Álvar Núñez Cabeza de Vaca foi tão ousado e persistente quanto seus contemporâneos Cristóvão Colombo, Fernão de Magalhães, Hernán Cortés e Francisco Pizarro. Pode ter tido menos fortuna e reconhecimento, se comparado a esses homens que mudaram o mapa do mundo, mas não lhe faltou sorte. Seu jogo de cintura, aliado a sinais da cruz, um grilo e um temporal, lhe permitiu escapar da morte diversas vezes, vivendo o suficiente para eternizar sua história singular.
Neto de um grande guerreiro, o fidalgo espanhol deixou sua casa em Jerez de la Frontera quando adolescente, para se tornar soldado profissional. Lutou na Itália e foi gravemente ferido. Recuperado, serviu como camareiro de um duque e envolveu-se em incidentes picantes. Depois de combater um movimento rebelde, embarcou rumo à Flórida, na condição de tesoureiro real. Foi o início de uma odisseia.
A história é mesmo surpreendente: Cabeza de Vaca sobreviveu a três naufrágios, curou centenas de índios, atravessou, nu e descalço, parte dos atuais Estados Unidos e México, voltou à Espanha e obteve um cargo como recompensa por suas desditas. Depois de nova viagem, tomou posse de Santa Catarina, na condição de seu primeiro governador. Mas não sossegou: atravessou a pé o território brabrasileiro, chegando a Assunção. Dali, partiu novamente em busca de uma serra misteriosa, feita de prata, até ser imobilizado pela malária num pequeno forte no meio do nada. Ao retornar à cidade, foi deposto por seus opositores. Passou quase um ano numa cela úmida e voltou para casa como traidor e prisioneiro, quando um terrível temporal mudou sua sorte mais uma vez.
Para reconstituir essa história fantástica, Paulo Markun cotejou a obra autobiográfica de Cabeza de Vaca com os depoimentos de mais de uma centena de testemunhas ouvidas em vários processos judiciais na Espanha. Confirmando u desmentindo as afirmações do protagonista e de seu secretário particular nos Naufrágios e Comentários — obras pioneiras da literatura de viagens —, o autor recupera a saga desse conquistador cuja vida atribulada e cercada pelo mito é ainda larga e injustamente ignorada.
Paulo Markun (São Paulo, 1952) é um jornalista brasileiro, casado com bailarina, cantora e compositora Tatiana Cobbett, e pai de Pedro Markun que ficou famoso por clonar o Blog do Planalto, Blog do Governo Federal. Formado em 1971, também foi repórter, editor, comentarista, chefe de reportagem e diretor de redação em emissoras de televisão, jornais e revistas. Paulo Markun passou praticamente por todas as emissoras de televisão paulistanas, da Rede Cultura à Rede Bandeirantes. Também trabalhou na Rede Manchete, na Rede Globo e na Rede Record. Atualmente, é editor do Jornal de Debates (recriou na internet a versão do jornal de 1946) e preside o Sindicato da Indústria Audiovisual do Estado de Santa Catarina. Preside a Fundação Padre Anchieta, entidade mantenedora da TV Cultura, desde junho de 2007. Apresentava o programa Roda Viva da TV Cultura (segundas-feiras, dez e quarenta da noite) desde 1998, mas foi substituído pelo jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva a partir de 2008, Dirige hoje uma das emissoras educativas mais importantes do país. É autor de oito documentários e doze livros. Paulo é pai da atriz Anna Markun.
Descendente de nobres espanhóis, Álvar Núñez Cabeza de Vaca (cujo nome remete à guerra contra os mouros, quando um ancestral usou o crânio de uma vaca para indicar a melhor rota aos cristãos) foi excelente lobista com trânsito na corte, bom e fiel soldado, manipulador, articulado, inteligente e, acima de tudo, disposto a conquistar terras - ou invadi-las - em nome de Sua Majestade. Eis a história do heroi fracassado mais teimoso de todos os tempos! === Pouco importa o fato de o livro ser uma reconstrução - muitíssimo bem documentada - sobre a história de um personagem real: ainda assim ele nos parece mais um conto de fadas, uma lenda como a de Dom Quixote, um inverossímil romance das eras da cavalaria, uma impossível aventura pelo Novo Mundo. Afinal de contas, não é todo dia que se lê o relato - verídico - de um homem que, depois de percorrer, nu e descalço, aproximadamente 8.000 km (sim, oito mil!) pelas ermas terras da América do Norte como explorador, fugitivo, escravo e curandeiro, ainda se aventurou por mais alguns outros milhares de quilômetros pela América do Sul, desta vez em busca das fabulosas montanhas de prata prometidas pelos nativos. Notável não pelo sucesso de seus feitos (que foram poucos, na verdade), mas pela forma como os narra, Cabeza de Vaca nos prende, instiga e apaixona pela obstinação e rebeldia com que seguiu adiante - nu, descalço, traído por seus companheiros e abandonado por seu rei - sem nunca se dar por vencido; aliás, dar-se por vencido é coisa que não fez, percebendo-se de seus relatos a plena convicção de efetivo cumprimento das missões a que se propôs (mesmo que somente em seus sonhos de igualar seu avô em fama e importância). Cheio de contradições como todos os homens de seu tempo - mesmo sonhando com um modelo de conquista mais humano e complacente para com os nativos, seus propalados ideais foram soterrados pela ganância de seus subordinados - Cabeza de Vaca não descobriu nada, não colonizou território algum nem enriqueceu, mas a memória de seus feitos há de perdurar sobre a de seus parceiros e inimigos, que jamais passarão de notas de rodapé na história da vida do heroi fracassado!