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173 pages, Library Binding
First published January 1, 1951
DISSOLUÇÃO
Escurece, e não me seduz
tatear sequer uma lâmpada.
Pois que aprouve ao dia findar,
aceito a noite.
[…]
E aquele agressivo espírito
que o dia carreia consigo,
já não oprime. Assim a paz,
destroçada.
[…]
No mundo, perene trânsito,
calamo-nos.
E sem alma, corpo, és suave.
*
CONFISSÃO
Não amei bastante meu semelhante,
não catei o verme nem curei a sarna.
Só proferi algumas palavras,
melodiosas, tarde, ao voltar da festa.
[…]
Não amei bastante sequer a mim mesmo,
contudo próximo. Não amei ninguém.
Salvo aquele pássaro — vinha azul e doido —
que se esfacelou na asa do avião.
*
UM BOI VÊ OS HOMENS
[…] Certamente, falta-lhes
não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
até sinistros. Coitados, dir-se-ia não escutam
nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes
e no rasto da tristeza chegam à crueldade.
Toda a expressão deles mora nos olhos – e perde-se
a um simples baixar de cílios, a uma sombra.
[…] e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.
*
CANTIGA DE ENGANAR
O mundo e suas canções
de timbre mais comovido
estão calados, e a fala
que de uma para outra sala
ouvimos em certo instante
é silêncio que faz eco
e que volta a ser silêncio
no negrume circundante.
*
AMAR
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
*
ESTAMPAS DE VILA RICA (segmento II. SÃO FRANCISCO DE ASSIS)
Senhor, não mereço isto.
Não creio em vós para vos amar.
Trouxeste-me a São Francisco
e me fazeis vosso escravo.
[…]
Mas entro e, senhor, me perco
na rósea nave triunfal.
Por que tanto baixar o céu?
por que esta nova cilada?
Senhor, os púlpitos mudos
entretanto me sorriem.
Mais que vossa igreja, esta
sabe a voz de me embalar.
Perdão, senhor, por não amar-vos.