Nuno S. Tavares's Blog: Livros Nuno S. Tavares
September 15, 2025
QUARTZO TITÂNIO - Cap. 1
I
Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!
Este fora o lema que governara desde sempre o seu dia a dia.
A claridade intensificava-se num amanhecer cinzento, onde as nuvens tristes davam um ar pesado à imensidão do Lago Ontário que se avistava lá do alto do apartamento localizado quase no topo de uma das muitas torres de condomínios luxuosos de Toronto.
Encostado à parede adjacente à grande janela do quarto, ele observava o horizonte ao mesmo tempo que via a sua imagem reflectida no vidro. A sua visão desfocou o fundo para se centrar no reflexo, no rosto a ganhar rugas, o cabelo grisalho onde a tonalidade escura parecia perder cada vez mais terreno para a clara. Por mais que os músculos lhe dissessem o contrário, ele era um homem de meia-idade.
Baixou o olhar para o peito nu. Também ali os pelos brancos cresciam como ervas em vasos de flores. Sinais de velhice que procurou rebater, arrancando as linhas albas... Não valia a pena, por cada um que vencesse, outros dois cresceriam. Estava a ficar barrigudo, apesar de ter uma vida pouco sedentária. Mais um sinal da idade? Talvez.
Tornou a olhar para o exterior, a atenção arrebatada para uma pequena aeronave em linha de aterragem com a pista do Billy Bishop, um pequeno aeroporto situado na Centre Island, uma das ilhas frontais à cidade. O ruído dos motores mal se ouviu, tal era a capacidade isolante dos vidros do apartamento.
Perdeu-se em pensamentos, cego no manto de nuvens. Iria chover? Que lhe interessava isso? Uma embarcação afastava-se do porto, talvez para navegar nos canais entre as ilhas. Deixou de registar a vida lá fora. Pensou em si, no facto de estar a chegar aos cinquenta anos. A angústia dos últimos tempos regressou. Seria a tão falada crise da meia‑idade?
Não se sentia velho. Nem mesmo quando se via ao espelho. Sentia‑se... Como se sentia ele? Não sabia explicar. Era uma angústia profunda que lhe vinha sabe-se lá donde, algures dum lugar profundo na sua alma.
— Bom dia! — disse uma voz ensonada.
A sonoridade rouca feminina puxou-o para a realidade do interior. Na cama, uma cabeça meio encoberta pela cabeleira escura emergia entre os lençóis.
— Bom dia! — retribuiu ele num tom neutro.
O rosto estremunhado cravou os olhos nele. Ensonados, procuraram habituar-se à luz exterior.
— Estás bem?
Ele anuiu sem dizer uma palavra. Percebeu que não lhe apetecia falar. Voltou a encarar o exterior, o ambiente tão deprimente quanto a sua alma.
— É bem capaz de chover. — disse a voz feminina.
Era aquele tipo de frase que se dizia só para não se ficar calado.
Sentindo o movimento dela na cama, ele rodou novamente a cabeça e observou-a, vendo uma mulher escultural a sair dos lençóis completamente nua.
Sem preocupação em disfarçar a noite mal dormida, por culpa dele, ela desfilou todas as curvas do seu corpo perante o seu olhar, formas que pareciam ter sido criadas por um Leonardo Da Vinci. Não deveria ter mais de trinta anos e a expressão era intensa, como quem está sempre pronta a saciar o parceiro. Parou junto dele e deu-lhe um beijo nos lábios.
— Posso usar o duche?
— Estás à-vontade.
Ela sorriu, mordiscando o lábio.
— Queres fazer-me companhia?
— Obrigado. — recusou cortês.
A mulher assentiu sem demonstrar decepção ou satisfação. Virou costas e deslizou pelo soalho silencioso como se fosse uma pluma, desaparecendo na porta da casa de banho privada.
Ele retornou à observação da paisagem e a mente a divagar nas recordações, como um satélite velho que sai de órbita e perde a utilidade.
O som da água a correr foi a única coisa que se ouviu por ali. Ele nem se apercebeu disso até ao momento em que a mulher, que fora completamente sua nessa noite, desligou o chuveiro.
Viu as horas no smartwatch preso no pulso esquerdo. O seu cérebro reviu a agenda para esse dia. Teria uma manhã e uma tarde preenchidas, nada a que não estivesse habituado. Pegou no smartphone e abriu o email para ver se havia novidades. Algumas mensagens novas, nada de especial, e muita porcaria publicitária não solicitada. Posou o aparelho sobre a cómoda de linhas modernas no exacto momento em que ela saiu da casa de banho.
Não era assídua da casa ou da cama dele, mas dava a entender que não fora a primeira vez que ali estivera. Surgiu tal como chegara na noite anterior ao apartamento, saia curta e casaco formal que ele sabia só esconder o sutiã. Penteara o cabelo preso num rabo-de-cavalo para disfarçar que não o lavara no duche. O rosto não estava maquilhado, o que não lhe tirava um grama de beleza. Sob o olhar atento dele, sentou-se na cama, cruzando as pernas de forma cativante e calçou os sapatos de salto alto. Por fim, levantou-se, encarando-o numa mistura de humor e sedução.
— Calculo que não me tenhas feito o pequeno-almoço.
— Nem para mim costumo fazer.
— Então, está na hora de ir andando.
Ele não a demoveu, assim como ela não arredou pé. Faltava o último acto. Ele pegou na carteira e retirou algumas notas de cem dólares. Ela recebeu-as com agrado. Afinal, tudo não passava de uma transacção comercial, uma profissional do sexo que recebia o pagamento pelo empenho da noite intensa que proporcionara ao seu cliente.
— Queres que volte, logo? — sugeriu, guardando as notas na pequena malinha que usava pendurada no ombro.
— Quando quiser repetir, eu ligo-te. — contrapôs ele sem qualquer emoção.
Ela deu-lhe um último beijo e foi embora.
Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!
Logo que ouviu a porta do apartamento a fechar, ele caminhou para a casa de banho privativa do quarto, sentindo ainda o cheiro do perfume dela ali. Havia uma névoa ténue no ar e o ambiente era meio abafado, resultante do duche exageradamente quente que ela tomara. Quase de forma automática, enfiou-se na cabine e abriu o chuveiro, deixando a água quente tombar-lhe sobre o corpo.
Comprar amor, como ele lhe chamava, era o mais fácil. Claro que não comprava amor, estava a comprar sexo. Não havia qualquer amor envolvido naquela situação, a menos que se considerasse o amor delas às notas que recebiam. Não era qualquer uma que passava a noite com ele, não era qualquer prostituta que obtinha aquele grau de confiança. Houve alturas em não se preocupava com isso e contratava uma qualquer que lhe despertasse desejo. Um quarto de hotel, duas ou três horas, e estava resolvido. Porém, a idade cansou-o disso. Preferia fornecedoras habituais ao invés de pagar à primeira puta que lhe aparecesse. Por isso, agora, tinha uma lista com uma dezena de nomes, mulheres com idades entre os vinte e oito e os trinta e três anos a quem ele ligava quando queria sexo e companhia.
A água massajava-lhe o corpo, percorrendo-lhe a pele como as mãos e os lábios de uma concubina eficiente. Pagar por sexo era o mais cómodo, evitava cobranças, evitava discussões. Ele estava a pagar, a pagar bem, e havia um acordo tácito de que a palavra "não" era proibida. Faziam tudo o que ele queria, quando ele queria. E mais importante de tudo, nunca o rejeitariam.
A rejeição era o pior numa relação, numa paixão. O embate violento quando a pessoa que nos provoca um formigueiro no estômago, nos faz perder o apetite e o sono, nos acorda para a realidade de que não quer o mesmo que nós...
Aconteceu-lhe uma vez na vida. Há... Quantos anos foram? Foi antes de vir para o Canadá, por isso, já lá iam quinze ou dezasseis anos. Sim, estivera apaixonado, perdidamente apaixonado. E nem sequer fora rejeitado, pelo menos, não até certa altura. Amara aquela mulher com toda a essência do seu ser. Para quê? Para um dia ver o tapete ser-lhe puxado debaixo dos pés e ele cair com estrondo no chão da rejeição. Não precisava disso, não precisava de relacionamentos, não queria envolvimentos sentimentais com ninguém. Nada como pagar para ter uma mulher...
Então, porque sentia ele aquela angústia? Aquela solidão...
Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!
Foda-se! Então, onde se compra o medicamento para o que estava a sentir? Na verdade, nem ele sabia interpretar o que o perturbava.
Olhou-se ao espelho. Barbeara-se após o duche, penteara o cabelo grisalho e passara creme no rosto. Bolas, quando um homem se preocupa em passar cremes antienvelhecimento no rosto, algo está a padecer em nós. Vestiu uma das suas camisas caríssimas e o um dos seus muitos fatos Ermenegildo Zegna. Não gostava de usar gravata, mas ia ter algumas reuniões importantes. Calçou um dos pares menos caros da Louis Vuitton que tinha e sentiu-se pronto.
O quarto dava para um átrio quadrado com mais três portas, iluminado pela claridade proveniente da enorme sala do apartamento, cuja parede oriental era completamente de vidro e com acesso a uma varanda larga com vista para o Lago Ontário. As três portas correspondiam a mais dois quartos inabitados e uma casa de banho geral para uso das visitas inexistentes da casa.
Ele saiu com o casaco do fato na mão, tendo o cuidado de não causar qualquer vinco. Avançou para a sala com a atenção no ecrã do smartphone, lendo algumas das notícias do dia.
A sala era composta por um gigantesco sofá em U, o qual fora colocado frontalmente com um ecrã de proporções bíblicas, fino como uma placa de gesso cartonado e equilibrado num tripé sobre um móvel de um metro de altura. Para lá deste, uma mesa rectangular em vidro para refeições que nunca aconteciam, acompanhada por meia dúzia de cadeiras confortáveis raramente utilizadas. O espaço prosseguia, sempre acompanhado pelos vidros que transformavam a parede numa espécie de tela fotográfica da maravilhosa vista do lago. Após a mesa, um balcão, uma espécie de ilha com um tampo em mármore claro, delimitava a divisão entre sala e cozinha. Junto a este, três bancos denunciavam ser ali que as escassas refeições eram ingeridas.
A cozinha era digna de um filme, tinha quase um aspecto futurista. Não faltava lá nada de aparelhos e equipamentos, mas para ele bastaria ter as portas dos armários. O uso que dava àquele espaço era um sacrilégio para qualquer chef. Os seus olhos procuraram a máquina de café, seria a única coisa a que se daria ao trabalho. O médico já o alertara várias vezes para uma alimentação mais saudável, inclusive que parasse de sair de casa sem tomar o pequeno-almoço. Ele não mudara nada.
Vivia sozinho, algo a que se habituara de tal forma que já nem considerava a possibilidade de ter outro ser humano a partilhar o seu espaço. Contornou o balcão e dirigiu-se à máquina do café. Porém, o som do telemóvel travou-o. Reconheceu o número. Era o seu advogado.
— Bom dia, Matt! — cumprimentou sem entoação.
O advogado era o seu homem de confiança para todos os assuntos legais, pago a peso de ouro, semanalmente, muitas vezes para nem precisar dele.
— Bom dia, Gabriel! — disse a voz austera do outro lado. — Já tenho o contrato que me pediste para analisar. Para quando precisas de um parecer? Até ao final da semana...
— Esta tarde, Matt. Preciso de um parecer até ao fim da tarde.
— Ok.
Desligou. Desistiu de fazer o café. Não queria perder mais tempo.
Gabriel era o seu nome, o nome daquele homem de meia‑idade que vivia sozinho num luxuoso apartamento em Toronto com vista para o lago. Viera para o Canadá em trabalho, quinze anos antes, com uma proposta milionária para agenciar jogadores profissionais. Naquela altura, o seu rendimento já era fantástico, mas incomparável com a fortuna que fizera nos anos que se seguiram e que continuava a fazer. Ele era, apenas e só, representante de jogadores da MLB, a liga profissional de basebol, da NHL, a liga profissional de hóquei no gelo, da NBA, a liga profissional de basquetebol e ainda tinha alguns contactos privilegiados na NFL, a liga profissional de futebol americano. Por isso...
Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!
O trânsito citadino estava normal, nem mais nem menos que noutros dias. Gabriel conduzia um Ferrari F8 Tributo, automóvel que envergava o tradicional encarnado da marca italiana e chamativo como uma loura de minissaia num bar. Pouco antes de parar num semáforo, o telemóvel tornou a chamar. O sistema de áudio calou a playlist com as suas músicas favoritas e fez ecoar o toque estridente. Ele carregou no botão do volante que atendia as chamadas.
— Que me dizes a um jogo dos Blue Jays, logo à noite? — convidou a voz que saiu dos altifalantes, sem que antes houvesse um cumprimento.
Teve vontade de dizer que os Blue Jays eram a equipa mais imprestável de Toronto, mas não convinha dizê-lo a um importante director dessa mesma equipa. Os Toronto Blue Jays eram a equipa profissional de basebol da cidade.
— Não sei. Qual é o motivo?
— É preciso um motivo para ver os nossos campeões?
Alguém lhe explicasse que para ser campeão era preciso fazer aquilo... como se diz... ah... Ganhar? Pois, ganhar.
— Eu conheço-te. Esse convite tem água no bico.
— Ok, ok. Temos interesse em... Prefiro não falar por telefone. Queria conversar contigo sobre isso.
— Tudo bem. Ligo-te mais tarde, a confirmar.
Quando desligou, Gabriel já circulava na Bay Street rumo a norte. Com a celeridade que o trânsito lhe permitiu, virou à direita na Adelaide Street e alguns metros mais à frente, virou à esquerda, embrenhando-se no parque automóvel subterrâneo do Bay-Adelaide Centre onde se localizava o seu escritório.
Apesar de o Bay-Adelaide Centre ser um edifício de escritórios de grandes empresas, algumas a ocupar pisos inteiros e mais que um andar, Gabriel ocupava apenas um pequeno sector para o seu negócio, num dos pisos intermédios, partilhado com mais algumas pequenas empresas, um espaço com um gabinete privado, sala de reuniões e recepção. Contudo, fizera os possíveis para que a sua localização fosse a esquina do edifício, o que levava a que o seu gabinete tivesse duas paredes em vidro com vista para a cidade.
A recepção era composta por um balcão em madeira com metro e meio de altura, onde um jovem recebia quem entrasse, atendia o telefone, recepcionava o correio e apontava recados. Quando Gabriel procurara a pessoa para ocupar aquele lugar, quis acima de tudo que fosse eficiente, organizada e trabalhadora. Mas, preferencialmente, um homem. Para si, havia coisas que não se misturavam, tal como o trabalho e o prazer, e a eventualidade de ser secretariado por uma funcionária esbelta poderia colocar isso em causa. Para além disso, simpatizara com o rapaz na entrevista, já que demonstrara ter um vasto conhecimento de desporto.
— Bom dia, Francis! — cumprimentou ao entrar.
Francis era natural do Quebec. Escusado será dizer que o seu desporto favorito era o hóquei no gelo. E não escondia o ser fervor em tornar a ver os Nordiques a disputar jogos na NHL. Deveria ter uns trinta anos, envergava roupas formais que nada pareciam ter a ver com ele e o cabelo estava sempre muito bem penteado. O rosto era simpático sem perder a expressão profissional.
O gabinete de Gabriel era amplo e espaçoso. A sua secretária situava-se na única parede que não tinha janelas nem porta, apenas um armário com gavetas, um pequeno bar, onde Gabriel guardava algumas garrafas de whisky, e uma estante com inúmeras fotos dele com muitos jogadores mundialmente conhecidos, algumas das maiores estrelas do desporto norte-americano. Qualquer um deles saberia bem quem era Gabriel e uma boa fatia percentual daqueles desportistas deviam-lhe os melhores contratos da sua carreira. A secretária era composta por um tampo robusto de madeira escura, sempre muito bem arrumada, quase sem pastas ou papeis soltos e apenas com o laptop solitário. Entre a estante e a mesa, um cadeirão confortável. Ele escolhera aquele posicionamento para poder ficar virado de frente para os vidros enormes que lhe permitiam ver o exterior de edifícios empresariais. No que sobrava de parede onde se localizava a porta do gabinete, somente um sofá longo e uma mesa rasa de apoio.
O estado de espírito sombrio permanecia em si. Numa passada lenta, caminhou pelo espaço até aos vidros, ficando a olhar para a rua, vendo pessoas e carros a movimentarem-se lá em baixo, sempre em stress. O silêncio à sua volta parecia irreal naquele cenário protegido pelas janelas insonorizadas que bloqueavam o ruído daquela que era, para si, uma espécie de mini New York. A recordação da cidade, quando ali chegara uma década e meia antes, veio-lhe à mente. Já era uma cidade com o rebuliço dos grandes centros urbanos mundiais, mas tinha agora muitos mais edifícios a arranhar o céu e a vida empresarial crescera exponencialmente, desde esse dia. O Canadá era outro mundo, mais evoluído, mais civilizado. Tivera alguns contratempos a instalar-se, mas gostara do país, da cidade e das pessoas logo ao primeiro momento.
Os últimos tempos em Portugal haviam sido terríveis. Profissionalmente as coisas corriam bem, já era um agente desportivo com alguma influência e já fazia bom dinheiro com isso. Quando era novo, jogara hóquei em patins. Nunca fora muito bom nos estudos, excepto em Matemática e Inglês, disciplinas que pareciam talhadas para si. Apesar de ter algum jeito para usar o stick, cedo teve noção que o hóquei nunca poderia ser um modo de vida, o seu ganha-pão. Por isso, abandonou a modalidade quando deixou de estudar e começou a trabalhar como vendedor de carros num stand de automóveis. Tinha jeito para os números, sabia fazer negócios e adorava ganhar dinheiro. Passou para o ramo imobiliário e a ganhar ainda mais. Contudo, foi quando surgiu a oportunidade de trabalhar no mundo do desporto a representar jogadores que descobriu a sua verdadeira vocação.
Começara com o agenciamento de jogadores de equipas secundárias e em modalidades com menor expressão que o futebol. Nunca desistiu. E conforme os seus representados iam evoluindo na carreira, também o seu nome se projectava no meio. A sua carteira de agenciados engrandeceu e cada vez com mais jogadores de futebol. Antes dos trinta anos, Gabriel já falava regularmente com os presidentes dos principais clubes portugueses e alguns dos maiores da Europa.
O futebol sempre fora o seu desporto de eleição. Em miúdo chegara a sonhar ser jogador da bola, mas rapidamente percebeu que os seus pés eram como duas tábuas quando encontravam uma bola. Daí ter ido parar ao hóquei. Sendo o futebol o seu favorito e também a modalidade onde mais se movimentava, foi surreal encarar a proposta que lhe apresentaram para trabalhar no Canadá como agente de jogadores profissionais. Em Portugal era um nome de primeira linha. No Canadá, seria apenas mais um a trabalhar para uma grande empresa com outros seus iguais. Na altura, sentiu-se a regredir na carreira e esteve prestes a recusar, apesar da perspectiva de rendimento superar em muito aquilo que já conseguia amealhar. Contudo, outros factores o levaram a tomar a decisão que tomara, quinze anos antes.
O telemóvel tocou, despertando-o das recordações.
— Estão a tentar lixar-me, Gabriel.
— Calma, Tiivu. — pediu, reconhecendo a voz. — Que aconteceu?
Tiivu era um jogador finlandês de hóquei no gelo que fora contratado pelos Toronto Maple Leafs a uma equipa sueca. Os Maple Leafs eram a principal equipa de hóquei da cidade, uma das mais históricas da NHL e a segunda com mais títulos de uma competição com mais de cem anos e a mais emblemática de todo o Mundo daquela modalidade. Gabriel era o empresário de Tiivu e fora ele quem tratara da sua transferência para a América do Norte. Segundo o hoquista, sem esconder a irritação na voz, o clube e o treinador estavam a ponderar enquadrá-lo nos Toronto Marlies. Isso significava que, em vez de jogar na melhor liga mundial, iria jogar na equipa de reservas que competia naquilo a que os americanos chamavam uma minor league, a AHL, ou seja, uma espécie de competição de jogadores jovens a tentar provar que tinham lugar na NHL. Claro que Tiivu achava que nada tinha a provar.
Gabriel sabia que não fora aquilo que ficara acordado. Tiivu não se iria mudar para o outro lado do oceano para jogar nas reservas.
— Eu falo com o General Manager, Tiivu. — descansou-o.
O finlandês agradeceu, mais calmo, ciente que Gabriel resolveria a questão.
Desligou a chamada e guardou o aparelho no bolso. Irritava-o que os clubes não cumprissem os acordos verbais. Sim, aquilo não ficara escrito no contrato, fora conversado e os directores dos Maple Leafs concordaram que aquele investimento não seria para desperdiçar na AHL. Só que depois o treinador mudou...
Teria de tratar do assunto, telefonando ao General Manager e combinar uma reunião com ele. Aquilo não poderia ser resolvido a falar ao telefone. Gabriel adorava os Maple Leafs, era adepto da equipa desde que chegara ao Canadá. Mas, isso não o obrigava a aceitar o desrespeito para com os seus representados.
Tornou a olhar para a rua. Não estava com paciência para problemas ou resoluções. Comprometera-se e cabia-lhe a ele reivindicar a concretização das expectativas de Tiivu, só que o seu estado de espírito sugava-lhe qualquer vislumbre de paciência para a solução. Se quisesse, poderia comprar vários Ferrari iguais ao seu, mas não encontrava lugar nenhum onde conseguisse comprar... paciência.
Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!
O vento soprava fresco pelas ruas da cidade.
Normalmente, faria aquele pequeno percurso de carro, mas estava a precisar de andar e o seu destino não era suficientemente longe para o demover de enfrentar a cacofonia populacional de Toronto. Saiu do edifício directamente para a Bay Street, orgulhoso com a constatação de como era uma pessoa importante ao ponto de conseguir que o GM dos Maple Leafs concordasse em recebê-lo ainda nessa manhã.
O Sol parecia despontar no céu cinzento, sendo que dificilmente conseguiria furar por entre os prédios. Só mesmo se incidisse numa linha paralela às longas ruas de Toronto é que o seu brilho chegaria aos passeios. Era por isso que as pessoas aproveitavam as praças e pracetas para permanecer alguns minutos.
O fluxo humano não era tão intenso como noutros horários. Mesmo assim, muita gente circulava por ali, desde turistas dos quatro cantos do Mundo até aos simples estafetas que transportavam documentos e encomendas entre empresas. A maior parte dos seres humanos traziam auriculares nos ouvidos, parecendo à primeira vista estarem a falar sozinhos. Na rua, Gabriel fazia o mesmo, caminhando com os seus Galaxy Buds inseridos nos ouvidos para atender as constantes chamadas de trabalho.
Estava com tempo. Numa passada calma, chegaria ao ScotiaBank Arena, onde seria recebido pelo GM, em dez a quinze minutos. O tipo recebia-o com brevidade, mas não de imediato, daí que tivesse estipulado trinta minutos entre o telefonema e a reunião. Gabriel fez um desvio na Kigs Street para passar pelo Starbucks na esquina daquela rua com a Yonge Street.
A loja estava praticamente vazia. Na sua frente, somente um casal de turistas e uma jovem com ar de universitária. Atrás do balcão trabalhava um jovem com trejeitos divertidos, extremamente afável. Gabriel comprou um Cappuccino dos grandes, pagando e sendo generoso na gorjeta.
Ao voltar ao exterior, a sua atenção foi captada para a porta do One King Hotel, no lado oposto da rua. Reconheceu a mulher sedutora de cabelos ruivos que saía do edifício, era uma das dez da sua lista. Ela vinha distraída, concentrada no telemóvel, mas algo a fez olhar para ele. Gabriel sorriu e acenou-lhe, não tinha qualquer complexo em reconhecer e ser reconhecido na rua por uma das suas profissionais do sexo. Ela retribuiu o sorriso e o aceno, tomando a direcção oposta à dele.
A depressão voltou a pressioná-lo. Podias comprar-lhe o corpo, o sorriso, os beijos, a companhia, o que ele quisesse... Fora isso, não estando a pagar, era um aceno cordial numa relação de fornecedor para cliente.
Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!
Nem tudo se compra, talvez...
Evitou com esforço que a aura negra se abatesse mais sobre ele. Bebeu o líquido quente e apressou-se de volta à Bay Street, onde retomou a direcção sul. Prosseguiu numa passada constante, abstraído da sonoridade envolvente, uma vez que ligara a playlist do Spotify no telemóvel para o descontrair. Alcançou a Front Street, uma rua larga que se cruzava na sua frente. Aguardou que a sinalização dos peões lhe permitisse atravessar, cerca de dois minutos, e passou para o outro lado, encarando a enorme Union Station.
As muitas linhas ferroviárias entravam na estação, a oriente, por um viaduto que cobria a Bay Street na sua linha de alcatrão rumo ao lago, a qual só terminaria na Queens Quay, junto ao Harbour Square Park. Gabriel encontrou um aglomerado humano mais intenso, devido às obras, quando continuou por esse viaduto.
Toronto tinha aquela curiosidade, as passagens não eram simples passeios junto à estrada, eram semelhantes a corredores de edifícios, separados dos carros por vidros, o que protegia os transeuntes da poluição do ar e do som. Era mais um pormenor revelador de uma cidade com mentalidade muito evoluída.
Tornando a sair para o exterior movimentado de automóveis, Gabriel virou imediatamente à direita e ficou defronte da ScotiaBank Arena.
Naquele enorme pavilhão disputavam-se jogos de hóquei no gelo e basquetebol. A equipa de basquetebol eram os Raptors, a única canadiana a disputar a NBA, depois de Vancouver ter perdido a sua para Memphis. Gabriel também agenciava alguns dos jogadores dos Raptors e tinha muitas esperanças que, em breve, os Toronto Raptors se tornassem na primeira equipa canadiana a vencer a NBA.
Curiosamente, e sem ter essa intenção, parou exactamente sobre o emblema dos Raptors pintado no passeio daquela fachada. Confirmou as horas e avançou pelas portas giratórias.
Brevemente publicarei mais. Entretanto, podem ler tudo em https://www.nunostavares.pt/index.php...
Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!
Este fora o lema que governara desde sempre o seu dia a dia.
A claridade intensificava-se num amanhecer cinzento, onde as nuvens tristes davam um ar pesado à imensidão do Lago Ontário que se avistava lá do alto do apartamento localizado quase no topo de uma das muitas torres de condomínios luxuosos de Toronto.
Encostado à parede adjacente à grande janela do quarto, ele observava o horizonte ao mesmo tempo que via a sua imagem reflectida no vidro. A sua visão desfocou o fundo para se centrar no reflexo, no rosto a ganhar rugas, o cabelo grisalho onde a tonalidade escura parecia perder cada vez mais terreno para a clara. Por mais que os músculos lhe dissessem o contrário, ele era um homem de meia-idade.
Baixou o olhar para o peito nu. Também ali os pelos brancos cresciam como ervas em vasos de flores. Sinais de velhice que procurou rebater, arrancando as linhas albas... Não valia a pena, por cada um que vencesse, outros dois cresceriam. Estava a ficar barrigudo, apesar de ter uma vida pouco sedentária. Mais um sinal da idade? Talvez.
Tornou a olhar para o exterior, a atenção arrebatada para uma pequena aeronave em linha de aterragem com a pista do Billy Bishop, um pequeno aeroporto situado na Centre Island, uma das ilhas frontais à cidade. O ruído dos motores mal se ouviu, tal era a capacidade isolante dos vidros do apartamento.
Perdeu-se em pensamentos, cego no manto de nuvens. Iria chover? Que lhe interessava isso? Uma embarcação afastava-se do porto, talvez para navegar nos canais entre as ilhas. Deixou de registar a vida lá fora. Pensou em si, no facto de estar a chegar aos cinquenta anos. A angústia dos últimos tempos regressou. Seria a tão falada crise da meia‑idade?
Não se sentia velho. Nem mesmo quando se via ao espelho. Sentia‑se... Como se sentia ele? Não sabia explicar. Era uma angústia profunda que lhe vinha sabe-se lá donde, algures dum lugar profundo na sua alma.
— Bom dia! — disse uma voz ensonada.
A sonoridade rouca feminina puxou-o para a realidade do interior. Na cama, uma cabeça meio encoberta pela cabeleira escura emergia entre os lençóis.
— Bom dia! — retribuiu ele num tom neutro.
O rosto estremunhado cravou os olhos nele. Ensonados, procuraram habituar-se à luz exterior.
— Estás bem?
Ele anuiu sem dizer uma palavra. Percebeu que não lhe apetecia falar. Voltou a encarar o exterior, o ambiente tão deprimente quanto a sua alma.
— É bem capaz de chover. — disse a voz feminina.
Era aquele tipo de frase que se dizia só para não se ficar calado.
Sentindo o movimento dela na cama, ele rodou novamente a cabeça e observou-a, vendo uma mulher escultural a sair dos lençóis completamente nua.
Sem preocupação em disfarçar a noite mal dormida, por culpa dele, ela desfilou todas as curvas do seu corpo perante o seu olhar, formas que pareciam ter sido criadas por um Leonardo Da Vinci. Não deveria ter mais de trinta anos e a expressão era intensa, como quem está sempre pronta a saciar o parceiro. Parou junto dele e deu-lhe um beijo nos lábios.
— Posso usar o duche?
— Estás à-vontade.
Ela sorriu, mordiscando o lábio.
— Queres fazer-me companhia?
— Obrigado. — recusou cortês.
A mulher assentiu sem demonstrar decepção ou satisfação. Virou costas e deslizou pelo soalho silencioso como se fosse uma pluma, desaparecendo na porta da casa de banho privada.
Ele retornou à observação da paisagem e a mente a divagar nas recordações, como um satélite velho que sai de órbita e perde a utilidade.
O som da água a correr foi a única coisa que se ouviu por ali. Ele nem se apercebeu disso até ao momento em que a mulher, que fora completamente sua nessa noite, desligou o chuveiro.
Viu as horas no smartwatch preso no pulso esquerdo. O seu cérebro reviu a agenda para esse dia. Teria uma manhã e uma tarde preenchidas, nada a que não estivesse habituado. Pegou no smartphone e abriu o email para ver se havia novidades. Algumas mensagens novas, nada de especial, e muita porcaria publicitária não solicitada. Posou o aparelho sobre a cómoda de linhas modernas no exacto momento em que ela saiu da casa de banho.
Não era assídua da casa ou da cama dele, mas dava a entender que não fora a primeira vez que ali estivera. Surgiu tal como chegara na noite anterior ao apartamento, saia curta e casaco formal que ele sabia só esconder o sutiã. Penteara o cabelo preso num rabo-de-cavalo para disfarçar que não o lavara no duche. O rosto não estava maquilhado, o que não lhe tirava um grama de beleza. Sob o olhar atento dele, sentou-se na cama, cruzando as pernas de forma cativante e calçou os sapatos de salto alto. Por fim, levantou-se, encarando-o numa mistura de humor e sedução.
— Calculo que não me tenhas feito o pequeno-almoço.
— Nem para mim costumo fazer.
— Então, está na hora de ir andando.
Ele não a demoveu, assim como ela não arredou pé. Faltava o último acto. Ele pegou na carteira e retirou algumas notas de cem dólares. Ela recebeu-as com agrado. Afinal, tudo não passava de uma transacção comercial, uma profissional do sexo que recebia o pagamento pelo empenho da noite intensa que proporcionara ao seu cliente.
— Queres que volte, logo? — sugeriu, guardando as notas na pequena malinha que usava pendurada no ombro.
— Quando quiser repetir, eu ligo-te. — contrapôs ele sem qualquer emoção.
Ela deu-lhe um último beijo e foi embora.
Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!
Logo que ouviu a porta do apartamento a fechar, ele caminhou para a casa de banho privativa do quarto, sentindo ainda o cheiro do perfume dela ali. Havia uma névoa ténue no ar e o ambiente era meio abafado, resultante do duche exageradamente quente que ela tomara. Quase de forma automática, enfiou-se na cabine e abriu o chuveiro, deixando a água quente tombar-lhe sobre o corpo.
Comprar amor, como ele lhe chamava, era o mais fácil. Claro que não comprava amor, estava a comprar sexo. Não havia qualquer amor envolvido naquela situação, a menos que se considerasse o amor delas às notas que recebiam. Não era qualquer uma que passava a noite com ele, não era qualquer prostituta que obtinha aquele grau de confiança. Houve alturas em não se preocupava com isso e contratava uma qualquer que lhe despertasse desejo. Um quarto de hotel, duas ou três horas, e estava resolvido. Porém, a idade cansou-o disso. Preferia fornecedoras habituais ao invés de pagar à primeira puta que lhe aparecesse. Por isso, agora, tinha uma lista com uma dezena de nomes, mulheres com idades entre os vinte e oito e os trinta e três anos a quem ele ligava quando queria sexo e companhia.
A água massajava-lhe o corpo, percorrendo-lhe a pele como as mãos e os lábios de uma concubina eficiente. Pagar por sexo era o mais cómodo, evitava cobranças, evitava discussões. Ele estava a pagar, a pagar bem, e havia um acordo tácito de que a palavra "não" era proibida. Faziam tudo o que ele queria, quando ele queria. E mais importante de tudo, nunca o rejeitariam.
A rejeição era o pior numa relação, numa paixão. O embate violento quando a pessoa que nos provoca um formigueiro no estômago, nos faz perder o apetite e o sono, nos acorda para a realidade de que não quer o mesmo que nós...
Aconteceu-lhe uma vez na vida. Há... Quantos anos foram? Foi antes de vir para o Canadá, por isso, já lá iam quinze ou dezasseis anos. Sim, estivera apaixonado, perdidamente apaixonado. E nem sequer fora rejeitado, pelo menos, não até certa altura. Amara aquela mulher com toda a essência do seu ser. Para quê? Para um dia ver o tapete ser-lhe puxado debaixo dos pés e ele cair com estrondo no chão da rejeição. Não precisava disso, não precisava de relacionamentos, não queria envolvimentos sentimentais com ninguém. Nada como pagar para ter uma mulher...
Então, porque sentia ele aquela angústia? Aquela solidão...
Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!
Foda-se! Então, onde se compra o medicamento para o que estava a sentir? Na verdade, nem ele sabia interpretar o que o perturbava.
Olhou-se ao espelho. Barbeara-se após o duche, penteara o cabelo grisalho e passara creme no rosto. Bolas, quando um homem se preocupa em passar cremes antienvelhecimento no rosto, algo está a padecer em nós. Vestiu uma das suas camisas caríssimas e o um dos seus muitos fatos Ermenegildo Zegna. Não gostava de usar gravata, mas ia ter algumas reuniões importantes. Calçou um dos pares menos caros da Louis Vuitton que tinha e sentiu-se pronto.
O quarto dava para um átrio quadrado com mais três portas, iluminado pela claridade proveniente da enorme sala do apartamento, cuja parede oriental era completamente de vidro e com acesso a uma varanda larga com vista para o Lago Ontário. As três portas correspondiam a mais dois quartos inabitados e uma casa de banho geral para uso das visitas inexistentes da casa.
Ele saiu com o casaco do fato na mão, tendo o cuidado de não causar qualquer vinco. Avançou para a sala com a atenção no ecrã do smartphone, lendo algumas das notícias do dia.
A sala era composta por um gigantesco sofá em U, o qual fora colocado frontalmente com um ecrã de proporções bíblicas, fino como uma placa de gesso cartonado e equilibrado num tripé sobre um móvel de um metro de altura. Para lá deste, uma mesa rectangular em vidro para refeições que nunca aconteciam, acompanhada por meia dúzia de cadeiras confortáveis raramente utilizadas. O espaço prosseguia, sempre acompanhado pelos vidros que transformavam a parede numa espécie de tela fotográfica da maravilhosa vista do lago. Após a mesa, um balcão, uma espécie de ilha com um tampo em mármore claro, delimitava a divisão entre sala e cozinha. Junto a este, três bancos denunciavam ser ali que as escassas refeições eram ingeridas.
A cozinha era digna de um filme, tinha quase um aspecto futurista. Não faltava lá nada de aparelhos e equipamentos, mas para ele bastaria ter as portas dos armários. O uso que dava àquele espaço era um sacrilégio para qualquer chef. Os seus olhos procuraram a máquina de café, seria a única coisa a que se daria ao trabalho. O médico já o alertara várias vezes para uma alimentação mais saudável, inclusive que parasse de sair de casa sem tomar o pequeno-almoço. Ele não mudara nada.
Vivia sozinho, algo a que se habituara de tal forma que já nem considerava a possibilidade de ter outro ser humano a partilhar o seu espaço. Contornou o balcão e dirigiu-se à máquina do café. Porém, o som do telemóvel travou-o. Reconheceu o número. Era o seu advogado.
— Bom dia, Matt! — cumprimentou sem entoação.
O advogado era o seu homem de confiança para todos os assuntos legais, pago a peso de ouro, semanalmente, muitas vezes para nem precisar dele.
— Bom dia, Gabriel! — disse a voz austera do outro lado. — Já tenho o contrato que me pediste para analisar. Para quando precisas de um parecer? Até ao final da semana...
— Esta tarde, Matt. Preciso de um parecer até ao fim da tarde.
— Ok.
Desligou. Desistiu de fazer o café. Não queria perder mais tempo.
Gabriel era o seu nome, o nome daquele homem de meia‑idade que vivia sozinho num luxuoso apartamento em Toronto com vista para o lago. Viera para o Canadá em trabalho, quinze anos antes, com uma proposta milionária para agenciar jogadores profissionais. Naquela altura, o seu rendimento já era fantástico, mas incomparável com a fortuna que fizera nos anos que se seguiram e que continuava a fazer. Ele era, apenas e só, representante de jogadores da MLB, a liga profissional de basebol, da NHL, a liga profissional de hóquei no gelo, da NBA, a liga profissional de basquetebol e ainda tinha alguns contactos privilegiados na NFL, a liga profissional de futebol americano. Por isso...
Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!
O trânsito citadino estava normal, nem mais nem menos que noutros dias. Gabriel conduzia um Ferrari F8 Tributo, automóvel que envergava o tradicional encarnado da marca italiana e chamativo como uma loura de minissaia num bar. Pouco antes de parar num semáforo, o telemóvel tornou a chamar. O sistema de áudio calou a playlist com as suas músicas favoritas e fez ecoar o toque estridente. Ele carregou no botão do volante que atendia as chamadas.
— Que me dizes a um jogo dos Blue Jays, logo à noite? — convidou a voz que saiu dos altifalantes, sem que antes houvesse um cumprimento.
Teve vontade de dizer que os Blue Jays eram a equipa mais imprestável de Toronto, mas não convinha dizê-lo a um importante director dessa mesma equipa. Os Toronto Blue Jays eram a equipa profissional de basebol da cidade.
— Não sei. Qual é o motivo?
— É preciso um motivo para ver os nossos campeões?
Alguém lhe explicasse que para ser campeão era preciso fazer aquilo... como se diz... ah... Ganhar? Pois, ganhar.
— Eu conheço-te. Esse convite tem água no bico.
— Ok, ok. Temos interesse em... Prefiro não falar por telefone. Queria conversar contigo sobre isso.
— Tudo bem. Ligo-te mais tarde, a confirmar.
Quando desligou, Gabriel já circulava na Bay Street rumo a norte. Com a celeridade que o trânsito lhe permitiu, virou à direita na Adelaide Street e alguns metros mais à frente, virou à esquerda, embrenhando-se no parque automóvel subterrâneo do Bay-Adelaide Centre onde se localizava o seu escritório.
Apesar de o Bay-Adelaide Centre ser um edifício de escritórios de grandes empresas, algumas a ocupar pisos inteiros e mais que um andar, Gabriel ocupava apenas um pequeno sector para o seu negócio, num dos pisos intermédios, partilhado com mais algumas pequenas empresas, um espaço com um gabinete privado, sala de reuniões e recepção. Contudo, fizera os possíveis para que a sua localização fosse a esquina do edifício, o que levava a que o seu gabinete tivesse duas paredes em vidro com vista para a cidade.
A recepção era composta por um balcão em madeira com metro e meio de altura, onde um jovem recebia quem entrasse, atendia o telefone, recepcionava o correio e apontava recados. Quando Gabriel procurara a pessoa para ocupar aquele lugar, quis acima de tudo que fosse eficiente, organizada e trabalhadora. Mas, preferencialmente, um homem. Para si, havia coisas que não se misturavam, tal como o trabalho e o prazer, e a eventualidade de ser secretariado por uma funcionária esbelta poderia colocar isso em causa. Para além disso, simpatizara com o rapaz na entrevista, já que demonstrara ter um vasto conhecimento de desporto.
— Bom dia, Francis! — cumprimentou ao entrar.
Francis era natural do Quebec. Escusado será dizer que o seu desporto favorito era o hóquei no gelo. E não escondia o ser fervor em tornar a ver os Nordiques a disputar jogos na NHL. Deveria ter uns trinta anos, envergava roupas formais que nada pareciam ter a ver com ele e o cabelo estava sempre muito bem penteado. O rosto era simpático sem perder a expressão profissional.
O gabinete de Gabriel era amplo e espaçoso. A sua secretária situava-se na única parede que não tinha janelas nem porta, apenas um armário com gavetas, um pequeno bar, onde Gabriel guardava algumas garrafas de whisky, e uma estante com inúmeras fotos dele com muitos jogadores mundialmente conhecidos, algumas das maiores estrelas do desporto norte-americano. Qualquer um deles saberia bem quem era Gabriel e uma boa fatia percentual daqueles desportistas deviam-lhe os melhores contratos da sua carreira. A secretária era composta por um tampo robusto de madeira escura, sempre muito bem arrumada, quase sem pastas ou papeis soltos e apenas com o laptop solitário. Entre a estante e a mesa, um cadeirão confortável. Ele escolhera aquele posicionamento para poder ficar virado de frente para os vidros enormes que lhe permitiam ver o exterior de edifícios empresariais. No que sobrava de parede onde se localizava a porta do gabinete, somente um sofá longo e uma mesa rasa de apoio.
O estado de espírito sombrio permanecia em si. Numa passada lenta, caminhou pelo espaço até aos vidros, ficando a olhar para a rua, vendo pessoas e carros a movimentarem-se lá em baixo, sempre em stress. O silêncio à sua volta parecia irreal naquele cenário protegido pelas janelas insonorizadas que bloqueavam o ruído daquela que era, para si, uma espécie de mini New York. A recordação da cidade, quando ali chegara uma década e meia antes, veio-lhe à mente. Já era uma cidade com o rebuliço dos grandes centros urbanos mundiais, mas tinha agora muitos mais edifícios a arranhar o céu e a vida empresarial crescera exponencialmente, desde esse dia. O Canadá era outro mundo, mais evoluído, mais civilizado. Tivera alguns contratempos a instalar-se, mas gostara do país, da cidade e das pessoas logo ao primeiro momento.
Os últimos tempos em Portugal haviam sido terríveis. Profissionalmente as coisas corriam bem, já era um agente desportivo com alguma influência e já fazia bom dinheiro com isso. Quando era novo, jogara hóquei em patins. Nunca fora muito bom nos estudos, excepto em Matemática e Inglês, disciplinas que pareciam talhadas para si. Apesar de ter algum jeito para usar o stick, cedo teve noção que o hóquei nunca poderia ser um modo de vida, o seu ganha-pão. Por isso, abandonou a modalidade quando deixou de estudar e começou a trabalhar como vendedor de carros num stand de automóveis. Tinha jeito para os números, sabia fazer negócios e adorava ganhar dinheiro. Passou para o ramo imobiliário e a ganhar ainda mais. Contudo, foi quando surgiu a oportunidade de trabalhar no mundo do desporto a representar jogadores que descobriu a sua verdadeira vocação.
Começara com o agenciamento de jogadores de equipas secundárias e em modalidades com menor expressão que o futebol. Nunca desistiu. E conforme os seus representados iam evoluindo na carreira, também o seu nome se projectava no meio. A sua carteira de agenciados engrandeceu e cada vez com mais jogadores de futebol. Antes dos trinta anos, Gabriel já falava regularmente com os presidentes dos principais clubes portugueses e alguns dos maiores da Europa.
O futebol sempre fora o seu desporto de eleição. Em miúdo chegara a sonhar ser jogador da bola, mas rapidamente percebeu que os seus pés eram como duas tábuas quando encontravam uma bola. Daí ter ido parar ao hóquei. Sendo o futebol o seu favorito e também a modalidade onde mais se movimentava, foi surreal encarar a proposta que lhe apresentaram para trabalhar no Canadá como agente de jogadores profissionais. Em Portugal era um nome de primeira linha. No Canadá, seria apenas mais um a trabalhar para uma grande empresa com outros seus iguais. Na altura, sentiu-se a regredir na carreira e esteve prestes a recusar, apesar da perspectiva de rendimento superar em muito aquilo que já conseguia amealhar. Contudo, outros factores o levaram a tomar a decisão que tomara, quinze anos antes.
O telemóvel tocou, despertando-o das recordações.
— Estão a tentar lixar-me, Gabriel.
— Calma, Tiivu. — pediu, reconhecendo a voz. — Que aconteceu?
Tiivu era um jogador finlandês de hóquei no gelo que fora contratado pelos Toronto Maple Leafs a uma equipa sueca. Os Maple Leafs eram a principal equipa de hóquei da cidade, uma das mais históricas da NHL e a segunda com mais títulos de uma competição com mais de cem anos e a mais emblemática de todo o Mundo daquela modalidade. Gabriel era o empresário de Tiivu e fora ele quem tratara da sua transferência para a América do Norte. Segundo o hoquista, sem esconder a irritação na voz, o clube e o treinador estavam a ponderar enquadrá-lo nos Toronto Marlies. Isso significava que, em vez de jogar na melhor liga mundial, iria jogar na equipa de reservas que competia naquilo a que os americanos chamavam uma minor league, a AHL, ou seja, uma espécie de competição de jogadores jovens a tentar provar que tinham lugar na NHL. Claro que Tiivu achava que nada tinha a provar.
Gabriel sabia que não fora aquilo que ficara acordado. Tiivu não se iria mudar para o outro lado do oceano para jogar nas reservas.
— Eu falo com o General Manager, Tiivu. — descansou-o.
O finlandês agradeceu, mais calmo, ciente que Gabriel resolveria a questão.
Desligou a chamada e guardou o aparelho no bolso. Irritava-o que os clubes não cumprissem os acordos verbais. Sim, aquilo não ficara escrito no contrato, fora conversado e os directores dos Maple Leafs concordaram que aquele investimento não seria para desperdiçar na AHL. Só que depois o treinador mudou...
Teria de tratar do assunto, telefonando ao General Manager e combinar uma reunião com ele. Aquilo não poderia ser resolvido a falar ao telefone. Gabriel adorava os Maple Leafs, era adepto da equipa desde que chegara ao Canadá. Mas, isso não o obrigava a aceitar o desrespeito para com os seus representados.
Tornou a olhar para a rua. Não estava com paciência para problemas ou resoluções. Comprometera-se e cabia-lhe a ele reivindicar a concretização das expectativas de Tiivu, só que o seu estado de espírito sugava-lhe qualquer vislumbre de paciência para a solução. Se quisesse, poderia comprar vários Ferrari iguais ao seu, mas não encontrava lugar nenhum onde conseguisse comprar... paciência.
Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!
O vento soprava fresco pelas ruas da cidade.
Normalmente, faria aquele pequeno percurso de carro, mas estava a precisar de andar e o seu destino não era suficientemente longe para o demover de enfrentar a cacofonia populacional de Toronto. Saiu do edifício directamente para a Bay Street, orgulhoso com a constatação de como era uma pessoa importante ao ponto de conseguir que o GM dos Maple Leafs concordasse em recebê-lo ainda nessa manhã.
O Sol parecia despontar no céu cinzento, sendo que dificilmente conseguiria furar por entre os prédios. Só mesmo se incidisse numa linha paralela às longas ruas de Toronto é que o seu brilho chegaria aos passeios. Era por isso que as pessoas aproveitavam as praças e pracetas para permanecer alguns minutos.
O fluxo humano não era tão intenso como noutros horários. Mesmo assim, muita gente circulava por ali, desde turistas dos quatro cantos do Mundo até aos simples estafetas que transportavam documentos e encomendas entre empresas. A maior parte dos seres humanos traziam auriculares nos ouvidos, parecendo à primeira vista estarem a falar sozinhos. Na rua, Gabriel fazia o mesmo, caminhando com os seus Galaxy Buds inseridos nos ouvidos para atender as constantes chamadas de trabalho.
Estava com tempo. Numa passada calma, chegaria ao ScotiaBank Arena, onde seria recebido pelo GM, em dez a quinze minutos. O tipo recebia-o com brevidade, mas não de imediato, daí que tivesse estipulado trinta minutos entre o telefonema e a reunião. Gabriel fez um desvio na Kigs Street para passar pelo Starbucks na esquina daquela rua com a Yonge Street.
A loja estava praticamente vazia. Na sua frente, somente um casal de turistas e uma jovem com ar de universitária. Atrás do balcão trabalhava um jovem com trejeitos divertidos, extremamente afável. Gabriel comprou um Cappuccino dos grandes, pagando e sendo generoso na gorjeta.
Ao voltar ao exterior, a sua atenção foi captada para a porta do One King Hotel, no lado oposto da rua. Reconheceu a mulher sedutora de cabelos ruivos que saía do edifício, era uma das dez da sua lista. Ela vinha distraída, concentrada no telemóvel, mas algo a fez olhar para ele. Gabriel sorriu e acenou-lhe, não tinha qualquer complexo em reconhecer e ser reconhecido na rua por uma das suas profissionais do sexo. Ela retribuiu o sorriso e o aceno, tomando a direcção oposta à dele.
A depressão voltou a pressioná-lo. Podias comprar-lhe o corpo, o sorriso, os beijos, a companhia, o que ele quisesse... Fora isso, não estando a pagar, era um aceno cordial numa relação de fornecedor para cliente.
Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!
Nem tudo se compra, talvez...
Evitou com esforço que a aura negra se abatesse mais sobre ele. Bebeu o líquido quente e apressou-se de volta à Bay Street, onde retomou a direcção sul. Prosseguiu numa passada constante, abstraído da sonoridade envolvente, uma vez que ligara a playlist do Spotify no telemóvel para o descontrair. Alcançou a Front Street, uma rua larga que se cruzava na sua frente. Aguardou que a sinalização dos peões lhe permitisse atravessar, cerca de dois minutos, e passou para o outro lado, encarando a enorme Union Station.
As muitas linhas ferroviárias entravam na estação, a oriente, por um viaduto que cobria a Bay Street na sua linha de alcatrão rumo ao lago, a qual só terminaria na Queens Quay, junto ao Harbour Square Park. Gabriel encontrou um aglomerado humano mais intenso, devido às obras, quando continuou por esse viaduto.
Toronto tinha aquela curiosidade, as passagens não eram simples passeios junto à estrada, eram semelhantes a corredores de edifícios, separados dos carros por vidros, o que protegia os transeuntes da poluição do ar e do som. Era mais um pormenor revelador de uma cidade com mentalidade muito evoluída.
Tornando a sair para o exterior movimentado de automóveis, Gabriel virou imediatamente à direita e ficou defronte da ScotiaBank Arena.
Naquele enorme pavilhão disputavam-se jogos de hóquei no gelo e basquetebol. A equipa de basquetebol eram os Raptors, a única canadiana a disputar a NBA, depois de Vancouver ter perdido a sua para Memphis. Gabriel também agenciava alguns dos jogadores dos Raptors e tinha muitas esperanças que, em breve, os Toronto Raptors se tornassem na primeira equipa canadiana a vencer a NBA.
Curiosamente, e sem ter essa intenção, parou exactamente sobre o emblema dos Raptors pintado no passeio daquela fachada. Confirmou as horas e avançou pelas portas giratórias.
Brevemente publicarei mais. Entretanto, podem ler tudo em https://www.nunostavares.pt/index.php...
Published on September 15, 2025 12:17
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June 9, 2025
Biblioteca
Para quem não sabe, tenho quatro histórias completas publicadas no meu website que podem ser lidas gratuitamente.
Passem por lá e fiquem a conhecer o espaço.
Aqui fica o link:
Biblioteca
Passem por lá e fiquem a conhecer o espaço.
Aqui fica o link:
Biblioteca
Published on June 09, 2025 04:41
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March 19, 2025
Os Virtuais
Os Virtuais são pessoas com duas vidas, a real e a virtual.
Neste livro, oito seres, oito vidas, oito pessoas, oito avatares.
Santiago, um homem falido que regressa a Portugal depois de uma relação tóxica. Natacha, a supermodelo internacional com uma vida de sonho que não é mais que um pesadelo. Evelina, a irmã de Natacha que vê nela tudo o que não conseguiu ser. Orlando, um cronista social que despeja todos os seus ódios nos textos que escreve. Dimas, um homem enclausurado em casa devido a problemas de saúde mental. Felisberto, infectado com HIV por uma ex-amante, procura vingar-se transmitindo o vírus. Diana, aspirante a cantora que vive o drama de se ter relacionado com Felisberto. E Topázio, a catalã que sonha com uma vida como a da patroa.
Todos eles pessoas comuns, todos eles personagens que circulam na Internet sob identidades falsas ou ocultas, procurando viver outras vidas ou simplesmente abstrairem-se da que têm. Exemplos da época em que vivemos, uma Humanidade absorvida pela Internet, incapaz de sobreviver sem ela, usando-a para tudo.
Os Virtuais é uma representação da sociedade, pessoas que existem num mundo real e que se reinventam num mundo virtual, protagonizando realidades alternativas, sendo aquilo que mais gostariam de ser, um papel com a durabilidade mais conveniente, a possibilidade de serem o que realmente não são.
Mais informação em https://www.nunostavares.pt/index.php...
Neste livro, oito seres, oito vidas, oito pessoas, oito avatares.
Santiago, um homem falido que regressa a Portugal depois de uma relação tóxica. Natacha, a supermodelo internacional com uma vida de sonho que não é mais que um pesadelo. Evelina, a irmã de Natacha que vê nela tudo o que não conseguiu ser. Orlando, um cronista social que despeja todos os seus ódios nos textos que escreve. Dimas, um homem enclausurado em casa devido a problemas de saúde mental. Felisberto, infectado com HIV por uma ex-amante, procura vingar-se transmitindo o vírus. Diana, aspirante a cantora que vive o drama de se ter relacionado com Felisberto. E Topázio, a catalã que sonha com uma vida como a da patroa.
Todos eles pessoas comuns, todos eles personagens que circulam na Internet sob identidades falsas ou ocultas, procurando viver outras vidas ou simplesmente abstrairem-se da que têm. Exemplos da época em que vivemos, uma Humanidade absorvida pela Internet, incapaz de sobreviver sem ela, usando-a para tudo.
Os Virtuais é uma representação da sociedade, pessoas que existem num mundo real e que se reinventam num mundo virtual, protagonizando realidades alternativas, sendo aquilo que mais gostariam de ser, um papel com a durabilidade mais conveniente, a possibilidade de serem o que realmente não são.
Mais informação em https://www.nunostavares.pt/index.php...
Published on March 19, 2025 07:13
October 25, 2024
Os Corvos de São Jorge - Ventos do Passado - Introdução
0.1
12 de Junho.
Lisboa.
A noite de céu limpo num tom cinza-azulado, clareado pelo meio luar intenso, fazia sobressair a Lua que iluminava a cidade já por si mergulhada em luzes urbanas. A noite era de festa, era a noite de Santos Populares, a noite de Santo António, o pináculo de um mês tradicionalmente dedicado à diversão na capital. Por toda a cidade, o Santo António, o santo padroeiro de Lisboa, que teria o seu dia assinalado no seguinte com um feriado municipal, era comemorado um pouco por todos os bairros típicos, lugares de ruas estreitas apinhadas de gente, portugueses e estrangeiros, residentes e turistas.
O cheiro a sardinha espalhava-se pelo ar, impregnando o ambiente citadino com o aroma de carvão misturado com o peixe ou a carne. Nem todos eram amigos da sardinha e alguns deslocados, alguns desrespeitadores das tradições, pediam uma febra de porco para colocar na fatia de pão, ao invés da bela, saborosa e tradicional sardinha.
A cerveja corria dos barris, servida à pressão em copos de plástico que na manhã seguinte iriam compor a passadeira de lixo que sempre ficava nos passeios para que alguém limpasse. Também a serviam em garrafas pequenas, também elas esquecidas aquando vazias, largadas com os copos de plástico inteiras ou em cacos. Alguém viria limpar... Também havia vinho e bebidas espirituosas. O pessoal queria festa e nunca ninguém ouvira falar em festa sem álcool.
A multidão espalhava-se nas ruelas, uns encostados às paredes sujas engalanadas com decoração festiva, outros a andar daqui para ali e dali para aqui. A massa humana deslocava-se como a lava que escorre de um vulcão, lentamente, pela encosta, pessoas com os braços no ar, protegendo o copo a pingar e a sardinha a escorrer no pão. Fitas coloridas, compostas de figuras de papel, cruzavam as vielas, ligavam prédios separados pelas vias de circulação, essencialmente pedonal. Lisboa era uma cidade cujos bairros típicos se fechavam cada vez mais ao trânsito automóvel.
As janelas tinham manjericos, aliás, tudo tinha manjericos. Todos com mensagens espetadas, todas a começar com o típico "Ó meu rico Santo António...". Havia todo o tipo de desejos que andavam sempre à volta do mesmo. Porém, apesar de centenas, senão milhares de mensagens, naquele ano nenhum papel trazia a mensagem que certamente, daí a alguns dias, milhares... ou talvez milhões de pessoas, desejariam que o santo cumprisse. E seria algo do género "Ó meu rico Santo António, padroeiro desta cidade de encantar. Livra-nos do demónio, que virá para nos matar".
A cacofonia de vozes embrulhava-se com a cacofonia de músicas. Falava-se português com diversas sonoridades, desde a endémica, à cantada do outro lado do Atlântico até ao português de tropeções do hemisfério sul. Pelo meio, muito espanhol e imenso inglês, algum francês e outros dialectos irreconhecíveis. Onde houvesse música, havia fado. Somente alguns locais fugiam à regra, dando uma oferta diferente a quem queria festa noutro ritmo.
Por norma, o ponto alto das comemorações das festas populares em Lisboa era o desfile das marchas, grupos de marchantes representando os seus bairros numa fraternal competição acérrima, bairrismo levado ao extremo saudável a que pode ir um desafio.
Como sempre, a Avenida da Liberdade engalanara-se para receber o evento. Às luzes urbanas diárias juntavam-se os holofotes que fustigavam o espaço com luz, de forma que nada ficasse escondido dos espectadores e da transmissão televisiva. O trânsito fora cortado naquele dia e quase toda a avenida era usada para o evento, se bem que apenas um sector a meio funcionava como uma espécie de sambódromo à portuguesa. Bancadas eram montadas a ladear o asfalto nos passeios largos entre a via central e as laterais. Pelo meio, a tribuna de honra com acesso apenas a convidados com requisitos especiais. Tudo aquilo trazia muito interesse, cada marcha apadrinhada por figuras conhecidas. A cantoria não se diferenciava muito entre cada marcha, a batida era igual em todas, mudavam as letras e talvez a música. Cada grupo recreativo treinava afincadamente para o desfile, preparativos que começavam muitos meses antes, pessoas que dedicavam quase todo o seu tempo livre, depois de um dia de trabalho, para treinar e produzir todo o conjunto de fatos e adereços. Só mesmo com muito amor se conseguia ser tão eficiente em algo que se fazia voluntariamente. As marchas poderiam ser sonoramente idênticas umas às outras, porém, visualmente eram um mar de criatividade, cultura, diversidade e cor.
Naquele ano, o desfile das marchas populares não era o único grande evento da cidade. Na Praça do Comércio iria acontecer um festival de música com várias bandas convidadas. E se na Avenida da Liberdade se juntavam muitas pessoas para além das centenas de marchantes, a Praça do Comércio estava apinhada de espectadores que não enjeitaram a hipótese de assistir a um concerto tão bom e gratuito. Nem todos os lisboetas eram fãs de santos e marchas. Por isso, não foi estranha a enchente na grande praça emblemática de Lisboa.
O grande palco fora elevado em frente ao Arco da Rua Augusta, tapando completamente a visão do rio a quem viesse por essa rua pedonal. As traseiras do palco estavam viradas para o arco e todo o sector entre eles estava vedado para melhor mobilidade de técnicos e artistas. A estrutura era enorme, elevando-se acima do monumento atrás de si. Um gigantesco bloco negro donde brotavam luzes fortes, coloridas, ora para o palco, ora para o público.
As bandas seriam todas portuguesas. Estamos a falar de um evento patrocinado pelo governo nacionalista lusitano, o qual já demonstrara querer fazer do período entre o Dia de Portugal e o Dia de Santo António um momento de exaltação nacional.
As vias rodoviárias a norte e a sul da praça foram cortadas para evitar ter carros a passar tão perto dos espectadores, até porque muitos gostariam de estar a assistir ao longe, saboreando ao mesmo tempo a noite na margem do rio Tejo. Os restaurantes que funcionavam em redor da praça mantiveram-se em funcionamento, mas sem esplanadas, reduzindo a capacidade de jantares, mas contrabalançando com pequenos balcões a vender bebidas e snacks aos espectadores do concerto.
A massa humana aqui também era impressionante, milhares de jovens e menos jovens tapavam o recinto da Praça do Comércio até ao rio. A estátua do rei D. José I era uma ilha que sobressaía no meio da multidão. Na frente desta, um sector reservado aos técnicos de luz e som que trabalhavam em sintonia com o palco.
A Lua incidia o seu brilho nas águas do rio, destacando as três fragatas da Marinha portuguesa que permaneciam ancoradas no Tejo há três dias. Os três navios mais poderosos da Marinha marcaram presença nas comemorações do 10 de Junho e ainda continuavam ancorados entre as duas margens para estranheza de muitos curiosos. Para lá destes, a margem sul escura ponteada por pequenas luzes alaranjadas com maior ênfase em Cacilhas. Perto da Ponte 25 de Abril, também ela iluminada, o Cristo Rei sobressaia no alto da encosta onde a primeira travessia rodoviária lisboeta do rio Tejo desembocava.
A noite era de festa...
A noite deveria ser de festa.
Ninguém soube dizer com clareza como tudo aconteceu. Calcula‑se que as melhores testemunhas foram os que não sobreviveram. No palco do concerto estaria a decorrer a participação da segunda ou da terceira banda. Até nisto a informação era contraditória. A meio de uma canção, aconteceu uma brutal explosão no meio do público. Mais tarde, a conclusão seria que a bomba estava dissimulada no equipamento técnico do sector que dava apoio ao palco, perto da estátua do rei. A brutalidade da explosão ceifou a vida dos técnicos que ali estavam e mais duas centenas de pessoas que se encontravam à volta. Muitas outras centenas ficaram feridas com gravidade, sofrendo no chão empedrado da praça. O pânico tomou conta do local e os espectadores começaram a fugir.
Teria sido um acidente?
Os acontecimentos seguintes tiraram as dúvidas.
Vindos não se sabe bem donde, vários elementos vestidos de negro e encapuçados, apareceram empunhando armas automáticas. Quem se deparou com eles, julgou serem elementos das forças policiais, brigadas de intervenção rápida para acorrer a algo que poderia ser um acto de terrorismo. Contudo, teria sido demasiado rápida a sua aparição. Estes elementos anónimos começaram a disparar para as pessoas, abatendo a sangue-frio todos os que conseguissem até haver quem lhes fizesse frente.
Os poucos polícias que faziam segurança ao evento foram abatidos com facilidade. Os terroristas avançaram pela praça pelo lado poente, espalharam-se em várias direcções disparando indiscriminadamente. Não deveriam ser mais que dez, mas sem oposição e com tantas munições, a matança fora sangrenta. Nem os feridos eram poupados. Quase todos os que não conseguiam, feridos da explosão ou das balas, eram executados impiedosamente com um tiro.
Um atentado terrorista.
Não havia outra forma de o descrever.
Quando finalmente apareceram mais polícias e agentes do SIALE para lhes fazer frente, o grupo iniciou a sua fuga, desaparecendo com a mesma rapidez com que haviam surgido do nada, brotando da confusão causada pela violenta explosão.
No concerto estavam milhares de pessoas. Mais tarde, o balanço viria a cifrar-se em perto de quatrocentos mortos e cerca de mil feridos com mais de metade em estado grave, o que desencadeou o caos nos hospitais da cidade.
A confusão interrompeu o desfile na Avenida da Liberdade. Primeiro o som assustador da explosão, depois a onda de choque e, por fim, as pessoas em fuga vindas de sul. As forças de segurança preocuparam-se em proteger as poucas individualidades que assistiam às Marchas.
As emissões televisivas foram interrompidas. Os principais canais de televisão suspenderam a programação para colocarem no ar blocos noticiosos de última hora. Equipas de reportagem foram enviadas para o local, uma vez que se perdera o contacto com os repórteres que acompanhavam o evento na Praça do Comércio. Inúmeros vídeos e fotos começaram a circular nas redes sociais, no Instagram, TikTok, Facebook... Filmagens de gente que gravava a actuação em palco no momento da explosão, filmagens dos terroristas ao longe a metralhar inocentes, fotos do fogo, dos feridos, gente a fugir, muitas tremidas e outras desfocadas.
Cerca de meia hora depois, o atentado foi reivindicado pelo grupo terrorista que já tinha feito outros atentados em Lisboa, naquele ano, entre eles o assassinato de um ministro. Logo de seguida, o ministro da Administração Interna falou aos jornalistas para condenar o acto e prometer perseguição a todos os elementos do grupo. Seria feita justiça e a pena de morte voltaria a Portugal, jurou ele. O gabinete do primeiro‑ministro informou que o chefe do governo iria fazer uma declaração ao país. Curiosamente, ninguém sabia do Presidente da República...
Portugal vivia tempos muito complicados, tempos que se vinham a agravar desde o início do século. A sociedade portuguesa fracturava-se, os ódios eram semeados e potenciados por quem lucrava com eles. Para muitos, aquele trágico acontecimento seria previsível, apesar de ninguém sonhar com um resultado tão brutal para além dos seus perpetradores.
Quem estava por detrás deste grupo terrorista?
Para se perceber melhor como foi possível chegar aqui, temos de recuar aos finais do século XX e inícios do século XXI...
Livro completo na Biblioteca no meu website www.nunostavares.pt
12 de Junho.
Lisboa.
A noite de céu limpo num tom cinza-azulado, clareado pelo meio luar intenso, fazia sobressair a Lua que iluminava a cidade já por si mergulhada em luzes urbanas. A noite era de festa, era a noite de Santos Populares, a noite de Santo António, o pináculo de um mês tradicionalmente dedicado à diversão na capital. Por toda a cidade, o Santo António, o santo padroeiro de Lisboa, que teria o seu dia assinalado no seguinte com um feriado municipal, era comemorado um pouco por todos os bairros típicos, lugares de ruas estreitas apinhadas de gente, portugueses e estrangeiros, residentes e turistas.
O cheiro a sardinha espalhava-se pelo ar, impregnando o ambiente citadino com o aroma de carvão misturado com o peixe ou a carne. Nem todos eram amigos da sardinha e alguns deslocados, alguns desrespeitadores das tradições, pediam uma febra de porco para colocar na fatia de pão, ao invés da bela, saborosa e tradicional sardinha.
A cerveja corria dos barris, servida à pressão em copos de plástico que na manhã seguinte iriam compor a passadeira de lixo que sempre ficava nos passeios para que alguém limpasse. Também a serviam em garrafas pequenas, também elas esquecidas aquando vazias, largadas com os copos de plástico inteiras ou em cacos. Alguém viria limpar... Também havia vinho e bebidas espirituosas. O pessoal queria festa e nunca ninguém ouvira falar em festa sem álcool.
A multidão espalhava-se nas ruelas, uns encostados às paredes sujas engalanadas com decoração festiva, outros a andar daqui para ali e dali para aqui. A massa humana deslocava-se como a lava que escorre de um vulcão, lentamente, pela encosta, pessoas com os braços no ar, protegendo o copo a pingar e a sardinha a escorrer no pão. Fitas coloridas, compostas de figuras de papel, cruzavam as vielas, ligavam prédios separados pelas vias de circulação, essencialmente pedonal. Lisboa era uma cidade cujos bairros típicos se fechavam cada vez mais ao trânsito automóvel.
As janelas tinham manjericos, aliás, tudo tinha manjericos. Todos com mensagens espetadas, todas a começar com o típico "Ó meu rico Santo António...". Havia todo o tipo de desejos que andavam sempre à volta do mesmo. Porém, apesar de centenas, senão milhares de mensagens, naquele ano nenhum papel trazia a mensagem que certamente, daí a alguns dias, milhares... ou talvez milhões de pessoas, desejariam que o santo cumprisse. E seria algo do género "Ó meu rico Santo António, padroeiro desta cidade de encantar. Livra-nos do demónio, que virá para nos matar".
A cacofonia de vozes embrulhava-se com a cacofonia de músicas. Falava-se português com diversas sonoridades, desde a endémica, à cantada do outro lado do Atlântico até ao português de tropeções do hemisfério sul. Pelo meio, muito espanhol e imenso inglês, algum francês e outros dialectos irreconhecíveis. Onde houvesse música, havia fado. Somente alguns locais fugiam à regra, dando uma oferta diferente a quem queria festa noutro ritmo.
Por norma, o ponto alto das comemorações das festas populares em Lisboa era o desfile das marchas, grupos de marchantes representando os seus bairros numa fraternal competição acérrima, bairrismo levado ao extremo saudável a que pode ir um desafio.
Como sempre, a Avenida da Liberdade engalanara-se para receber o evento. Às luzes urbanas diárias juntavam-se os holofotes que fustigavam o espaço com luz, de forma que nada ficasse escondido dos espectadores e da transmissão televisiva. O trânsito fora cortado naquele dia e quase toda a avenida era usada para o evento, se bem que apenas um sector a meio funcionava como uma espécie de sambódromo à portuguesa. Bancadas eram montadas a ladear o asfalto nos passeios largos entre a via central e as laterais. Pelo meio, a tribuna de honra com acesso apenas a convidados com requisitos especiais. Tudo aquilo trazia muito interesse, cada marcha apadrinhada por figuras conhecidas. A cantoria não se diferenciava muito entre cada marcha, a batida era igual em todas, mudavam as letras e talvez a música. Cada grupo recreativo treinava afincadamente para o desfile, preparativos que começavam muitos meses antes, pessoas que dedicavam quase todo o seu tempo livre, depois de um dia de trabalho, para treinar e produzir todo o conjunto de fatos e adereços. Só mesmo com muito amor se conseguia ser tão eficiente em algo que se fazia voluntariamente. As marchas poderiam ser sonoramente idênticas umas às outras, porém, visualmente eram um mar de criatividade, cultura, diversidade e cor.
Naquele ano, o desfile das marchas populares não era o único grande evento da cidade. Na Praça do Comércio iria acontecer um festival de música com várias bandas convidadas. E se na Avenida da Liberdade se juntavam muitas pessoas para além das centenas de marchantes, a Praça do Comércio estava apinhada de espectadores que não enjeitaram a hipótese de assistir a um concerto tão bom e gratuito. Nem todos os lisboetas eram fãs de santos e marchas. Por isso, não foi estranha a enchente na grande praça emblemática de Lisboa.
O grande palco fora elevado em frente ao Arco da Rua Augusta, tapando completamente a visão do rio a quem viesse por essa rua pedonal. As traseiras do palco estavam viradas para o arco e todo o sector entre eles estava vedado para melhor mobilidade de técnicos e artistas. A estrutura era enorme, elevando-se acima do monumento atrás de si. Um gigantesco bloco negro donde brotavam luzes fortes, coloridas, ora para o palco, ora para o público.
As bandas seriam todas portuguesas. Estamos a falar de um evento patrocinado pelo governo nacionalista lusitano, o qual já demonstrara querer fazer do período entre o Dia de Portugal e o Dia de Santo António um momento de exaltação nacional.
As vias rodoviárias a norte e a sul da praça foram cortadas para evitar ter carros a passar tão perto dos espectadores, até porque muitos gostariam de estar a assistir ao longe, saboreando ao mesmo tempo a noite na margem do rio Tejo. Os restaurantes que funcionavam em redor da praça mantiveram-se em funcionamento, mas sem esplanadas, reduzindo a capacidade de jantares, mas contrabalançando com pequenos balcões a vender bebidas e snacks aos espectadores do concerto.
A massa humana aqui também era impressionante, milhares de jovens e menos jovens tapavam o recinto da Praça do Comércio até ao rio. A estátua do rei D. José I era uma ilha que sobressaía no meio da multidão. Na frente desta, um sector reservado aos técnicos de luz e som que trabalhavam em sintonia com o palco.
A Lua incidia o seu brilho nas águas do rio, destacando as três fragatas da Marinha portuguesa que permaneciam ancoradas no Tejo há três dias. Os três navios mais poderosos da Marinha marcaram presença nas comemorações do 10 de Junho e ainda continuavam ancorados entre as duas margens para estranheza de muitos curiosos. Para lá destes, a margem sul escura ponteada por pequenas luzes alaranjadas com maior ênfase em Cacilhas. Perto da Ponte 25 de Abril, também ela iluminada, o Cristo Rei sobressaia no alto da encosta onde a primeira travessia rodoviária lisboeta do rio Tejo desembocava.
A noite era de festa...
A noite deveria ser de festa.
Ninguém soube dizer com clareza como tudo aconteceu. Calcula‑se que as melhores testemunhas foram os que não sobreviveram. No palco do concerto estaria a decorrer a participação da segunda ou da terceira banda. Até nisto a informação era contraditória. A meio de uma canção, aconteceu uma brutal explosão no meio do público. Mais tarde, a conclusão seria que a bomba estava dissimulada no equipamento técnico do sector que dava apoio ao palco, perto da estátua do rei. A brutalidade da explosão ceifou a vida dos técnicos que ali estavam e mais duas centenas de pessoas que se encontravam à volta. Muitas outras centenas ficaram feridas com gravidade, sofrendo no chão empedrado da praça. O pânico tomou conta do local e os espectadores começaram a fugir.
Teria sido um acidente?
Os acontecimentos seguintes tiraram as dúvidas.
Vindos não se sabe bem donde, vários elementos vestidos de negro e encapuçados, apareceram empunhando armas automáticas. Quem se deparou com eles, julgou serem elementos das forças policiais, brigadas de intervenção rápida para acorrer a algo que poderia ser um acto de terrorismo. Contudo, teria sido demasiado rápida a sua aparição. Estes elementos anónimos começaram a disparar para as pessoas, abatendo a sangue-frio todos os que conseguissem até haver quem lhes fizesse frente.
Os poucos polícias que faziam segurança ao evento foram abatidos com facilidade. Os terroristas avançaram pela praça pelo lado poente, espalharam-se em várias direcções disparando indiscriminadamente. Não deveriam ser mais que dez, mas sem oposição e com tantas munições, a matança fora sangrenta. Nem os feridos eram poupados. Quase todos os que não conseguiam, feridos da explosão ou das balas, eram executados impiedosamente com um tiro.
Um atentado terrorista.
Não havia outra forma de o descrever.
Quando finalmente apareceram mais polícias e agentes do SIALE para lhes fazer frente, o grupo iniciou a sua fuga, desaparecendo com a mesma rapidez com que haviam surgido do nada, brotando da confusão causada pela violenta explosão.
No concerto estavam milhares de pessoas. Mais tarde, o balanço viria a cifrar-se em perto de quatrocentos mortos e cerca de mil feridos com mais de metade em estado grave, o que desencadeou o caos nos hospitais da cidade.
A confusão interrompeu o desfile na Avenida da Liberdade. Primeiro o som assustador da explosão, depois a onda de choque e, por fim, as pessoas em fuga vindas de sul. As forças de segurança preocuparam-se em proteger as poucas individualidades que assistiam às Marchas.
As emissões televisivas foram interrompidas. Os principais canais de televisão suspenderam a programação para colocarem no ar blocos noticiosos de última hora. Equipas de reportagem foram enviadas para o local, uma vez que se perdera o contacto com os repórteres que acompanhavam o evento na Praça do Comércio. Inúmeros vídeos e fotos começaram a circular nas redes sociais, no Instagram, TikTok, Facebook... Filmagens de gente que gravava a actuação em palco no momento da explosão, filmagens dos terroristas ao longe a metralhar inocentes, fotos do fogo, dos feridos, gente a fugir, muitas tremidas e outras desfocadas.
Cerca de meia hora depois, o atentado foi reivindicado pelo grupo terrorista que já tinha feito outros atentados em Lisboa, naquele ano, entre eles o assassinato de um ministro. Logo de seguida, o ministro da Administração Interna falou aos jornalistas para condenar o acto e prometer perseguição a todos os elementos do grupo. Seria feita justiça e a pena de morte voltaria a Portugal, jurou ele. O gabinete do primeiro‑ministro informou que o chefe do governo iria fazer uma declaração ao país. Curiosamente, ninguém sabia do Presidente da República...
Portugal vivia tempos muito complicados, tempos que se vinham a agravar desde o início do século. A sociedade portuguesa fracturava-se, os ódios eram semeados e potenciados por quem lucrava com eles. Para muitos, aquele trágico acontecimento seria previsível, apesar de ninguém sonhar com um resultado tão brutal para além dos seus perpetradores.
Quem estava por detrás deste grupo terrorista?
Para se perceber melhor como foi possível chegar aqui, temos de recuar aos finais do século XX e inícios do século XXI...
Livro completo na Biblioteca no meu website www.nunostavares.pt

Published on October 25, 2024 02:15
February 7, 2024
OS CORVOS DE SÃO JORGE - Ventos do Passado
OS CORVOS DE SÃO JORGE - Ventos do Passado
Apresentação do livro
E se a Regionalização tivesse sido aprovada no referendo de 1998?
Em 1998 realizou-se em Portugal um referendo que tinha como objectivo que os portugueses decidissem se queriam ou não que o território nacional continental fosse administrativamente dividido em regiões autónomas. O Referendo da Regionalização, como ficou registado para a História, teve um índice de abstenção acima de 50% e o "não" venceu com cerca de 60% dos votantes. A Regionalização fora chumbada pelo povo.
Os Corvos de São Jorge - Ventos do Passado decorre numa realidade alternativa, muitos anos depois deste referendo, tendo como simples pressuposto a vitória do "sim" nesse mesmo referendo.
https://www.nunostavares.pt/index.php...
Apresentação do livro
E se a Regionalização tivesse sido aprovada no referendo de 1998?
Em 1998 realizou-se em Portugal um referendo que tinha como objectivo que os portugueses decidissem se queriam ou não que o território nacional continental fosse administrativamente dividido em regiões autónomas. O Referendo da Regionalização, como ficou registado para a História, teve um índice de abstenção acima de 50% e o "não" venceu com cerca de 60% dos votantes. A Regionalização fora chumbada pelo povo.
Os Corvos de São Jorge - Ventos do Passado decorre numa realidade alternativa, muitos anos depois deste referendo, tendo como simples pressuposto a vitória do "sim" nesse mesmo referendo.
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Published on February 07, 2024 06:26
October 20, 2023
A CAMINHO DO TEU NOME
A CAMINHO DO TEU NOME é um conjunto de contos cronológicos de Daniel, desde a adolescência até encontrar o nome que se tornaria mais marcante da sua vida. Cada conto um nome, cada nome um pedaço importante da existência de Daniel.
https://nunostavares.pt/index.php/ler...
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Published on October 20, 2023 08:32
September 22, 2023
Livro Quartzo Titânio
QUARTZO TITÂNIO
"Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!"
Este é o tema que inicia a história de Quartzo Titânio.
Gabriel, alguém decepcionado com a vida que gere os seus interesses com base no dinheiro, refutando sentimentos e gerindo as relações como mera troca de serviços.
A frase era uma certeza para ele, um lema que seguia desde que viera viver para Toronto, quinze anos antes, após o trauma da separação, do abandono pela mulher que amava e com quem julgara ir viver o resto dos seus dias.
Década e meia passada, Gabriel é um homem fechado ao mundo, às pessoas, isolado na sua vida pessoal e onde os seres humanos se resumem ao trabalho. Fora da vida profissional, a sua companhia é a angústia e a solidão.
Porém, algo muda, alguém o irá mudar.
"Na vida só precisamos de saúde e dinheiro. O resto compra-se!"
Este é o tema que inicia a história de Quartzo Titânio.
Gabriel, alguém decepcionado com a vida que gere os seus interesses com base no dinheiro, refutando sentimentos e gerindo as relações como mera troca de serviços.
A frase era uma certeza para ele, um lema que seguia desde que viera viver para Toronto, quinze anos antes, após o trauma da separação, do abandono pela mulher que amava e com quem julgara ir viver o resto dos seus dias.
Década e meia passada, Gabriel é um homem fechado ao mundo, às pessoas, isolado na sua vida pessoal e onde os seres humanos se resumem ao trabalho. Fora da vida profissional, a sua companhia é a angústia e a solidão.
Porém, algo muda, alguém o irá mudar.
Published on September 22, 2023 01:35