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“tenho de me refazer continuamente com o que ainda há: estas palavras cujo sentido é o de serem suporte de outras palavras, e através das quais choro, perco-me, amo, reencontro-me. São elas que me dão peso, nestes tempos frios em que preciso de me orientar no interior de uma solidão que me afugenta como uma doença contagiosa. Porque não tenho nenhum dos sinais medonhos da proximidade: família, a eficácia dos gestos, a contabilidade do mundo. Eu, que me julguei corajoso, devia ter a coragem de desistir, para que não te degrades. No entanto, o que vai acontecer, é a tua progressiva destruição, até não seres mais do que um resíduo.”
―
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“- Bebo, devagar, até à claridade, isto é, escrevo a solidão sobrevivente, e tenho vergonha destas palavras, quero dizer, se não tivesse bebido, elas não estariam escritas assim, ei-las no céu limpo do isolamento.
Só há um lugar para a solidão de cada um. O meu é esta casa, este esconso, estas águas-furtadas, este sótão, este último andar, de onde vejo o que me cega. De aqui, espreito, pela porta entreaberta, minha irmã Francelina. Fui e sou um olhar através de uma frincha. Tinha e tenho um olhar separado de mim, coisa estrangeira. Bebo, a esta hora. Perco-me e não me perco. E grito do sítio de me perder para o sítio de não me encontrar: o álcool não me traz felicidade, traz-me um olhar separado. E digo cheia de angústia: minha mãe, minha mãe. E acrescento: por que me abandonaste? Mas sei lá quem foi minha mãe. Por mais que tente, minha mãe é só uma voz que me diz: está quieta. Nada mais lembro, nada mais há para lembrar.”
― Grito
Só há um lugar para a solidão de cada um. O meu é esta casa, este esconso, estas águas-furtadas, este sótão, este último andar, de onde vejo o que me cega. De aqui, espreito, pela porta entreaberta, minha irmã Francelina. Fui e sou um olhar através de uma frincha. Tinha e tenho um olhar separado de mim, coisa estrangeira. Bebo, a esta hora. Perco-me e não me perco. E grito do sítio de me perder para o sítio de não me encontrar: o álcool não me traz felicidade, traz-me um olhar separado. E digo cheia de angústia: minha mãe, minha mãe. E acrescento: por que me abandonaste? Mas sei lá quem foi minha mãe. Por mais que tente, minha mãe é só uma voz que me diz: está quieta. Nada mais lembro, nada mais há para lembrar.”
― Grito
“- a morte é um som. Queixumes, rancores, murmúrios, choros. Alguém acaricia a face de um moribundo e ouve-se a pele nos dedos que a percorrem. A morte é um som insuportável. Não aguento mais: disse. Mas aguentei. A minha vida é o terror desses sons. Mesmo tapando os ouvidos continuo a ouvi-los. Uma acácia a crescer.
espreitar os sons da morte: eis a vida.”
― Grito
espreitar os sons da morte: eis a vida.”
― Grito
“A morte deixou de ser uma paisagem na minha vida: desapareceram já todos os que amei: à minha frente, um caminho limpo. Um deserto. Prolonga-se. Sem uma fronteira.”
― O Anjo Camponês
― O Anjo Camponês
“As pessoas perguntam-me: que tens?, e eu, calada, a sentir uma bola na garganta, feita das palavras todas de que não me lembro”
― A Boca na Cinza
― A Boca na Cinza
“Entre não começar e não começar, entre dois cansaços, entre um dia turvo e outro dia turvo: a paz irregular dos objectos: um silêncio exacto. A luz incendiada pela cegueira. O corpo. Incerto.”
― O Anjo Camponês
― O Anjo Camponês
“(…) estou sempre abrir os olhos. Fecho-os e abro-os de seguida. Está aqui. Eis a minha paz. Está aqui e espera como alguém que sabe de um encontro. Não consola. Não dói. A cada abrir de olhos há uma casa que não me reconhece.”
― (ou, transigindo, de que lado passarás a morrer, a clarear)?
― (ou, transigindo, de que lado passarás a morrer, a clarear)?
“Esse lugar nunca será meu. O meu. Posso mergulhar as mãos na água do tanque, há vinte anos que mergulho as mãos todos os dias de manhã na água do tanque, mergulho-as para as sentir retrair com o frio. Encortiçadas. E é sempre a mesma estranheza. Não sou mais do que um corpo sem mãos, que as olha nessa transparência instável.”
― O Anjo Camponês
― O Anjo Camponês
“fico parada a perguntar-me: para onde vou? o esquecimento é a minha perdição”
― A Boca na Cinza
― A Boca na Cinza
“alguém me procurava
o que lembro : manchas de luz, só manchas, na infância, amarelo
de areia e azul transparente, água através da qual outra luz surgia,
nos meus olhos abertos uma pedra coberta de limo,
o verde ondulava num movimento que fazia crescer cada fio e o
tornava vagaroso,
via-se a luz, a sua vida perceptível nas pequenas bolhas de ar a
desprenderem-se do fundo, campo vertical semeado de luz,
aproximava-me dele e cada palavra crescia no frio dos meus lábios como um desenho, e quase se tornava visível,
a paisagem afastava todas as outras vozes,
o campo picotado de restolho descia até à praia, gafanhotos saltavam arqueados pelo som, lentos na queda, através do calor íntimo de um som a crescer,
a areia chegava-me à boca, em grãos de som,
o mar era o desenho de um barco,
alguém me procurava, alguém procurava o meu nome, de costas
viradas para mim, a afastar-se de mim, num abandono que não
acabará, no entanto, deve ter havido um momento em que essa
voz se debruçou para a minha voz e se confundiu com ela, mas
esqueci-o : o presente é um afastamento que se inicia, uma manhã que não culminará”
― Ouve-se Sempre a Distância Numa Voz
o que lembro : manchas de luz, só manchas, na infância, amarelo
de areia e azul transparente, água através da qual outra luz surgia,
nos meus olhos abertos uma pedra coberta de limo,
o verde ondulava num movimento que fazia crescer cada fio e o
tornava vagaroso,
via-se a luz, a sua vida perceptível nas pequenas bolhas de ar a
desprenderem-se do fundo, campo vertical semeado de luz,
aproximava-me dele e cada palavra crescia no frio dos meus lábios como um desenho, e quase se tornava visível,
a paisagem afastava todas as outras vozes,
o campo picotado de restolho descia até à praia, gafanhotos saltavam arqueados pelo som, lentos na queda, através do calor íntimo de um som a crescer,
a areia chegava-me à boca, em grãos de som,
o mar era o desenho de um barco,
alguém me procurava, alguém procurava o meu nome, de costas
viradas para mim, a afastar-se de mim, num abandono que não
acabará, no entanto, deve ter havido um momento em que essa
voz se debruçou para a minha voz e se confundiu com ela, mas
esqueci-o : o presente é um afastamento que se inicia, uma manhã que não culminará”
― Ouve-se Sempre a Distância Numa Voz
“- somos todos, matamos sempre o que amamos, matamos sempre alguém durante a nossa vida, matam-nos sempre também, um pouco,
(ninguém devolve a dor à minha fala, porque não digo o que me dói)”
― A Boca na Cinza
(ninguém devolve a dor à minha fala, porque não digo o que me dói)”
― A Boca na Cinza
“(o passado está aqui, junto a mim, a falar, e eu esqueço-me, mas o passado nunca me esquece, o passado nunca se esquece
do meu corpo atarracado,
sou unicamente olhos que vêem, ouvidos que ouvem, boca que come, dedos que tocam, nariz que cheira, nunca um corpo na sua integridade, quero dizer: um corpo todo, só pedaços dele,
o meu corpo perde-se na sua memória como o pecado na absolvição,)”
― A Boca na Cinza
do meu corpo atarracado,
sou unicamente olhos que vêem, ouvidos que ouvem, boca que come, dedos que tocam, nariz que cheira, nunca um corpo na sua integridade, quero dizer: um corpo todo, só pedaços dele,
o meu corpo perde-se na sua memória como o pecado na absolvição,)”
― A Boca na Cinza
“falo contra as palavras que se esvaem, paro no meio de uma frase e olho em volta, como se quisesse encontrar a palavra que me falta, como se as palavras fossem objectos”
― A Boca na Cinza
― A Boca na Cinza
“Houve sempre uma rede finíssima entre ele e o mundo.”
― Suíte e Fúria
― Suíte e Fúria
“De falta de nome em falta de nome, até à falta. Nítida como uma soletração. Hoje, é somente um corpo de ninguém, de ninguém, que ninguém. O desenho da janela no soalho tornou-se uma nesga: está próximo o nascer do sol. Ele volta-se para a parede: não passa de um velho a remoer palavras, umas a seguir às outras: até para não continuar é preciso ter forças. O ar frio entra na cama e bate-lhe nas costas, nas nádegas, nas pernas, não sabe onde pôr as mãos, se entre os joelhos, se pousadas no lençol, se debaixo da cabeça, uma contra a outra. Abre os olhos. E descobre que os tivera fechados: abertos ou fechados tanto faz: nada mudou, nada, entre um fechar e um abrir de olhos.”
― O Anjo Camponês
― O Anjo Camponês
“Não há solidão maior do que saber dar nome às coisas.”
― Dizer o Mundo: Conversas com Rui Nunes e Paulo Nozolino
― Dizer o Mundo: Conversas com Rui Nunes e Paulo Nozolino
“a dor é abrir os olhos para as paredes vazias do quarto, é a respiração crepitante, é o peito em quilha a subir e a descer, quando estou deitada, num movimento que é a minha vida,”
― A Boca na Cinza
― A Boca na Cinza




