O autor de Barba ensopada de sangue, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, nos traz um livro marcante, que foge dos padrões da literatura atual. As três histórias reunidas neste volume vão do passado recente ao futuro distante, e falam de expectativas e perdas, e de como reconstruir a vida a partir de nossos próprios erros.
Daniel Galera expande as possibilidades da literatura nas três novelas reunidas neste livro. Em "O deus das avencas", que abre este volume, um casal se fecha em casa à espera do nascimento do primeiro filho, e mergulha numa incerteza crescente, tanto pelo destino deles quanto pelos rumos do país. Em "Tóquio", Galera abandona a narrativa mais realista ao retratar a vida de um homem solitário, obrigado a enfrentar o passado em um mundo que atravessou um desastre ambiental e tecnológico. E, por fim, em "Bugônia", ele dá um passo além ao recriar a história de uma comunidade pós-apocalíptica em simbiose com a natureza, que, pressionada pelas ameaças externas de um planeta devastado, precisa se transformar de forma radical. O deus das avencas é um livro especulativo e por vezes sombrio, mas extremamente humano.
Daniel Galera is a Brazilian writer, translator and editor. He was born in São Paulo, but was raised and spent most of his life in Porto Alegre, until 2005 when he went back to São Paulo. He is considered by critics to be one of the most influential young authors in Brazilian literature. Daniel is one of the founders of the publishing house Livros do Mal and had some of his works adapted into plays and movies.
Eu tinha achado a primeira novela excelente e não entendia por que as resenhas não pareciam muito empolgadas com ela. Mas daí eu li as outras duas e entendi que elas eclipsam a primeira. Crônicas de nossos tempos, mesmo falando de um futuro possível, e com uma escrita belíssima. Fazia tempo que não gostava de um livro tanto assim. Sem dúvida, um dos melhores do ano. 11/10.
Lembro de sentir algo muito forte quando aconteceu aquela avalanche de violências com o Lucas Penteado na última edição do Big Brother Brasil. Duas frases em específico (vistas no Twitter já que eu não acompanhava o programa de fato) me chamaram bastante atenção. A primeira falava sobre como ele errou em ter acreditado que estava num espaço seguro onde seria acolhido caso cometesse algum deslize, o que de fato fez, mais de uma vez. A segunda era um trecho do discurso de Tiago Leifert depois da saída do competidor, ponderando com os outros jogadores que talvez tivesse faltado fairplay, da parte deles. Não vem ao caso o motivo dessas frases terem ficado povoando minha mente até hoje, mas é fato que alguma coisa se esclareceu quando cheguei no final desse “O deus das avencas“, livro novo do Daniel Galera.
A última das três novelas que compõem o volume fala de um futuro distante e distópico, onde uma heroína de moral particular, porém inabalável, navega por uma série de agruras que desafiam a lógica do mundo como ela o conheceu. Em algum momentos me lembrava de Mad Max: Fury Road, em outros, ia mais para Midsommar. Tento não incorrer em spoilers mas existe na trama uma comunidade sustentada na base do diálogo e de seu pacto tácito de respeito com a natureza, em especial com as abelhas, que se vê ameaçada pelo espectro da violência e do fanatismo, mas consegue vencer essa barreira de maneira muito estoica, pelo menos para mim, preso no Brasil de 2021. Levando em consideração que a primeira das histórias do livro alinha a aflição de uma grávida e seu marido durante os últimos momentos pré-parto com o iminente apocalipse da eleição do então presidente, talvez possa se assumir que Galera faz aqui não apenas o seu livro mais distante da realidade palpável e imediata, mas também o mais otimista, mesmo quando mergulhado até o pescoço na desgraça.
Dito isso, não consegui não pensar (bastante) na também tripartida narrativa de “Sebastopol“, livro lançado pelo escritor e editor Emilio Fraia em 2018. Naquele livro Fraia falava, às vésperas do apocalipse, sobre um pesar e uma estagnação generalizadas; uma observação de pessoas com muito pouco ou quase nada de concreto a propor, num país que não ajudava elas a ter energia. Imagino que Emilio, assim como boa parte de nós, imaginávamos o que estava para acontecer, mas ainda agarrados numa vã esperança. “O deus das avencas” me parece atualizar ou materializar, em alguma medida, a desesperança que atinge a alpinista aposentada, transformada em coach, de uma das histórias livro de Emilio. Para Galera, a derrocada ecológica, moral, política, sanitária e tanto mais do nosso planeta é uma questão de tempo, importa mais quem são as pessoas no entorno quando isso acontecer. Fiquei com dúvidas, decidi perguntar a ele.
"Saber tanta coisa e não entender nada." Três histórias sobre laços familiares num mundo que vai do presente ao pós-apocalipse (que, pelo jeito, nem está tão longe assim). O ser humano é muito doido.
experimentar o cansaço e a confusão desse homem que escapou de um lugar de horror apenas para desembocar em outro. haverá memória, mas somente a partir de agora.
pessoalmente, eu penso no futuro e vejo caos: colapso climático, soma de diversas crises, as cidades se deteriorando pois representam um modo de viver que é impossível de sustentar por muito mais tempo. por isso eu fico fascinada quando encontro autores que narram esse futuro distópico tão perto do real, com detalhes que eu não havia pensado antes e apresentando suas versões que acabam sendo mais desesperadoras do que esclarecedoras. e nesse cenário de risos nervosos, me senti contempladíssima pelas três histórias presentes nesse livro do daniel galera. vale muito a leitura! 5 estrelinhas. ⭐️⭐️⭐️⭐️⭐️
Vale demais pelas duas novelas pós-apocalípticas. São dois universos distintos (ainda que muito parecidos) que gostaria de ver Daniel abordar de alguma forma novamente.
Daniel Galera es un escritor brasileño con el que me topé viviendo en Brasil y del que leí “barba ensopada de sangue” (“barba empapada de sangre”, traducción libre), el cual me gustó muchísimo. En esta libro, “el dios de los helechos” (traducción libre) se juntan 3 historias: - “el Dios de los helechos” ⭑ ⭑ ⭑. En este acompañamos a una pareja que va a dar a luz pero resulta que el bebé no nace y todo se complica. - “Tokio” ⭑ ⭑ ⭑ ⭑ ⭑. En esta historia apocalíptica, avanzamos años en el futuro para encontrarnos un mundo devastado por el clima infernal y en donde la mente de las personas son copiadas y almacenadas en diferentes dispositivos. Un lujo de cuento. - “Bugonía” ⭑ ⭑ ⭑ ⭑ ✫. En esta 2º historia apocalíptica avanzamos aún más en el futuro, en un mundo donde ya la mayor parte de la humanidad dejó la Tierra azorada por virus pero en dónde un grupo de personas aún vive en comunidad ecológica con las abejas, que les proveen la cura a los virus terrestres. Muy buena!
Seguramente seguiré leyendo más de este autor tan creativo.
Nao é um livro de contos. As tres historias sao independentes e com tematicas bem distintas. O primeiro conto tem uma escrita gostosa de ler, mas peca demais pela militancia política desnecessária. O terceiro, na minha opiniao, é uma mistura de "coisas que ja li", com uma ou outra inovaçao, mas nao me amarrou. Me senti no universo avatar, mesmo com as diferenças significativas. Quem salva o livro é a segunda história. Temática, escrita e desenvolvimento excelentes. Salvou o livro no geral.
de novo só li Bugônia e amei. comecei a ler as outras duas novelas algumas vezes e não consegui seguir. talvez um dia. tenho que devolver essa cópia na biblioteca.
Na primeira, encontramos um casal a espera do seu primeiro bebê, exatamente no dia da eleição que tristemente nos fez regredir anos e anos, em 2018.
Na segunda, mergulhamos na vida de um homem, as suas relações com as mulheres de sua vida, sua mãe e namorada, e a tentativa de sobreviver em um mundo novo, provavelmente resultado da mudança climática.
Na terceira e última, chegamos a uma sociedade pós-apocalíptica, em que as pessoas vivem em espécie de tribos, em uma terra devastada.
Os três textos são ótimos. Na superfície, aparentam não ter relação uns com os outros. Contudo, ao terminar, entendo que o autor parece refletir sobre como será o futuro dadas as decisões imbecis tomadas pela humanidade.
No primeiro, estamos face a face com a realidade e a situação de colocar uma criança no mundo no mesmo dia em que um autocrata ególatra e imbecil vence a eleição do seu país. No segundo, saltamos no tempo e vemos uma “pequena” consequência de onde estamos: as pessoas ainda viajam e se relacionam, as cidades e metrópoles ainda existem, mas as pessoas já estão mais isoladas e precisam se proteger no clima inóspito que os afeta. No último, estamos totalmente desacreditados, vivendo em grupos que só se preocupam em sobreviver e nada mais. Esqueça cidades, tecnologia, celebrações. Triste, mas bem provável dado o caminho que estamos pavimentando.
O Deus Das avencas: 5 estrelas. Tóquio: 4 estrelas. Bulgonia: 4 estrelas.
Apesar da apressada conclusão da terceira novela, terminando com uma mensagem positiva apesar de todo o ar de condenação que a novela passa, o saldo ainda é bem mais positivo. Há todo um senso de família/comunidade entre as três novelas (os pais esperando o filho na primeira, o protagonista e sua mãe de inteligência artificial na segunda, l Organismo na terceira). Daniel galera nos aponta para o irremediável fim do mundo, para a crise social decorrente da crise capitalista decorrente da crise ecologica, mas ao mesmo tempo nos da um alento: que fiquemos juntos. Precisamos estar juntos. Sua prosa seca e suja segue a mesma aqui. As duas últimas novelas apresentam um futuro próximo e um futuro distante mas com descrições precisas, nada exagerado ou fora de hora, nem excessivamente didático: preciso. Ainda encontramos personagens em crise, como em todos os seus romances (com exceção de Chama). Como grande fã desse autor, sou suspeito pra falar, mas aqui, novamente, ele não erra. Um dos mais talentosos de sua geração meeeeesmo.
Essa é a minha primeira experiência com uma obra do Daniel Galera e fiquei sinceramente surpreso com a habilidade narrativa dele. Muitos colegas já haviam mencionado alguns de seus trabalhos como Barba Ensopada de Sangue e Cordilheira, mas esse acabou me chamando a atenção por serem histórias curtas (o que me proporcionaria uma visão mais ampla da escrita do autor) e por ele ter se aventurado na ficção especulativa. O primeiro conto é o mais pé no chão e ao mesmo tempo é emocionante e vai ressoar com muitos que passaram por esses momentos estranhos que assolaram nosso país. Mas, mesmo em seus contos mais fora da caixinha como Bugônia que segue muito para o futuro, ele consegue tratar de temas que são totalmente atemporais como a nossa corporealidade, a solidão, o que nos torna humanos, como nos relacionamos com o planeta. A ficção especulativa é o melhor meio de fantasiar esses temas sem deixar as margens do real.
Não vou comentar muito a respeito de O Deus das Avencas (o conto que dá título ao livro) porque, bem, estamos em um site de fantasia e ficção científica e quero me concentrar mais nos aspectos especulativos do livro. Mas, vale a pena usar Tóquio para falar a respeito de como funciona a escrita do Galera. As narrativas seguem formas diferentes de estruturação, mas o seu núcleo é quase sempre o mesmo. A primeira e a terceira histórias são contadas em terceira pessoa, sendo que na primeira permanecemos mais com o casal em si e na terceira a narração se permite ser mais onisciente. A segunda história segue em primeira pessoa a partir de um personagem sem nome que acompanhamos pelo desenrolar dos fatos. Na primeira história a narrativa é mais descritiva, com cada parágrafo sendo contado por um dos dois protagonistas. Essa alternância é bem suave e não interfere na história. A segunda história segue uma estruturação mais normal, com momentos de narração e diálogos que se sucedem. Já na terceira o autor decidiu usar do subterfúgio dos capítulos de forma a separar as cenas. Para essa história em específico, isso ajudou na passagem do tempo que é mais dilatada.
"Não há um mundo a ser salvo. Mundo é o mais maleável dos conceitos. O mundo nada mais é do que o lugar do qual não podemos fugir. Você precisa identificar que lugar é esse e aprender a habitá-lo. Nesse tempo que nos coube viver, o nome desse lugar é 'código'. O resto são castelos de areia."
Galera tem uma escrita bem redondinha e o leitor não costuma se perder na história. Mesmo em Bugônia em que a narrativa é bem mais futurista e repleta de novos conceitos, o leitor consegue compreender tudo numa boa em poucas páginas. Um ótimo exemplo é Tóquio em que o autor faz toda a contextualização em cinco páginas com informações pertinentes e suficientes para entendermos o que está acontecendo no local em que o personagem vive. À medida em que a história progride, Galera entrega mais informações para servir de complementação ao que ele já havia entregue antes. Consigo entender Galera como um pintor se debruçando sobre seu quadro: ele dá suas pinceladas e vai preenchendo os espaços com figuras maiores ou menores dependendo de sua necessidade. Aonde lhe é pedido precisão, ele dá uma atenção maior; nos demais lugares, ele cria um horizonte de observação que não deixa o quadro desguarnecido. Contudo, a mágica aqui está em guiar o olhar do observador aonde ele deseja. Quanto à composição, Galera consegue variar do profano ao corriqueiro em poucas palavras. Sua maestria com as palavras impressiona e ele consegue passar seus sentimentos através delas.
Em Tóquio, somos levados a um futuro próximo onde o planeta alcançou uma temperatura insustentável e doenças e misérias assolaram a humanidade. As ruas se tornaram uma vastidão terrível em um território onde os alimentos crescem com extrema dificuldade e superbactérias passaram a destruir os incautos. Cada um dos novos humanos nessa sociedade futurista decadente precisa ter sua própria "fazenda", criando alimentos em um sistema de reaproveitamento máximo. Pouco antes dessa tragédia, a elite planetária avançou em uma pesquisa de transferência de mentes para outros veículos, sejam objetos ou bonecos de aparência humana. Nosso protagonista é filho de uma mulher implacável que conquistou o mundo com sua audácia e inteligência. Mas, era uma péssima mãe e abandonou seu filho na adolescência. Sem ter a maturidade necessária para tocar sua vida, ele se tornou um homem pela metade, atormentado pelo amor de uma mulher que nunca mais irá voltar e pela expectativa do amor de sua mãe, uma mulher fria e calculista que após sua morte passou sua consciência para uma esfera de contenção. Tudo o que nosso personagem deseja é matar sua mãe e se livrar de sua sombra de uma vez por todas.
Esse é um romance com muitas camadas. Se formos partir do lado do personagem, temos alguém que não conseguiu se tornar completamente independente. Com uma personalidade conformista e até meio blasé, ele luta para saber sobre si mesmo. Sua relação com sua mãe, a poderosa empresária, é marcada pelo abandono. Na hora em que ele mais precisou dela, ela não estava presente e isso acabou sendo marcado com ferro em brasa em seu corpo. Há uma clara situação mal resolvida ali. Para tentar saber como lidar com essa esfera que é o que restou de sua mãe, ele passa a frequentar um grupo de apoio a pessoas que passam pelas mesmas questões com ele: um pai cujo filho transferiu sua memória para um objeto, uma irmã que precisa lidar com a realidade de que o que restou de sua parente é um ser horripilante que nada tem de humano e uma filha cuja mãe é um boneco que parece ser humano, mas não tem nenhum dos traços que a definem, realizando ações bizarras a qualquer momento. Nesse grupo, todos parecem lidar com a perda em diferentes graus. Ao viver os dilemas de cada uma das pessoas, o protagonista relembra os momentos que passou com Cristal, sua ex-namorada e a última vez em que viu sua mãe ao lado de Cristal. É nesse momento que nos questionamos o quanto nossos filhos são importantes para nós. O distanciamento entre o protagonista e sua mãe provocou uma série de mensagens mal entregues entre ambas as partes. É curioso ver o lado da mãe posteriormente na história e refletirmos sobre qual versão é a verdadeira sobre um último momento marcante entre eles. Nesta cena, fiquei me questionando bastante quem estava falando a verdade, e como a narrativa é em primeira pessoa devemos sempre desconfiar do narrador.
"As torres de transmissão e os detritos de metal e plástico dos telefones e televisores mostram que essas tecnologias eram fadadas a ter breve duração ou apenas inúteis. Além disso o passado reforça a identidade, e a identidade é o veneno das comunidades. O pertencimento é uma ilusão e uma deformidade do medo. A Velha aboliu a lembrança e entronou a experiência. Ela diz que um humano não deve ser nada além do que vai se tornar no instante seguinte. A Velha proíbe livros, diários, anotações para qualquer propósito. Era assim no Organismo até Alfredo chegar e se estabelecer no Topo."
Uma segunda questão presente em Tóquio é sobre o que nos faz humanos. É a nossa memória? É um corpo físico? É a capacidade de andar sobre duas patas? Nenhum dos simulacros representando pessoas amadas, que na história são chamados de pupas, pode ser considerado humano. E ao mesmo tempo pode. Galera testou todas as possibilidades e as elevou até a última potência. A tal boneca que se parece com um ser humano inicialmente chega a despertar o interesse sexual do protagonista. Um simulacro humanóide que detém todas as características físicas de uma mulher que sua filha carrega dentro de um saco plástico e a posiciona nua em cima de uma cadeira. Mas, à medida em que o tempo vai passando e a artificialidade dela vai se tornando mais evidente o protagonista se questiona sobre o que ele viu de fato ali. A dança sem rumo foi um dos momentos mais bizarros do livro como um todo. Por outro lado, temos um filho chamado Otto que não acredita ser real e quer que seu pai o deixe partir. É preciso seguir em frente. Só que Otto é um personagem real para aquele que o ama. É humano para uma pessoa específica e não para os demais. É curioso pensar dessa forma.
Deixei para falar do último conto com mais calma porque ele é o mais diferente dos três. Como mencionei acima, ele é um conto escrito em subcapítulos, todos eles pequenos, representando cenas específicas e demarcando uma linha de tempo mais dilatada. Mas, não apenas isso: a escrita tende a ficar em um meio-termo entre a descrição e a narração e Galera usa uma estrutura semelhante a de José Saramago com um parágrafo corrente por todo o capítulo. Pode ser um pouco confuso a princípio para o leitor, mas afirmo categoricamente que depois de uns dois ou três capítulos vocês nem irão reparar nisso. A narrativa tem um tema que parece meio no fundo quando o autor conta a contextualização deste estranho mundo, mas aos poucos o problema vai tomando uma centralidade marcante até estourar no clímax. E esse é outro ponto que gostei não só aqui, mas nos outros contos também: a maneira como a jornada em três atos é bem demarcada e o leitor consegue traçá-las numa boa. Segue o "script" da estrutura, mas a subverte ao mesmo tempo.
Estamos diante de um mundo pós-apocalíptico do qual as informações são bem esparsas, mas descobrimos que boa parte dos alimentos desapareceu, o solo é bastante escasso e as cidades minguaram restando grupos de sobreviventes espalhados em comunidades ou elites vivendo em arranha-céus altamente protegidos. Seguimos Chama, uma menina que habita uma comunidade conhecida como o Organismo, onde todos funcionam em prol de seu desenvolvimento. Com uma vida difícil e enfrentando uma doença mortal chamada de a febre de sangue, o Organismo foi bastante reduzido a uma pequena quantidade de habitantes. Sua sobrevivência é garantida graças a uma colmeia de abelhas estranhas que parecem se alimentar dos mortos e produzem uma substância chamada necromel que protege os habitantes do Organismo da febre de sangue. A vida é simples e limitada àquela comunidade. Não é permitido sair dos limites impostos pelos mais velhos, caso contrário é como se o Organismo fosse perfurado e ferido. Apesar da vida harmoniosa dentro desse local, percebemos o quanto estamos diante de uma sociedade estática que apenas vive para sobreviver. Não há mudanças; a constância é a ordem do dia. E se sabemos alguma coisa sobre a humanidade é que ela é qualquer coisa menos estática. O leitor vai percebendo alguns furos nesta existência idílica pouco a pouco.
Quando um astronauta cai próximo ao Topo, o local onde o Organismo ocupa, a vida dessas pessoas é bagunçada para sempre. Por algum motivo inexplicável, as abelhas desaparecem deste lugar para ressurgirem em outro com um comportamento bem diferente. As pessoas que antes viviam em harmonia passam a ficar temerosas porque algo ao qual elas não conseguem explicar surge em suas vidas. Tudo o que elas desejam é retornar ao status quo, mas a chegada do astronauta causou uma mudança irreversível. O comportamento dos membros do Organismo se torna errático, com ações nunca antes feitas sendo consideradas e adotando uma postura violenta. Galera faz uma clara crítica à nossa sociedade e a um conservadorismo barato que não tem como realmente existir. E antes que vocês comentem de que se trata de um comunismo "primitivo" como alguns pensadores gostam de se referir a esse modo de vida, não, não é. É apenas uma existência onde o comércio e a negociação não tem razão de ser já que não existem "outros" para exercerem esse tipo de relação. Os membros dessa comunidade vivem em uma relação mutualista com as abelhas. Só que a natureza está sempre em transformação, por mais que sua realidade funcione em um prazo estendido. Os membros do Organismo nunca tentaram entender por que as abelhas se comportavam daquele jeito. Quando algo aconteceu e mudou essa dinâmica, seus membros ficarem tentando criar teorias alucinadas sobre o ocorrido. Surge até uma teoria pseudorreligiosa com um dos membros da comunidade adotando uma alcunha messiânica em cima disso. O resultado, claro, é explosivo.
O Deus das Avencas é uma excelente coletânea de novellas, contos de tamanho médio e que nos entregam temas que estão na nossa ordem do dia. Mesmo nas histórias que especulam mais acerca de um futuro próximo ou distante, Galera mantém os pés no chão e nos faz pensar em humanidade, esperanças, expectativas e nossa relação com as mudanças constantes ao nosso redor. Contextos que parecem distantes em uma reflexão tão atual que poderia ser o pensamento do dia. A escrita do autor é fabulosa e uma das melhores estruturas textuais que pude ler esse ano. Tenho algumas reclamações aqui ou ali, mas são pontos dos contos que me ficaram meio nebulosos, mas nada que atrapalhe a minha leitura ou tire o brilho do autor. Por isso a minha nota máxima e a minha recomendação mais do que obrigatória a este livro.
Muito bom! Sou fã da escrita de Daniel Galera e aqui, apesar de o autor se valer de uma pegada voltada para a ficção científica para contar suas histórias, não deixa de lado em nenhuma delas o lado bastante humano dos personagens. Nos três textos também é muito presente uma característica que o autor já gosta de usar nas suas histórias, que é de tratar sobre relações familiares complexas e relacionamentos com reflexões profundas sobre o futuro, como no caso da primeira novela. A última publicação do autor tinha um clima pré-apocalíptico com todo o cenário ali dos anos 90 em Meia Noite e Vinte e é legal ver como aqui existe - não que seja totalmente - um clima pós-apocalíptico, em que o mundo sofreu muitas mudanças, que na verdade vão crescendo de uma história para outra, e a relação dos humanos com a natureza também se tornou mais profunda, como no entendimento mútuo que dá pra perceber em Bugônia, a terceira novela. Adorei a experiência de ler o livro, vou querer providenciar pra ter essa edição na minha estante junto com as outras e completar minha coleção.
Um livro que começa na Porto Alegre de 2018, durante a eleição daquele ano, e acaba num lugar inominado daqui a muitos anos. O fio que leva de um lugar a outro não poderia ser mais claro e no entanto não precisa ser mostrado por Daniel Galera. Uma bela distopia brasileira, com nossa cara, nossas questões e apontamentos para o nosso futuro, por meio da ficção (que parece tão próxima das realidade possível). Lindo, interessante e sensível.
As três novelas são todas bem escritas e interessantes. As do gênero de ficção científica são mais instigantes, mas nenhuma delas me cativaram o suficiente. Galera faz discussões interessantes sobre as possíveis formas de fim do mundo envolvendo principalmente os colapsos ambientais e morais, mas não consegui achar perfeitas. Reconheço os méritos e as reflexões que autor propõe, e indico o livro, mas não é cativante.
O livro comporta três novelas ou contos: "O deus das avencas", "Tóquio" e "Bugônia". Todas seguem, de forma mais ou menos indireta, contornos distópicos e apocalípticos. A primeira trata-se de um casal prestes a entrar em trabalho de parto nos dias anteriores às eleições presidenciais de 2018 em Porto Alegre, os personagens entram numa espiral de reflexões sobre família e pertencimento enquanto o espectro da eleição de um candidato da direita perturba os sonhos da paternidade do protagonista homem.
A segunda novela, Tóquio, se passa em São Paulo, muitos anos depois, onde outro protagonista se vê numa espécie de grupo de apoio psicológico para humanos e robôs humanoides, fac-símiles digitais das personalidades de familiares dos participantes, que precisam lidar com as consequências de ter Cópias emocionalmente instáveis e insatisfatórias em meio a uma cidade em pleno colapso. O último conto, de certa maneira uma extrapolação do terceiro, gira em torno de uma comunidade de sobreviventes (possivelmente no sul do Brasil) que aboliu a tecnologia e foi capaz de viver em meio à superbacérias e outras ameaças biológicas graças a um tipo peculiar de abelhas.
O conto que mais vale a leitura é sem dúvida o segundo, Tóquio. Talvez por ter começado o livro causalmente após a conclusão de "Machines like Me" do McEwan, é quase inegável ver a inspiração que o autor britânico tem na história. São muitas as semelhanças, e não faço disso uma crítica. Galera também inova e consegue extrapolar com algumas ideias para esse Brasil pós-Bolsonaro junto ao funcionamento e imagem dessas máquinas. A narrativa do passado do personagem e a relação com a mãe-ovo e a ex-namorada também merece destaque pela bela construção. Apenas o diálogo entre as duas, numa cena específica, deixou a desejar. Difícil não se identificar com o calor de quem já morou em Porto Alegre e simpatizar com essa imagem de túneis subterrâneos refrigerados.
O primeiro conto, apesar de bem escrito, passa a ficar cansativo, talvez podendo ter uma duração menor. O terceiro foi o que menos gostei e não pude terminar até o fim. Acho que algo do estilo de sua escrita se perde nessa tentativa tão exagerada e fantasiosa de imaginar a vida que se reconstrói do zero.
El deu de les falgueres” de l’escriptor brasiler Daniel Galera, publicat per Les Males herbes i que ha traduït al català Joana Castells Savall. Ens trobem davant d’un recull de tres històries que ens presenten futurs diversos. La primera història, titulada "El deu de les falgueres", se centra en una parella que es tanca a casa seva esperant el naixement del seu primer fill, just abans de les eleccions brasileres de 2018, mentre creix la seva incertesa sobre el futur personal i del país. La segona història, "Tóquio", narra la vida d'un home solitari que viu al São Paulo de mitjans del segle XXI, una ciutat afectada per una profunda desigualtat i desastres ambientals. Aquest home ha de decidir què fer amb una còpia digital disfuncional de la ment de la seva mare difunta i busca suport en una teràpia grupal per a cuidadors d'aquests avatars inquietants. Finalment, "Bugònia" explica la història d'una noia que descobreix el seu paper transformador en una comunitat postapocalíptica en simbiosi amb la natura. Aquesta comunitat veu el seu equilibri alterat quan arriba un home desconegut, mentre afronta les amenaces externes d'un planeta devastat.
Aquest recull de contes, les va escriure en Daniel Galera durant el primer any de la pandèmia, tot i que van ser concebudes abans d'aquesta, potser per això totes tres respiren un deix de desolació i desesperança comuna, exposant futurs incerts com el que la pandèmia ens va mostrar.
De les tres narracions la que més m’ha inquietat ha estat la segona “Tòquio”, aquest concepte posthumanista que ens exposa l’autor on es planteja que la ment de les persones segueixi viva encara que el cos de la persona no hi sigui, sempre ha estat un tema fascinant però que també resulta aterrador. La immortalitat per alguns desitjada, no sé si ha de ser un dels objectius que la ciència i la tecnologia han de resoldre. Aquesta societat post apocalíptica que ens presenta “Tòquio”, amb un planeta dessolat, sense recursos naturals i on el protagonista té creat tot un ecosistema a casa seva per a la supervivència m’ha semblat un dels temes més interessants i més ben plantejats de la novel·la.
“El deu de les falgueres” són tres històries independents però us recomano que les llegiu en l’ordre en que es presenten ja que dibuixen una cronologia del futur de la humanitat, des del col·lapse imminent fins a l’oportunitat de redescobrir-nos com a individus i com a societat.
El deu de les falgueres ens presenta un món que va a la deriva, en tots els sentits: deriva política, econòmica, social i ecològica, i això ens hauria de preocupar i alhora ens hauria d’ocupar en revisar quins aspectes encara som a temps de canviar per a evitar un futur com els que ens planteja.
Não gosto muito dos livros de contos que já li, mais O Deus das Avencas é diferente — os contos são mais largos, e a conexão entre os três é mais claro e interessante. As ideias e histórias de ficção sobre de um futuro devastado pela clima são muitos, mas o que eu gostei dessas foi a desenvolvimento desde mundo ao longo do presente, um futuro distante, e um futuro muito distante.
A primeira história (no presente) deixa os leitores se ver na futilidade das ações das personagens principais. Tem um casal, que tenta fugir da tecnologia e do mundo durante o parto, um tentativa volta à natureza. Eles fracassam no ato — no seu fracasso, a gente pode ver o difícil que é escolher uma decisão contra a sociedade, contra os benefícios do mundo moderno. Num perspectiva fatalista, a gente pode ver que é quase impossível impedir o progresso assim, por que o progresso avança por escolhas individuais.
A segunda história (um futuro perto) tem que ver muito com este progresso temível, promovido pelas corporações sem pensar nas consequências de largo prazo, e a luta contra elas. Eu gostei muito do pergunta do papel dos privilegiados nessa luta — eles que são ricos, lutando com um sentido de culpa.
A terceira história (futuro muito longe) fala sobre as sociedades pos-apocalípticos. Uma tema central foi os ciclos: os humanos tem que esquecer o passado para construir uma nova sociedade, para se abrir aos novos maneiras de viver? Ou tem que lembrar para não cometer os mesmos errores do passado? Isso me lembrou muito a The Parable of the Sower, por o ênfase na ideia de mudança, e importância de se adaptar.
No fim de tudo, me deixou um pouco pessimista, pensando que o futuro é inevitável, especialmente com a primeira história. Mais o terceiro me deixou com a sentido de que os animais e bichinhos no mundo, insetos, e também os humanos, são feitos para se adaptar, um ideia optimista.
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O Deus das Avencas: ** Se eu sou o editor, esse conto teria sido publicado de graça na internet. Enfraquece muito o livro.
Tóquio: *** Um Black Mirror brasileiro bem feito, mas que me chateia pelo exagero das parte orientais. Incomoda também que podia ser um bom romance e fica a impressão que rolou preguiça de desenvolver direito.
Bugônia: **** É criminoso que não tenha sido um romance.
De vez em quando é chato o quanto as leituras teóricas aparecem (tem Donna Haraway quase como citação acadêmica em alguns trechos) e revelam demais as costuras da tecitura narrativa, o que parece ser um problema recorrente dessa geração forjada em oficinas de escrita criativa.
Mas nem isso atrapalha a boa história. Chama merece virar uma entidade gaúcha, com seu poncho-pala inspirando gerações. Em um romance só dela isso seria mais possível, então me deixa irritado o quanto o autor subestimou sua obra (mas quem tem que ganhar dinheiro com isso é ele, não eu, então deve ter lá seus motivos)
E eu teria colocado uma sacola de plástico velha explicando a origem do nome Esquilo, mas pensando bem, até que ficou melhor assim.
É um livro difícil de avaliar. Criativo e imperfeito, é uma coleção de três novelas que falam sobre futuros (alguns próximos, alguns mais distantes) onde as raízes da sociedade vão ruindo cada vez mais e os laços interpessoais ou se estreitam ou se afrouxam — só não permanecem os mesmos. Tem uma escrita muito bonita, embora contenha um excesso de adjetivos, mas isso pode ser facilmente perdoado em vista do fato de que este tipo de história é muito rara na literatura brasileira e deve ser prezada com o vigor merecido. Por mais que eu não tenha amado a leitura, sempre aprecio histórias diferenciadas. Assim como o primeiro livro do Daniel Galera que li, Barba Ensopada de Sangue, tenho certeza de que este será um livro que carregarei para sempre e no qual pensarei constantemente, sempre reconsiderando o que li e os intuitos e ideias do autor.
As três histórias são ótimas e é possível ver a noção de tempo entre elas. A primeira traz o relato de um casal preocupado com o nascimento do filho. A sociedade ainda é essa que conhecemos e as preocupações são com o colapso ambiental e a política. Já na segunda, a gente já percebe que “deu ruim”. O meio ambiente não é mais o mesmo, a tecnologia evoluiu muito, só que nada preservou o planeta da forma que ele era, apenas degradou. Essa novela conta a complexa história de um homem com a mãe. Por fim, o livro termina em um mundo muito mais distopico, em que a sociedade já está no modelo “mad max” e se organiza em pequenos grupos. Apesar da passagem de tempo, os comportamentos humanos ainda perpassam muito pela violência, mas já com um respeito tardio pelo meio ambiente. O livro traz boas reflexões sobre o futuro.
terminei e me lembrou um pouco os primeiros acordes de Just Like Honey, aquela guitarra intensa e meio inevitável, mas com uma melancolia latente reconfortante. ou uma viagem de ônibus de madrugada, luzes apagadas, reflexões acesas.
cria futuros ricos em imaginação e lógica, assustadores no quanto, mesmo tão distantes, soam tão próximos, e também no quanto a nossa compreensão do mundo parece despreparada para lidar com os conflitos (morais, éticos, políticos e filosóficos) que estão a caminho.
também tem uma ótima referência ao Zaffari, algo que poderia ser recorrente em todos os livros. recomendo fortemente.