A cultura é um mapa, uma carta de navegação, com balizas e faróis. Antes mesmo que apareça o conhecimento, ela já se faz presente como uma matriz de orientação para fazer diferenças e estabelecer critérios – como um mapa da memória do saber pertinente à reprodução da consciência moderna. Nesse contexto, cultura é tanto espírito como mistério do uma visão intelectual e sensível, isso que o grego antigo chamava de eustochia, a mirada certeira e penetrante numa situação crítica. Podemos falar de grego antigo, mas também do olhar perscrutante do orixá Oxossi. No relato mítico, Oxossi ultrapassa a distância do sol e o apaga com uma flechada. Eu gostaria de interpretar essa distância como o espaço da possibilidade ética, que vem dos ancestrais, mas irrompe liturgicamente no comum sagrado. No sagrado, na utopia ou na ciência, tenta-se localizar essa distância. A ética, contudo, não implica realmente nenhuma transcendência, nenhum “além”, em matéria de valores e normas, e sim uma imanência dinâmica (uma coisa naturalmente inerente à convivência) comum a toda habitação humana num espaço determinado. De fato, no continuum da ancestralidade, o que entendemos como ética não se resume a um conjunto codificado de regras de conduta em função de um Bem. Ética implica toda a envergadura das realizações transtemporais de um grupo humano guiado pelo brilho de sua verdade própria e pelo apelo de sua dignidade, isto é, da regra ancestral instituída ao mesmo tempo que se fundou o grupo.
É incrível como Muniz Sodré traz em seus livros, que foram publicados há vinte, trinta anos atrás, conceitos e problematizações muito atuais. Neste livro, A Verdade Seduzida: Por Um Conceito de Cultura no Brasil, ele traça elocubrações e desmembra conceitos como a verdade e a cultura e a verdade na cultura. A forma como o autor vai colocando suas ideias de uma forma clara e concisa difere de alguns acadêmicos que gostam de dificultar a vida de seu leitor, desenvolvendo um texto rocambolesco. Os textos de Sodré são perfeitamente acessíveis mesmo para quem não é do meio acadêmico. Neste livro, ainda, como exemplos de cultura brasileira, o autor traz uma análise da cultura negra, da capoeira e dos cordéis, entre outras possibilidades de se pensar os produtos deste país multicultural.