Ricardo Ribeiro semi-deus e o cão que tirava ovelhas das searas
O que dizem os seus olhos? O programa Alta Definição, da autoria do Daniel Oliveira, ficará como marca desta época - anos dez do primeiro século do terceiro milénio - e já integra uma certa mitologia social. Justo ou injusto, se dissermos que é à "Daniel Oliveira" ou à "Gustavo Santos", todos sabemos o que quer dizer. Mas não me compete analisar o porquê. Este serve apenas de intróito à declaração de amor e esmagamento (algo que pode ser situado acima do arrebatamento) à prestação do fadista Ricardo Ribeiro naquele programa.Comecei por não o conhecer, porque perdeu cinquenta quilos. Não perdeu nada com esses cinquenta quilos. Na verdade, ganhou. Mais na verdade ainda, eu nunca o houvera conhecido mais gordo. Nunca aprofundara o olhar sobre esta personagem, muito menos sobre a pessoa.Fiquei impressionado. Profundamente impressionado.Não me costumo impressionar e não me lembro de ficar tão esmagado. Com nada. Com ninguém vivo. E aprendi tanto. Eu que, de há sete anos a esta parte, me vejo obrigado a comunicar em público e meti na cabeça que aproveitarei cada oportunidade para tirar o melhor dos meus ouvintes ou espectadores. Sou quase sempre incapaz de o fazer. Creio que só o consegui numa certa noite em que falhei. Queria cantar e não tinha voz. Ora este homem, que canta como poucos, fala como eu gostava um dia de falar. Não estudou o que eu estudei, trabalhou desde pequenino como eu não trabalhei e é sábio como eu nunca serei. E gostava. Mas eu não guardei cabras. Nem assentei tijolo. E ele pode ler os livros que eu leio e escutar como tento escutar, mas tem nele uma voz e um percurso que eu renderei como um guarda que tenta proteger e preservar o tesouro que é este seu próximo, como parece que fez o Camané numa certa noite em que ele estava destruído e foi salvo pelos amigos e por uma sopa em que o Camané insistiu e lhe ficou, finalmente, na alma, como nada lhe ficara nesse dia.
Cita Platão, Pessoa, Padre António Vieira, provérbios de vários países, a raça cigana, usa o gerúndio e cada frase é dele, nasceu com ele. Tem mais literatura nas veias do que eu fado nas mãos. E eu, que amo tanto a literatura, tenho de amar o Ricardo, que se salvou com ela como eu quero mostrar a todos, desde pequenino, que é possível.
Não consigo explicar melhor.Todas as minhas palavras serão excessivas em face da sabedoria do Ricardo. A pose, a força, a lucidez, tudo numa entidade que parece ter crescido para nos tomar pelas sombras e nos arrastar pela luz. Logo eu, dirá ele. Vejam enquanto podem ou, se passar o tempo, pode ser que algum anjo o deixe no YouTube. Ou já lá esteja.
Eu punha o Ricardo em frente a uma câmara todas as semanas, a bem de nós todos. Como fizeram com o Professor Agostinho da Silva ou com o Vitorino Nemésio. Precisava disto há muito. Precisamos todos. Obrigado ao Daniel por isso. E ao Ricardo, claro, embora aqui eu sinta que estou a falar para uma entidade para-divina. Se ele ler isto insulta-me, bem sei, mas é mesmo assim.
Olha, Ricardo, talvez eu um dia seja, pelo menos, esse teu cão que tirava delicadamente as ovelhas das searas.
PG-M 2018foto do instagram de Ricardo Ribeiro
Published on November 12, 2018 09:43
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