social que ambos ocupam.

Leitura obrigatória para o entendimento das ideias de raça e classe no Brasil.
Profile Image for Izabella Baldoíno.
15 reviews1 follower
February 25, 2023
"a descoberta de ser negra é mais do que a constatação do óbvio. (aliás, o óbvio é aquela categoria que só aparece enquanto tal depois do trabalho de se descortinar muitos véus.) saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades."

como fica a subjetividade de pessoas negras que nascem e crescem em uma sociedade racista? qual a imagem delas sobre elas mesmas e sobre outras pessoas negras? como elas constroem sua identidade? em que momento passam a entender e se identificar como negras?

Neusa Santos Souza vai discutir esses e outros aspectos através de um viés psicanalítico em Tornar-se Negro. inclusive, a autora dá pistas de como a psicanálise pode olhar com delicadeza para as particularidades da raça na clínica.

uma leitura um pouco mais densa mas que recomendo demais. (mesmo pra nós que sequer estudamos psicologia!)
Profile Image for Juliana Castro.
57 reviews
October 29, 2023
Esse livro foi o segundo melhor do meu 2023. É impressionante como ele continua extremamente contemporâneo depois de 20 anos. É só mais uma prova de 20 anos é absolutamente nada se comparado aos 300 anos de escravidão que esse país viveu e mais de 100 anos de um negro tentando se estabelecer na sociedade racista que se formou. Ou seja, 20 anos não mudou nada em relação a estrutura desenvolvida ao longo dos últimos 400 anos.
Profile Image for Marinne Beskow.
16 reviews
December 29, 2023
Este livro é um tapa na cara da branquitude. Eu, enquanto mulher branca, lia cada página com respeito a dor explicitada em cada parágrafo.
Este livro é força, é potência.
É leitura obrigatória para se entender as mazelas da sociedade brasileira que é histérica por essência.
Afinal, estamos falando de traumas não ditos, recalcados. E os sintomas são sentidos no corpo social diariamente. Principalmente no corpo negro.
Neusa Santos Souza deveria ser leitura obrigatória.
1 review
March 8, 2024
Simplesmente perfeito e revolucionário! a cada página você recebe um booming de informações que te fazem questionar a sua existência e as relações sociais como um todo, além dos tópicos serem sempre vistos pelo ponto de vista científico. Incrível demais, você, enquanto pessoa negra, renasce ao ter contato com essa obra. 10/10
Profile Image for DeboraS..
62 reviews
May 23, 2024
O meu namorado, que é psicanalista, quem me indicou esse livro e graças a ele pude entender alguns dos termos técnicos utilizado, porém não todos!

Penso, ainda, que o livro poderia ser melhor estruturado e dividido, mas eu amei mto ler os casos e entender melhor as coisas

ah, a parte de ser pessoas negras em ascensão social eu não sabia que teria

mas é isso, leiam!
Profile Image for Mariana.
3 reviews
January 5, 2022
Dialoga muito com Pele Negra, Máscaras Brancas, de Fanon. Livro pioneiro em conectar a psicanálise com a questão racial (pelo menos no Brasil). Um livro difícil de digerir, mas completamente necessário.
Profile Image for Joy Schmidt.
2 reviews
April 17, 2023
A análise que Neusa trouxe em "torna-se negro" é aquela obra que deveria ser apresentada nas escolas para que as pessoas tivessem o conhecimento do livro e pudessem desfrutar todo o conhecimento que é posto, uma obra D-I-V-I-N-A.
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