O grande romance do Rio de Janeiro: Deus-dará é um livro de fôlego, que reconfirma Alexandra Lucas Coelho como incontornável ficcionista. Depois dos romances E a Noite Roda, galardoado com o Grande Prémio de Romance e Novela APE, e O Meu Amante de Domingo, Livro do Ano Público / Time Out, chega: Deus-dará — Sete Dias na Vida de São Sebastião do Rio de Janeiro, ou o Apocalipse segundo Lucas, Judite, Zaca, Tristão, Inês, Gabriel & Noé.
Um romance passado no presente, que atravessa quinhentos anos de história entre Portugal e Brasil: a história do Rio de Janeiro desde a sua fundação à actualidade, ilustrando a presença portuguesa, o caracter carioca, as contradições e complexidades de uma metrópole imensa e vibrante. Este livro é ao mesmo tempo palco histórico e cenário de uma trama irresistível protagonizada por sete personagens ao longo de sete dias.
ALEXANDRA LUCAS COELHO nasceu em Dezembro de 1967. Estudou teatro no I.F.I.C.T. e licenciou-se em Ciências da Comunicação, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Trabalhou dez anos na rádio continuando ainda hoje a colaborar com a RDP. Desde 1998 é jornalista no Público. A partir de 2001 viajou várias vezes pelo Médio Oriente / Ásia Central e esteve seis meses em Jerusalém como correspondente. Foram-lhe atribuídos prémios de reportagem do Clube Português de Imprensa, Casa da Imprensa e o Grande Prémio Gazeta 2005. Mantém o blogue Atlântico-Sul, onde publica as suas crónicas que escreve para o Público.
Em 2007 publicou «Oriente Próximo» (Relógio D’Água), narrativas jornalísticas entre israelitas e palestinianos. Publicou mais quatro livros de reportagem-crónica-viagem: «Caderno Afegão» (2009), «Viva México» (2010), «Tahrir» (2011) e «Vai, Brasil» (2013). Em 2012 escreveu o seu primeiro romance, «E a Noite Roda», vencedor do Grande Prémio de Romance e Novela APE 2012. Publicou, recentemente, «O Meu Amante de Domingo» (2014).
Depois de Deus-dará, nunca mais verei o Brasil e o Rio de Janeiro do mesmo modo: trata-se de um romance de belíssimas personagens com quem criei grande empatia, de um ensaio sobre a colonização e a escravatura, de um livro de história com h maiúsculo, tudo tão bem harmonizado, num registo tão original, que só posso aconselhar a sua leitura!
“Brasil-Ao-Deus-Dará, esperando o que vai vir, achando que não tem jeito, mas sempre dando um jeitinho. Brasil-Interdito & Transgressão, um gerando o outro, mamilo tapado/bunda de fora, tráfico no morro/consumo no asfalto. Uma mão para botar menor na cadeia, outra para alimentar o que faz dele ‘bandido’. Despenalização das drogas: fim do tráfico. Vai encarar? (…)Brasil-Privataria, entregue a empreiteiros. Sistema político blindado contra a sociedade. Economia se modernizando na ditadura civil-militar, potência industrial sob signo autoritário e, a partir de Collor de Mello: exportar, exportar, exportar.”
Na impossibilidade de não associar o nome de Alexandra Lucas Coelho ao encanto do Brasil – não houvesse, antes de mais, um primeiro resultado literário, um conjunto de crónicas reunidas e publicadas em “Vai, Brasil” (Tinta da China, 2013) –, há-que preparar o leitor para o mundo tão infinito e diversificado, separado por milhares de quilómetros do oceano Atlântico e vivido pela escritora durante quatro anos, em primeiro como jornalista e, num outro momento, só como cronista do Público. Uma proximidade tão intensa que, pelo meio, surgiu “O Meu Amante de Domingo”, à medida que esta obra ainda não via a luz do dia. São demasiados pormenores que podem aproximar ou separar o Brasil de Portugal: o ponto de vista de cada leitor é fulcral para esta relação que se intensifica com o passar do tempo. Um país tão violento e racista, com um sistema político com tantas falhas, causador de recentes revoltas nas ruas, pode afastar-se de Portugal à medida que a cultura – não estivesse esta narrativa cercada por tanta música de géneros tão diversos – e o idioma, num mesmo patamar, e o passado, num outro, acabam por aproximar. Opostos que, num olhar curto e breve, acabam por juntar.
Contado ao longo de sete dias, em diferentes anos, numa inspiração clara com o Génesis (origem, criação ou princípio), “Deus-dará” (Tinta da China, 2016) é um tributo ao dia-a-dia carioca, a um país com vidas e lugares tão diversos no mesmo território: o Rio de Janeiro. É na explosão de sensações, em que a qualquer momento tudo pode acontecer, que Alexandra Lucas Coelho leva o leitor no caminho de descoberta de sete personagens, ou não fosse o subtítulo desta obra tão extenso (“Sete dias na vida de São Sebastião do Rio de Janeiro ou o Apocalipse segundo Lucas, Judite, Zaca, Tristão, Inês, Gabriel & Noé”). Com o Rio a marcar presença em cada capítulo e em cada página deste livro, as sete personagens são apenas sete figurinos retratados ao pormenor: cada leitor, com as suas características pessoas e vivências, identificar-se-á com a história de cada personagem.
É sem dúvida a "grande obra" literária da autora, e um marco que, se ela tentar explicitamente ultrapassar em futuros romances, vai significar enfrentar dificuldades complicadas. Ainda assim, mesmo reconhecendo que se trata de uma obra notável, cuja leitura é muito recompensadora a vários níveis, sendo as coisas como são, no cômputo geral, preferi a simplicidade, linearidade, racionalidade e mesmo a brejeirice de "O Meu Amante de Domingo", escrito num intervalo da autoria deste tomo, no que penso terá sido uma espécie de exorcismo... mas isso sou eu.
Em primeiro lugar, a escrita, a construção das frases, é excepcional, a linguagem belíssima. O livro vive de frases como "Foi assim que numa manhã de tempestade, daquelas em que o Rio de Janeiro volta ao génesis, fim e começo do mundo, e do caos sai o homem, Lucas se viu a escorrer água diante da buganvília da David Campista, após dois ônibus, o primeiro, avariado." ou "Amor de cachorro é imortal, e cachorro sempre morre, o que é terrível para os humanos mas do ponto de vista do cachorro está certo, morrer quem ele ama seria insuportável. Amor é: ser evidente que preferimos morrer antes." ou "Por isso, depois de jantar, na festa da laje, neste mundo preso por fios de arame que é a acrobacia de milhões do nascimento à morte, Noé achou que o amor não acabaria nunca até Lucas poder falar." Não é muito bom, é verdadeiramente excepcional e são umas atrás de outras. É um português de uma beleza avassaladora, que nos reduz humildemente à nossa condição de leitores agradecidos por vivermos neste tempo, em que há autores contemporâneos deste calibre.
Também se nota a autora de "O Meu Amante de Domingo", antes referido (e do "E a Noite Roda", diga-se, há referências explícitas) em considerações sobre as relações entre os sexos, como em "E o que elas dirão, se você quer mesmo saber, é o que as mães, as avós diriam, ou não diriam, porque não era o estilo: raro é o homem que chegou a entender onde entrou e de onde saiu. Aliás: raro o homem que achou que havia algo para entender. Pode perguntar pra elas, as internautas do terceiro milénio que gostam de homens, com toda a probabilidade vai ouvir que, na vida de uma mulher, homem e orgasmo são duas entidades independentes, que se complementam mais do que coincidem." Bom, a avaliar por um livro que li entre começar e acabar este, o "The Power", romance de ficção-científica de Naomi Alderman, as coisas devem estar mesmo complicadas neste capítulo...
Por falar em ficção-científica, género de predilecção, li um artigo acho que do John Scalzi no blog dele, mas posso estar enganado, segundo o qual é o género das explicações, os autores sentem a necessidade de interromper a fluência narrativa para uma explicação. É uma das características mais polémicas do género e um dos autores mais castigados por a adoptar é um dos meus dois autores favoritos, Robert A. Heinlein (o outro é José Rodrigues Miguéis). Esta referência deve-se ao facto não despiciendo de este livro estar cheio de explicações: sobre os Descobrimentos, sobre as iniquidades da exploração colonial, sobre o caos brasileiro (ou especificamente, carioca, ou mais especificamente ainda, centrado no Cosme Velho), e etcetera. Tal como no caso do Heinlein, adorei.
Para usar um conceito literário que me foi apresentado por Jo Walton em "What Makes This Book So Great", trata-se de um romance em mosaico ("A normal novel tells a story by going straightforwardly at it, maybe with different points of view, maybe braided, but clearly going down one road of story. A mosaic novel builds up a picture of a world and a story obliquely, so that the whole is more than the sum of the parts.") que releva de uma aposta extremamente ambiciosa, mas miraculosamente, in extremis mesmo, bem sucedida, quase epifânica (no sentido em que, para o leitor, tenderá a haver um Brasil antes deste livro e outro depois deste livro; e talvez mesmo um Portugal...).
Uma nota para o livro, o objecto físico, editado pela Tinta da China, composto em caracters Hoefler Text e impresso na Eigal, Artes Gráficas em papel Coral Book de 80 gramas, em Outubro de 2016. Eu, que praticamente já não leio livros em papel (o ano passado li 120 livros, 32.336 páginas segundo a estatística do Goodreads, só um em papel, o "Alentejo Prometido" de Henrique Raposo), não pude deixar de me maravilhar com a qualidade e o cuidado profissional da produção e de reconhecer que com todas as imagens e a sua colocação, os imperativos de paginação, o único suporte digno para esta obra literária é o clássico, no caso insubstituível. A Tinta da China continua a publicar os livros mais belos do panorama editorial português.
"É a hora da contraluz, a água fica uma chapa de cobre, e o rastilho do Sul, que sumiu atrás da Pedra da Gávea, une a margem de cá à margem de lá, onde o pico mais alto é o Dois Irmãos, todo em silhueta. Em caso de fim do mundo, o melhor mesmo é estar no Rio de Janeiro."
Sete personagens para contar, em sete dias distintos, as histórias e as geografias da verdadeira protagonista do romance: a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Mas para contar as histórias é também preciso contar a História, e por isso este romance percorre o arco dos cinco seculos que unem, mas também separam, o Brasil e Portugal.
Admirável é que a autora consiga manter o fôlego narrativo e literário numa obra de tão vasto alcance (embora num registo muito diverso, lembro-me do livro Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro).
Tal com o é a riqueza dos recursos a que a autora recorre para contar, da astronomia à música popular, passando pelas mitologias, pela antropologia, pela cultura urbana, pela política e pelos movimentos políticos, etc, etc etc. A todos os títulos, um grande romance.
"Brasil-Ao-Deus-Dará, esperando o que vai vir, achando que não tem jeito, mas sempre dando um jeitinho. Brasil-Interdito & Transgressão, um gerando o outro, mamilo tapado/bunda de fora, tráfico no morro/consumo no asfalto. Uma mão para botar menor na cadeia, outra para alimentar o que faz dele ‘bandido’. Despenalização das drogas: fim do tráfico. Vai encarar?"
Sou muito preguiçoso para escrever comentários acerca dos livros que leio. Muito porque são tantas as sensações que deles extraio que não consigo transpôr para palavras minhas. Este livro é o melhor exemplo disso. É um romance mas cheio de histórias reais, com muitas apartes e relatos históricos que para muitos pode parecer fora de contexto mas que para mim me delícia. Uma verdadeira miscelânea tal qual o Rio de Janeiro. Este livro fez-me também lembrar que ando à muito a dever uma viagem ao Rio. Adoro o estilo de escrita da Alexandra Lucas Coelho. Já tinha lido o "Líbano Labirinto' e gostei muito. É um livro de reportagem com um toque muito pessoal e humanista de quem viaja a sério e contacta realmente com quem vive nesse local. Já no caso do Deus-Dará é diferente porque as personagens são "fictícias" mas certamente muito inspiradas nas pessoas e histórias com quem ela se cruzou durante os 2 anos que viveu no Rio.
4,5* Que delícia de livro! É impressionante como este livro não é mais lido em Portugal. Bom desenvolvimento das personagens deixando espaço para relações do leitor, mergulho a pique na história da colonização do Brasil, reflexão desafiadora do Brasil dos dias de hoje, do desenvolvimento da mulher e da segregação racial que ainda se manifesta.
Maravilhoso o livro da Alexandra Lucas Coelho. Um romance de personagens contemporâneos da formação do povo brasileiro: ameríndios, portugueses, africanos e árabes. Uma trama da diversidade de identidades de gênero, raça, orientação sexual e classe que compõem a sociedade brasileira. Uma lição de ciências sociais, literatura, história e geografia. Sete personagens em sete dias de 2012, 2013 e 2014 no Rio de Janeiro com resgates sociais, históricos e geográficos do achamento, do império e da república. Um narrador transatlântico que só revela sua identidade nas últimas das 440 páginas. Um modo de fazer romance criativo, inovador e bem sucedido da Alexandra.
Começo a ler “Deus-dará” e, como de costume, a tirar algumas notas. Cedo, porém, me dou conta de que a informação é tanta e tão valiosa que prosseguir com esta tarefa se afigura empresa impossível. Por um lado, corro o risco de transcrever quase na íntegra o livro para o caderno; mas, sobretudo, percebo que, a continuar assim, irei rapidamente perder o fio à meada desta chuva em catadupa de palavras, cores, sons e perfumes, aglutinadas no viver e sentir das gentes em permanente ebulição e adoçada com o cheiro gostoso da canela que se desprende de cada gesto, de cada fala, de cada mensagem. Melhor mesmo é entregar-me por inteiro a esta estonteante canção que tem como ponto de partida o encontro entre o Velho e Novo Mundo a atar portugueses e brasileiros para sempre, e que transforma cada página num grito de amor e dor, de liberdade e opressão, de beijo e agressão, de luta e de luto.
Como se quisesse contrariar a “Felicidade” de António Carlos Jobim, a autora elege a quarta-feira como o primeiro destes “sete dias na vida de São Sebastião do Rio de Janeiro”. Sete dias e sete céus, sete sóis, sete luas, sete curvas, sete chakras da energia. Sete vidas, sete dores. Sete milhões de amores, tantos quantos os habitantes da segunda cidade mais populosa do Brasil. Contando a história de Lucas, Judite, Zaca, Tristão, Inês, Gabriel e Noé, Alexandra Lucas Coelho toma-nos pela mão e faz-nos descer o Cosme Velho até aos bairros de Jacarepaguá, Água Santa, Inhaúma ou Engenho de Dentro, ao Complexo do Alemão, da Maré ou da Cidade de Deus, à ilha de Paquetá, à praia de Copacabana ou ao Corcovado, cruzando vidas e sortes que mostram até que ponto tudo muda para que tudo fique na mesma. Um “requiem tropical” que, com mais ou menos açúcar, nos vem lembrar que alguém permanece livre porque nasceu branco e exerce o poder sobre alguém escravo porque nasceu negro.
Recorrendo ao olhar do cinema, direi que ler “Deus-dará” é assistir a um documentário ficcionado onde a maioria das sequências são filmadas num único plano, a câmara à mão, frenética, nervosa, em sobressalto constante. Há depois os zooms, um olhar que pousa sobre a Serra dos Orgãos, que se abate sobre a floresta, entra no terreiro e depois na casa até se centrar em cada um dos participantes que, vestidos de branco, participam no rito da ayahuasca. Ou sobre Inês sentada à janela da Charutaria Syria, depois do plano se abrir sobre o espaço da loja, mais ainda sobre a pracinha em triângulo da Rua Buenos Aires com a estátua do Mascate, e sobre o Saara, o maior shopping a céu aberto do mundo, com as suas mais de 1200 lojas. Finalmente, o grande plano, olhos nos olhos com figuras tão distantes e distintas como Machado de Assis ou Dirk Van Hogendorp, Garrincha ou o rinoceronte Ganda, o jesuíta José de Anchieta ou o imã Abdurrahman al-Baghdadi, Pêro Vaz de Caminha ou Rafael Bordalo Pinheiro.
Com um olho na moral e outro no malandro, o que Alexandra Lucas Coelho faz é misturar a História, a Política, a Sociologia, a Etnologia e todas as restantes ciências sociais e humanas nesse enorme caldeirão fumegante que é a Cidade Maravilhosa, a pior cidade do mundo à excepção de todas as outras. Daí resulta um milhão de leituras possíveis, uma das mais claras dando conta que Portugal continua a mostrar-se incapaz de olhar o seu passado além da aventura e de reconhecer as consequências dos seus actos, persistindo em ignorar a violência do colonialismo nos discursos que produz sobre os “Descobrimentos” e em reduzir a história à auto-estima. Complementarmente, é-nos proposta uma sensacional playlist onde cabem Carmen Miranda e Jards Macalé, Luís Gonzaga e Vinicius de Moraes, João Bosco e Tom Jobim, Adriana Calcanhotto e Seu Jorge, Caetano Veloso e Chico Buarque, MC Funkero e MC Pensador, gravações feitas no Alto Rio Negro, “cosmogonias, cosmologias” e uma Avé Maria de Schubert, ao meio dia, “oferecimento altifalante da Igreja de São Judas Tadeu”. À qual acrescentaria o “irmão do meio” que, com Gabriel o Pensador, nos diz que isto anda tudo ligado.
Não gostaria de terminar esta (anormalmente longa) recensão sem transcrever mais um excerto do livro, demonstrativo da sua força visual e da mensagem política que lhe subjaz em cada página, em cada frase: “Conforme as incursões da polícia, a cracolândia pode mover-se de quadra ou para outra favela, mas hoje não tem novidade. A kombi avança ao longo da Maré, vira à direita, estaciona. De um lado da rua, armazéns, caminhões parados; do outro, papelões, colchões, plásticos, trapos, lixo, e gente saindo de tudo isso, a ver quem chega. Cheira a podre, um funk brada: QUEM PODE ACABAR COM A GUERRA / NÃO QUER QUE A GUERRA ACABE.” Talvez porque a selva seja tão perto, talvez porque o morro seja tão alto, talvez porque a vida seja tão perigosa, talvez porque se possa pedir tudo ao Cristo, menos que ele seja o grande guarda-nocturno desta Sodoma incorrigível, parece-me não haver outra forma de o dizer: “Deus-dará” é foda!
Nunca tinha lido nada de Alexandra Lucas Coelho embora já tivesse ouvido falar nesta autora. Um dos meus objectivos pessoais deste ano de 2021 era, precisamente, ler mais livros escritos por mulheres por isso este livro também contribuiu para esse objectivo. Alexandra Lucas Coelho começou por ser jornalista tendo estado em zonas de conflito no Médio Oriente e Ásia Central. Já viveu em vários locais do mundo tendo sido correspondente no Brasil onde morou durante cerca de 4 anos. Presumo que essa vivência tenha sido preponderante para a realização deste livro.
Esta obra é muito difícil de catalogar. Durante a sua leitura fiquei na dúvida se era um livro de História ou se contava as histórias particulares de cada personagem. O livro está organizado em 3 grandes capítulos e 7 subcapítulos em que cada um representa um dia da semana começando à 4a. feira. As personagens principais são também 7, Lucas, Judite, Zaca, Tristão, Inês, Gabriel e Noé. O narrador acaba por ser uma espécie de personagem que, de quando em vez, nos vai interpelando directamente tornando o relato mais dinâmico. Através destas personagens, Alexandra Lucas Coelho mostra-nos a diversidade do povo brasileiro e a História da construção deste povo. A acção desenrola-se no Rio de Janeiro, ou melhor, em São Sebastião do Rio de Janeiro no tempo que antecedeu a preparação do Campeonato Mundial de Futebol e os Jogos Olímpicos. Alexandra Lucas Coelho leva-nos numa vertiginosa pelo Rio de Janeiro passando pelas favelas, pelo Corcovado ou pelo elegante bairro Cosme Velho. Mas, também, nos conduz numa fantástica viagem no tempo ao longo dos 500 anos de História, partilhados por Portugal e Brasil.
A estrutura do livro pode-se tornar algo confusa uma vez que intercala a acção propriamente dita com a abordagem histórica. Esta obra exige alguma concentração para podermos apreender tudo aquilo que a autora nos pretendeu transmitir. "Deus- dará" encaixa na categoria de livros que nos fazem pensar uma vez que desconstrói muitas das ideias feitas que temos sobre o papel dos portugueses nos Descobrimentos, na colonização e no processo da escravatura. A autora mostra-nos um retrato do Brasil numa época em que o país vivia um período de maior prosperidade na era pré-Bolsonaro e pré-pandemia. Apesar de a acção se situar há menos de 10 anos, retrata uma realidade que já se pode considerar histórica.
4,5. É um grande livro, dos melhores que li nos últimos tempos. Achei o final um bocadinho perdido, mas, na generalidade, foi uma leitura muito gratificante. Já gostava de Alexandra Lucas Coelho, mas aqui sobe ao nível de escritora, com E maiúsculo.
Uma estilo completamente novo, profundamente jornalístico, em que se tece uma malha que ensina e faz sentir na pele, mesmo sem jamais lá ter estado, o caos do Rio de Janeiro e o peso insuportável do colonialismo português.