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A palavra algo

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"Algo aqui neste livro se faz, tanto quanto se diz. De que espécie será essa alguma coisa - essa coisa alguma? O que será o mistério 'que reaparece / nesse aqui / sem nem sê-lo'? Como pode haver tais haveres que nem sequer são, como um pássaro que inadvertidamente transita por um 'curso intransitivo'?

É uma fascinação, A palavra algo, de Luci Collin. Esses poemas fascinam pelo muito que afirmam justamente a partir de uma tenaz negação. O próprio título, bem lido, exprime a ambivalência de um afirmar negando, que parece orientar - ou pelo menos sugerir - a poesia que o leitor tem nas mãos agora. Trata-se da palavra, não de um suposto ente que se possa avistar através dela, existindo independente da nomeação. Mas o resultado de uma escrita dessa forma obstinada é por fim a mais generosa abertura: todo um mundo que se acrescenta ao mundo que só assim pode ser capturado.

Essa palavra que se imprime, 'flama na folha de rosto', impressiona por si mesma. Mais do que a beleza que há, está empenhada em buscar 'algo da beleza que pode ser'. É o instrumento de um Prometeu à parte, que com ela rouba 'algo de fogo' com que chegue a avivar-se. Mas sua condição é negativa, é 'sem': implica certo exílio, certa rareza, 'algo de fenda e de artifício'.

Para tamanho afã existe um lugar: aqui. Volta e meia a poeta relembra o leitor de seus algures, de tudo o que desfila na poesia, onde o chão é linguagem, 'os passos da dança são um jorro / as falas são manjar', e onde se reedita 'o script que a vida assina'. O poeta - um editor, ou reeditor, 'galgo acorrentado / algo afônico', uma espécie de alter ego da vida. Não é tão dele a autoria: 'a tinta borra / hesita / ela mesma tem lapsos / e talvez falsifique as cenas'.

Esse 'aqui' da poesia de Luci Collin é esse 'talvez' que ela insinua, movediço e plástico, desprotegido e imune, mas sendo 'o que mais / redunda / sobeja / remanesce'. Só assim é possível considerar, ao ver a diva séria, que ela tenha 'talvez um molar doendo', com a surpresa de um humor muito característico, que é uma das marcas mais felizes da autora.

A oscilação, seu hesitar entre o veraz e o verossímil, inscreve a poesia na ordem ambígua e às vezes perturbadora do ficcional. O que é 'sem' também se faz 'como se'. Essas 'palavras assustadiças' são flores (outro já disse que seriam fezes) que a poeta veio pronunciar 'como se / um beijo'; são 'flores excêntricas' que ela veio prestar 'como se / um salmo'; são 'certezas indivisas' que ela veio declarar 'como se / um lírio'. Desde o início, se a escrita pode estar falsificando cenas, 'o poeta finge', numa proposição em que o eu afinal não é senão 'resto', um restar, que também significa alguma permanência mais perene nesta vida.

Assim emerge no poema 'o âmago desimpedido / de um esplêndido / algo' que talvez não estivesse aqui antes de ela modelar seu 'como se'. Fingidamente é ele que ilumina todas as coisas e todos os bichos que interagem nestas páginas, 'à luz de algo / que se vê / aqui'.

Essa iluminação - tão bela, às vezes até euforizante! - vem explicitar uma esperança só da poesia ('que talvez esteja num será'). É a confiança que Luci Collin reativa na convergência entre a vida e a escrita mesmo sem nenhuma imediaticidade que reenvie esse algo daqui a qualquer objeto estável fora da linguagem, que aqui só refere à medida que impõe uma realidade própria, insubordinável à nossa ânsia de controle sobre o mundo e sobre a representação dele que possamos projetar.

Por isso o gume afiado da poesia de Luci Collin é bálsamo também, sem deixar de ser cortante." - Sérgio Alcides

87 pages, Kindle Edition

Published August 26, 2020

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About the author

Luci Collin

45 books11 followers
Luci Collin (Curitiba, Paraná, 1964). Escritora, tradutora, professora universitária, musicista. Sua obra se destaca pela experimentação e pela abordagem de temas da pós-modernidade, como as metanarrativas e as crises identitárias. Transitando por gêneros como a poesia, o conto, o romance e o teatro, investe estruturalmente na musicalidade e na fragmentação textual.

Na década de 1980, Luci realiza curso superior de piano, além de um bacharelado em percussão, ambos na Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Seu primeiro livro de poemas, Estarrecer (1984), publicado em Curitiba, é muito bem recebido pela crítica local. A partir de então, ela se enquadra com proeminência no circuito paranaense de autores, que reúne nomes de reconhecimento, como os curitibanos Dalton Trevisan (1925) e Paulo Leminski (1944-1989). Em 1989, forma-se em letras (português e inglês), na Universidade Federal do Paraná (UFPR), e dá continuidade à carreira acadêmica nesse campo.

Embora a autora abandone a música profissionalmente, sua formação musical a acompanha tanto na escrita literária quanto no trabalho de tradução. Em 2003, ela conclui doutorado em estudos linguísticos e literários na Universidade de São Paulo (USP), com uma tese sobre a poeta norte-americana Gertrude Stein (1874-1946). Também traduz textos do artista americano E. E. Cummings (1894-1962), cuja obra, assim como a de Stein, é reconhecida pelos efeitos musicais e pela sonoridade nos jogos de linguagem. A autora transporta vários desses elementos para sua própria ficção. Após o doutoramento, torna-se professora no Departamento de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), passando a contribuir para o ensino de literaturas em língua inglesa e sua tradução.

Uma parte da fortuna crítica investiga as articulações entre teoria musical e a escrita de Luci Collin. Assim como músicos e dançarinos utilizam ressonância, polifonia, repetição, cadência e espaçamento para produzir sentidos, Luci incorpora esses elementos ao texto literário, o que gera diversas possibilidades semânticas e estilísticas. Esses efeitos estão presentes no livro de contos Inescritos (2004), marcado pela experimentação sonora.

Outra linha interpretativa investiga as metalinguagens e conexões entre diferentes recursos estilísticos usados pela autora. Exemplos disso são as vozes literárias fragmentadas, que tomam forma por meio de rupturas e ausências no corpo textual. Em Vozes Num Divertimento (2008), Luci desconstrói ferramentas literárias tradicionais, como o discurso direto e o enredo coerente, com começo, meio e fim. O resultado é um conjunto de contos em que o leitor é obrigado a questionar o propósito da literatura e sua funcionalidade como veículo de expressão.

Um terceiro segmento da crítica volta os olhos para questões da pós-modernidade e das identidades na escrita da autora. Seus textos expõem conflitos identitários: as personagens femininas, por exemplo, confrontam normatividades e hierarquias atribuídas aos sexos, e, assim, denunciam as violências de gênero. O romance Com Que se Pode Jogar (2011), por exemplo, narra as histórias de três mulheres que vivenciam relações incestuosas, prostituição e violência doméstica. Os relatos compõem narrativas fragmentadas e sobrepostas umas às outras, em tom de denúncia social.

Luci aproxima-se de alguns nomes da ficção brasileira, como a escritora paulistana Beatriz Bracher (1961), a psicanalista carioca Livia Garcia-Roza (1940) e o jornalista fluminense Bernardo Carvalho (1960), autores que retratam sujeitos em busca de identidades perdidas, por meio de narrativas fragmentárias e relacionadas.

A escrita de Luci Collin é intimista e experimental. Embora não se restrinja a fórmulas e temas específicos, o uso de técnicas literárias inovadoras torna seus textos singulares, e permite atribuir-lhe um lugar de destaque na literatura brasileira contemporânea.

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Profile Image for Lucas Ignacio.
1 review
December 26, 2020
queria ter cabeça pra entender poesia mas acho q pra um Primeiro Livro de Poesia Lido eu fui bem ate... me fez sentir e por hora isso q importa!
Profile Image for Anaju Prim.
25 reviews
February 22, 2021
Foi leitura obrigatória, de um livro que eu não compraria se não fosse, mas que me surpreendeu positivamente. A primeira vez que eu gostei de poesia!
Profile Image for Luana Neves.
36 reviews2 followers
April 20, 2021
3 estrelas porque não estou acostumada a ler poemas então não sei opinar muito sobre.
Os que mais gostei foram: Cividade, Concordância, Obvia, Atinências e Tela.
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