O presente volume reúne todos os contos de Graça Pina de Morais, num singular percurso dos primeiros textos até à maturidade da autora. Desta colectânea constam A Mulher do Chapéu de Palha e O Pobre de Santiago, anteriormente publicados pela Antígona, as narrativas de Na Luz do Fim e outros contos dispersos.
Neste universo de histórias inquietantes, como «Cristina», «O Círculo Vicioso» e «A Fé», todas as personagens são pela autora dissecadas a bisturi – os seus absurdos e alegrias, humilhações e vaidades –, sempre com um «ouvido especialmente apurado para as emoções mais sombrias ou inexplicáveis», nas palavras do prefaciador Fernando Pinto do Amaral.
Relatos com gente de carne e osso, em geografias emocionais de relevo acidentado.
Graça Pina de Morais (1929-1992) nasceu no Porto e passou a infância no Douro e em França. Formou-se em Medicina em 1951, profissão que exerceu durante largos anos. Inicia-se na escrita em 1955, sob o pseudónimo de Bárbara Gomes, com a publicação de duas novelas: Semi-Deuses e Sala de Aula, seguidas de O Pobre de Santiago (contos). Afirma-se como romancista em 1958 com A Origem (Antígona, 1991), tendo também publicado Na Luz do Fim (contos, 1951), O Medo e Raquel (teatro, 1964) e Jerónimo e Eulália (Antígona, 2000), que mereceu em 1969 o Prémio Ricardo Malheiros da Academia de Ciências – considerada a melhor obra de ficção do ano – e o Grande Prémio Nacional de Novelística.
A convivência é um mal necessário, o único processo de desfrutar a alegria da solidão.
Se Graça Pina de Morais alguma vez tivesse sido minha médica, eu estaria sempre transida nas suas consultas, com medo que ela me fizesse uma radiografia à alma apenas com o poder da mente, tal é o dom desta autora para perscrutar e analisar a psique das suas personagens. Por norma, leio contos de forma intercalada, mas estes tive realmente de os espaçar ainda mais, porque a angústia e a desesperança são uma constante, não havendo refrigério em nenhum deles. Para quem gosta de Maria Judite de Carvalho e ainda não esteja suficientemente deprimido, tem Graça Pina de Morais que, quer nos cenários naturais antagónicos ou coadjuvantes, quer nas gavetas que são os apartamentos das cidades (“gente em baixo, gente em cima, gente dos lados, todos arrumados –ou desarrumados – nas sua gavetas”), não poupa ricos, nem mendigos, nem velhos, nem jovens, nem solteironas inveteradas, nem casais em crise, da crueldade do destino, do peso das suas decisões e de uma solidão avassaladora. Por uma questão de gestão do tempo, deixei uma das histórias mais extensas, “A Fé”, para o fim e se fosse essa a sua posição natural no livro, não poderia ser mais perfeita, porque ela condensa e sublima todo o universo amargo de ficção de Graça Pina de Morais.
Nunca a admoestara sobre a sua vida à deriva porque entendera que a dispersão era aparente, ela seguia a grande e íntima unidade do seu ser.
Não vivera a sua própria vida, vivera outra qualquer... apesar de tudo, feliz. A felicidade talvez não fosse a atmosfera propícia à sua natureza autêntica. Sólida lutadora, nada encontrava para a sua luta. Os seus nervos de aço, onde experimentá-los? Enfraqueciam no monótono dia-a-dia.
Não dei 5 estrelas a todos os contos, mas se pesar esta prosa, que tem a precisão e a incisão de um bisturi, e o baque que esta colectânea causou em mim, são essas as estrelas que merecem os “Contos Completos” como um todo. Mantê-lo-ei por perto para uma releitura, mas sei que essa só surgirá quando estas personagens deixarem de me assombrar.
Tinha os dentes cerrados. A boca, fechada com força, envelhecia-a e dava-lhe um ar quase mau. Assim sustinha Lúcia todos os pensamentos, por um esforço sobre-humano de vontade. Era demasiado orgulhosa para se entregar ao sofrimento, demasiado orgulhosa para mostrar a sua fraqueza, o seu desamparo, mesmo que fosse só a si mesma.
Graça Pina de Morais, outra grande descoberta em 2022!
Há uma certa proximidade na escrita de GPM e Maria Judite de Carvalho, talvez porque ambas viveram numa sociedade maioritariamente masculina e atrasada. Foram um segredo bem guardado, mas que felizmente foi descoberto. A escrita de GPM é crua e acutilante, tem uma atenção ao detalhe e às coisas mais simples do quotidiano.
Os Semideuses Gostava às vezes de entrar nas igrejas, não pelos santos - mas pelos olhos que lá tinham estado fanaticamente pregados, e pelo sofrimento total, à procura do último recurso que ali ficava concentrado, no incenso e no bafio, entre as paredes escuras.
Jogos de Água (…) quando um homem se dispõe a fazer versos, só essa simples intenção já vale muito. É como que uma adolescência mantida, uma força que ainda não morreu. (…) Os estados de alma podem-se descrever mais ou menos artisticamente, mas só são descobertos por aqueles que viveram a mesma coisa, que já desvendaram o mesmo por experiência própria. Eu exemplifico: só perto dos trinta anos, torturado entre a angústia de viver e o conhecimento de que tudo poderia terminar no aniquilamento, enfim, na morte, compreendi o que queria dizer o “ser ou não ser” do Hamlet.
Cristina - Eu continuo a gostar de ti! - Quando o descobriste? – perguntou apenas. - Uma noite destas, sonhei contigo. Mas o meu amor por ti é tão desesperado, tão grande, tão triste! E esta separação a que a lei do mundo sujeita dois seres era insustentável em relação a ti. - Talvez seja uma mania - murmurou Cristina - mas não adianta nada porque o amor é precisamente uma mania. As pessoas iluminam-se e apagam-se à nossa volta, sem sabermos porquê.
Os Incomunicáveis Antes de se deitar, parou em frente do espelho do guarda-vestidos e ficou a olhar-se com estranheza. Há alguns meses que se sentia desligado da sua própria imagem como se esta realmente não lhe pertencesse. Essa impressão causava-lhe um sentimento angustioso, tão acabrunhante que pensava no suicídio cada vez com mais frequência. Na sua fisionomia sentia-se, mais do que se via, a proximidade da devastação. A sua cara era talvez a de todos os dias; mas as pálpebras fatigadas caíam sobre o olhar mole e doente dum desconhecido. Os cabelos tornavam-se cada vez mais raros nas fontes e a sua face cavada adquiria um desenho longuilíneo, exangue e triste. Na sua infância havia um rosto que sempre lhe despertara uma inconfessável repugnância. Era uma aversão de ordem estética, tanto mais que estimava sinceramente o seu possuidor. Agora via no espelho o rosto longo, frio e tumular do seu avô. Quantas vezes se retraíra ao ser beijado por ele! Seria que o destino se encarregava de punir o pecado infantil? Aproximou-se do leito e sentou-se pesadamente. Não... Estava demasiado cansado para poder pensar em despir-se. A sua irmã Inês ainda não recolhera ao quarto. Ao entrar, vira a luz do living acesa e esgueirara-se pela escada acima, pensando que a mais familiar das conversas seria exaustiva.
"Somos como fogos-fátuos. Precisamos que alguém nos veja e nos venha dizer depois que existimos."
Num mundo sobejamente misógino, ser uma filha de Eva é uma tarefa árdua - mais que Hércules e os seus doze trabalhos (homens e os seus números finitos). Quase parece que carregar estes dois cromossomas X já não basta, como pena capital. Dela fazem parte também uma incompreensão desmedida, um desprezo vexatório, uma contenção de emoções,...
Fruto porventura de um olhar cirúrgico, característico da profissão médica, Graça Pina de Morais compila um manjar de banais cenas indecorosas, explorando assuntos silenciados, antes como agora, mais ainda quando abordados por uma mulher. Sem temer represálias, corajosa, expõe os dilemas de um quotidiano de silêncios, desencontros e embotamentos.
Com um arguto bisturi, disseca as várias camadas de cada ser, dando acesso à alma humana, no seu estado mais puro. Entre o racional e o emotivo, apresenta assim vidas preenchidas em termos temporais, vazias em conteúdo - pejadas de outros mas solitárias. Gente que se anula e serve de âncora para outros apesar do navio interior, palpitando numa neurastenia sofrida.
Por ser uma colectânea de contos, escritos ao longo de uma vida, acompanhamos o processo de maturação de uma escritora. Há desde aqueles que abordam assuntos mais mundanos, até outros que, nos limites da física e a um passo da transcendência, tentam incutir uma reflexão sobre o fito de tudo isto. Uma infusão de vida, com diferentes sabores para degustar.
Não havendo aqui registado o livro "Na luz do fim", da mesma autora, assinalo a leitura incompleta deste Contos Completos, do qual faz parte a coletânea de contos "Na Luz do fim".
“Porquê, então, a permanente marca de frustração em todos os seus afectos? Ela era uma mulher incapaz de mentir, incapaz de trair, incapaz, mesmo, da mais simples e inocente artimanha feminina (defeito, aliás, gravíssimo). Apaixonada, daria a vida, o sofrimento e todos os seus bens materiais e imateriais àquele que amava... no entanto, nunca prescindia da sua maneira de ser; imodelável, imodificável, individualista até no amor, sob as correntes mantinha-se livre (tremendo defeito para uma amorosa, ainda que atestando a sua inegável superioridade). Nenhuma falta real se poderia apontar a Glória nas suas uniões destruídas, nem a mais malévola das criaturas a conseguiria apontar. A sua ausência de defeitos! (Terrível qualidade!)”
Li apenas as narrativas de Na Luz do Fim, gostei imenso. Existência espessa, pesada, ao mesmo tempo tão frágil. Obrigado, Vi, pela recomendação de um livro tão bom.
Tenho "A Origem" como um dos melhores livros portugueses do século XX e na lista dos meus favoritos. Estes contos, escritos ao longo da vida da autora, não me caíram tão bem. Não há alegria nesta gente, todos são deprimidos, frustrados, cínicos. Uma desgraça total. A visão de raio X da autora, afinada pela sua prática como médica, vislumbra a alma humana tal e qual ela se esconde, mas os olhos também são de quem vê e fiquei com a sensação de que GPM deve ter tido uma vida muito sombria. Nada disto lhe retira o mérito, apenas há livros que não nos encontram no momento certo.