A crise do novo coronavírus foi, em muitos aspectos, sem precedentes. Não apenas pela rapidez com que uma doença foi capaz de se alastrar em escala planetária — anunciando um futuro temerário para a época dos fluxos globais —, mas sobretudo por conta das reações que suscitou. Assistimos a um bloqueio geral da economia mundial e à imposição de medidas de confinamento populacional em quase todo o planeta. Temendo por sua sobrevivência, o capitalismo global colocou-se em quarentena. Mas os acontecimentos atuais só podem ser compreendidos se inserirmos a "crise do vírus" no panorama mais amplo do processo de crise fundamental do capitalismo, sistema que agora se confronta com seus limites históricos, tanto internos (a desvalorização do valor) quanto externos (a ameaça de colapso ambiental). A quarentena autoimposta do capitalismo foi, para este, um mal necessário para continuar existindo. Mas esse remédio amargo pode ter um perigoso efeito colateral, tendo aumentado exponencialmente a montanha de dívidas impagáveis que ameaça desabar a qualquer instante. A avalanche nos arrastará, em sua queda abrupta? Ou teremos aprendido algo com o breve pause do sujeito automático?
Anselm Kappe grew up in Cologne and in the Périgord. He studied in Paris and Rome where he obtained, respectively, a master's and then a doctorate degree in philosophy. His advisor was Mario Permiola. A member of the Krisis Groupe, he has published numerous articles in different journals and reviews, including Iride (Florence), Il Manifesto (Rome), L'Indice (Milan) and Mania (Barcelona). In his writings, he has attempted to revive critical theory through a new interpretation of the work of Karl Marx. He is currently teaching aesthetics at the Accademia delle Belle Arti di Frosinone.
Ok, essa é a melhor análise de conjuntura da crise atual que li até agora. Jappe et al realmente conseguem tocar nos pontos centrais da crise, articulando a Wertkritik e o situacionismo de maneira brilhante. Começando com "the future is uncertain and the end is always near" do The Doors, o livro já começa atacando a posição hegemônica da centro-esquerda de celebração do "retorno do Estado", que ignora a complementaridade hostil entre Estado e economia em prol da reprodução incessante do capital - um tema bastante explorado ao longo do livro. A tese central é que o coronavirus é o acelerador, e não a causa da crise. As reflexões da Wertkritik de Kurz são levadas às últimas consequências para explorar como a crise da valorização não é apenas um prelúdio, mas o problema central para pensar a crise do vírus e as intervenções estatais como administradores do desastre. Com uma crise global do capitalismo que se inicia bem antes de 2008, temos o processo de diminuição do trabalho vivo e a queda da massa do mais-valor, uma dessubstancialização da subtância do capital - o trabalho abstrato. Estando a lógica da acumulação em crise, o capital se assenta sobre o capital fictício, que vende uma produção futura de mais-valor e prolifera a acumulação sem substância real - aquela que, com a economia em quarentena, apenas serve para catapultar o endividamento, que já chega à quatro vezes o PIB mundial. Logo antes da pandemia, já estávamos à beira de uma crise da dívida sem precedentes, uma bolha tão monstruosa quanto (senão mais) que a de 2008. Nosso futuro já está vendido - se é que ele virá. Longe de algo externo, a crise do vírus é uma crise do capitalismo. Não há um "fora" biológico, a pandemia é socionatural. Como unha-e-carne com o capitalismo, a geografia do vírus e a geografia dos fluxos de capital se encontram em várias esquinas. Além da globalização e da crise ecológica, o vírus é detonador da bomba - mas não é ele que interrompe a máquina de exploração e valorização do valor, e sim a reação político-estatal: põe o capitalismo em quarentena. Entre a razão econômica e a razão sanitária, o sujeito automático do capital é prensado na parede pelo Estado, que como um policial corrupto interroga o suspeito-cúmplice: qual o passo a passo do sacrifício? Entre o confinamento total e o laissez-faire do vírus, o socialdarwinismo reina no sacrifício ao fetiche do capital global. A esquerda "altercapitalista" clama pelo Estado bastião da higiene pública (especialmente os trabalhistas tipicamente edipianos, que parecem desejar a mamãe-Estado para limpar seus rabos sujos), sonhando em instrumentalizá-lo e ignorando sua relação polar com o mercado, seu papel de quadro de recursos e infraestruturas para o processo de valorização. Apesar de não referenciado aqui, Sobre a Reprodução de Althusser nos mostra pontos importantes sobre essa relação, Poulantzas também nos indica problemas dessa visão instrumental do Estado. Disfarçado pela ética heróica do Estado salvador, o interrogatório revela seus personagens e suas máscaras, que ocultam a relação polar Estado-mercado: hostilidade complementar para a reprodução do capital, que na crise do vírus atribui ao Estado o papel de vigilante autoritário (que em diversos casos dorme na cabine e "deixa morrer", extermínio in-direto). Sangria fiscal, endividamento e confinamento: a gestão da crise nos leva ao sacrifício humano, que nos hospitais decide quem tem chance de viver e quem não tem - úteis e supérfluos para a valorização do valor, economia de sacrifício para uma sociedade capitalista autofágica. Como credor em última instância, o Estado injeta trilhões na economia como injeção de adrenalina no junky-mercado em overdose, planejando a retomada pós-pandemia para o junky na rehab que já planeja sua volta. Entretanto, diferente de outros períodos de endividamento colossal, não há hormônios de crescimento para a economia da indústria 4.0. Com o limite absoluto de valorização se aproximando e a crise da legitimidade do Estado em nossa porta, devemos nos perguntar: "qual" colapso nos aguarda? O que derrubará o castelo de cartas? Enquanto isso, nós "sobrevivemos" em um cenário já esboçado pelos situacionistas: uma mediação da imagem sem precedentes. Entre as tecnologias espetaculares de vigilância e de consumo, a vida se torna remota. Afogados pelo Big Data, o controle dos corpos excede os pesadelos mais sombrios da biopolítica. Transformados em simples corpos vivos pelo trabalho abstrato, o sujeito autômato do capital se vira do avesso para resolver o impasse entre a necessidade do trabalho vivo para a valorização e a impossibilidade de interromper o processo de valorização, aceitando o sacrifício de sangue para manter a roda girando. Sobreviver para trabalhar: é essa a liberdade que o fetiche do capital nos traz; aplaudindo debochadamente como heróis os profissionais de saúde (improdutivos para o processo de valorização capitalista) que se sacrificam nas "linhas de frente", tornados descartáveis em péssimas condições de trabalho e altos graus de exposição ao vírus mortal. E como bem diz Debord, a produção circular do isolamento é um dos fundamentos do nosso sistema econômico: o espetáculo reune enquanto separado; a sociabilidade separada, remota, mediada pela imagem é o fulcro da sobrevivência ampliada do capitalismo, elevada à enésima potência em tempos de pandemia. Importante é não se contentar com o passado idílico "menos pior", não partir para a perigosa defesa da distribuição universal dos meios de consumo espetacular, nem para um clamor pelo trabalho - Jappe et al aqui, junto com Kurz e Debord, insistem bastante na crítica a forma-trabalho enquanto inseparável da lógica autotélica de valorização do valor/reprodução do capital. Há aqui uma ponte interessante construída com a teoria do valor-dissociação de Scholz, que critica o conceito positivo de "trabalho doméstico" de alguns marxistas e demonstra que a dissociação das atividades delegadas às mulheres é o reverso (outro lado da mesma folha de papel) do trabalho abstrato na estruturação das relações sociais - que se mostra ainda mais profunda na quarentena ao encontrar-se em um dos pilares da sustentação da complementaridade escola/trabalho (ou depósito de crianças-futuros trabalhadores/máquinas de trabalho abstrato). Diante da relação estreita entre a pandemização e a sociedade capitalista (temos no livro um traçado histórico interessante sobre essa relação), voltamos à questão de "qual" colapso. Com os campos ideológicos do capitalismo neoliberal e do capitalismo nacional-soberano se aproximando na pandemia (ambos apenas reconfigurações da relação polar Estado-economia), devemos nos afastar do altercapitalismo do decrescimento social-liberal e do "restabelecimento da ordem" no estilo Biden-Kamala: a saída para nós é de uma ruptura total como o modo de produção capitalista, nada à menos que isso. De outra maneira, não sairemos do processo que nos trouxe aqui. "Nossos" governantes não irão nos "salvar"; no máximo salvarão nossas carcaças biológicas para servir de combustível para a máquina de valorização - e que no "pós"-crise se voltará contra nós para mais um sacrifício para a retomada econômica. É agora a hora da ruptura: frente a crise de representação e a normalização do estado de exceção, a crise nos leva ao potencial de insurgência. Se a luta se orientará para a revolução com um contramodelo ou uma desagregação social anômica incontrolável, só sabemos que a saída que se abre para nós é de confrontação com o sujeito automático.
O livro faz uma análise situacionista da crise derivada da pandemia em 2020. Acho interessante os paralelos q apresentam em relação a outras crises passadas e tb a forma que apresentam a suposta dicotomia entre a intervenção estatal e a economia de mercado (para entender a razão de eu ter usado "suposta" recomendo lerem o livro). Eles tocam um pouco na crítica de valor-dissociação, então creio q vou ler um pouco sobre o tema.