Sinopse: A crise é sempre culpa do outro. Ninguém quer partilhar a crise. A crise provoca ciúmes. A crise é um latifúndio improdutivo que ninguém quer dividir. A crise pode ser uma atração turística, uma marca nacional. Uns países tem o urso cinzento, como os Estados Unidos, outros, a novelle cuisine, outros as estações de esqui, nós temos o erro permanente, o destino-pastelão. A crise demanda mais crise, como a heroína. A crise preenche nossas vidas. A crise é uma minissérie da Globo. Já há um certo carinho moderno pela crise. O dia em que a crise for embora, o que faremos? O que será de nós, sem assunto, sem tremor, relegados a tarefas menores como, digamos... trabalhar? Teremos então um intenso tédio conjugal pela Pátria.
Minhas Impressões: Arnaldo Jabor deve ter passado por lobotomia!
Trechos:
Página 32 - "(...)apenas dou a esmola normal, sem olhar para o garoto, que no entanto me olha sem parar. Sua mãe me olha a distância também. Mas eu não olho para eles. Por que esta dissincronia de olhares? A riqueza não olha a miséria, mas a miséria olha a riqueza. Não olho para não sentir culpa, ou para não ferir meu universo estético em que a miséria é um fator de desarmonia. A miséria não é plástica. A miséria nos lembra de que a desgraça existe, e que, por conseguinte, a morte também existe. Como quero esquecer a morte, não olho o menino."
Página 32 - "Eu saio lucrando com a esmola, pois estou apaziguado, cumpri meu dever, me sinto legal, pois paguei um pedágio ao miserável por ter carro, comida e casa. Foi bom para mim aquele miserável. Assim, a miséria cumpriu uma função estabilizadora das regras sociais. A esmola que dei me consola mais do que ao mendigo. Também permite que eu me exclua da injustiça social, já que eu me indigno. Assim, a injustiça é feita por outros, por eles, pessoas sem rosto que são culpadas de tudo. O mundo é mau, mas eu estou fora; isto é um affair mal resolvido entre aquele garoto mendigo e os malvados do mundo. Assim, a caridade me faz bem, mais do que ao garoto que leva aquela mixaria que eu dei. A miséria mantém o mundo funcionando, apesar de sujar a paisagem."
Página 39 - "João: 'O Brasil está numa crise de parto. É um parto muito demorado. As coisas são surpreendentes. A revolução militar prendeu, torturou, etc... mas não regrediu o país. O país cresceu. Agora, com a liberdade está parado. Se puser o homem mais genial do mundo no governo, os estamentos burocráticos e os políticos reacionários não deixam."
Página 40 - "Em suma, o Brasil em detalhe é só decadência, mas acho que no conjunto é positivo."
Página 51 - "A miséria vista no aquário sem fim da TV acaba se banalizando; no cinema, a miséria da seca refletida no olho de um boi morto (primeira imagem de Deus e Diabo na Terra do Sol) pode falar mais que duas horas de Globo Repórter. o VT nos virtualiza, o cinema nos traz o real."
Página 85 - "Com a crescente desesperança surge a busca do óbvio, da coisa pela coisa, do sim pelo sim."
Página 155: "E nosso real está onde? Não na metáfora que se ilude em preenchê-lo; nosso real está no irretratável, no eterno vazio dentro de nós."
Página 187 - "Nossos códigos penais terão de ser escritos para um tempo onde o horror é normal e o crime compensa."
Página 192 - "Nós matávamos porque eles eram iguais a nós, moravam na mesma periferia, nos mesmos barracos, a gente matava neles a nossa vida miserável que nos fazia estar ali matando eles. Queríamos horrorizar as pessoas que não estavam ali, que diriam depois 'que horror, que horror!' Ninguém sabe que é horror; nós sabemos."
Página 206 - "Jamais esse país avançará se não houver forças para acabar com os quatro interesses do apocalipse: a oligarquia rural, os oligopólios industriais, as multinacionais ditando preços e o Estado inchado. Quem tem cacife?"
Página 209 - "Se você tirar o sentimento de culpa do homem, ele cai de quatro e começa a urrar no bosque. A culpa é a nossa salvação."
Página 210 - "(...) o japonês está contente de ser japonês, o americano eufórico por ser americano. Só o brasileiro odeia a própria imagem, como um Narciso às avessas."
O livro me introduziu Arnaldo Jabour, sou nascida nos anos 90 e não conhecia o jornalista, cineasta e tudo mais. O autor é muito inteligente e confesso que não consegui entender 80% das referências que ele faz durante o livro (estou trabalhando nisso). O escritor é muito sarcástico, faz piadas com temas sérios ao mesmo tempo que nos faz ter choques de realidades. Gostei bastante! Uma coisa que faz perder a estrela é a falta de citação de mulheres nos seus textos, a maioria momentos que ele as cita é pra falar de corpo e femininos, sexualidade ou do papel delas sendo esposas de políticos. Apenas no texto final ele cita Janes Joplin, citando-a como amiga, como igual. Mas talvez seja uma crítica injusta, visto que Arnaldo nasceu nos anos 1940, o que esperar de um homem que viveu a maior parte da sua vida em um contexto de inferioridade feminina.